Vai para os conteúdos

Passos N.84, Julho 2007

EXPERIÊNCIA - Uma conveniência humana / Etiópia

A vida em oito

por Paola Ronconi

História da família Pizzi, há mais de vinte anos vivendo na África. Primeiro na Uganda, depois no Quênia, agora na Etiópia. Buscando, em todos os lugares, o rosto amoroso que torna possível nunca sentir-se sós. Testemunho da conveniência humana de ser cristãos dentro das circunstâncias normais da vida


Varese, 1984. "Elena, recebi uma proposta para ir em missão à África. Eu vou." Foi isso que ela ouviu de seu noivo Stefano, recém-formado em Agronomia. A missão, para ele, era uma paixão atávica que o noivado com ela só havia adiado. Assim, ele passou dois anos em Kitgum, na Uganda, enquanto ela terminava o curso de Pedagogia, em Milão. Em 1986, o reencontro, o casamento e a decisão de voltarem juntos para a Uganda. A nova família Pizzi não está sozinha. Em todas essas decisões estão presentes famílias de Varese e outras, não "pioneiras" na Uganda: os Guffanti, na Itália, e, esperando-os lá, os Rizzo, os Taglietti, os Mainini, os Gargioni, os Buzzi, etc. "Depois de um mês de casamento - conta Elena - partíamos para a Uganda... já em três! Viajei por fidelidade a meu marido, mas, quando cheguei em Kitgum, disse a mim mesma: ‘É por mim’.”. Em um ambiente novo, bastante diferente, onde a tentação é a de querer resolver os mil dramas cotidianos de todos, "a primeira coisa de que senti necessidade - diz Elena - foram os amigos, mais do que o ar que respirava". Aos poucos, os Pizzi entenderam que sua vocação era viver para Jesus, não para a África, "e isso não seria diferente se tivéssemos ficado na Itália: o Senhor está presente onde se vive a sua Presença". Em Kitgum, entre a guerrilha e raptos, Stefano começou a trabalhar para a Associação de Voluntários para o Serviço Internacional (Avsi), no Instituto de Agronomia do município e no campo de refugiados de Acholpii. Elena trabalhava com a nova escola elementar "Uganda Martyrs" e no Meeting Point com os doentes de AIDS, além de ministrar cursos de trabalho para mulheres. Depois de Pedro, nascido em 1987, vieram Giacomo (1989), Caterina (1991), Cecilia (1993) e Luca (1995). Os laços com as famílias italianas e com os novos amigos africanos ou estrangeiros ficam cada vez mais fortes, tornando-se um apoio na dura vida africana.


Kampala, Nairobi, Addis Abeba
Em 1996, por causa da guerrilha cada vez mais violenta, eles se mudam para Kampala, onde ficam por quatro anos. "Em 2000, o bispo de Rumbek, Dom Mazzolari - conta Stefano - me chamou para trabalhar durante três anos em sua enorme diocese no sul do Sudão", então coragem..., e a família se mudou para Nairobi, onde alguns amigos já os esperavam. Luigi se junta à caravana dos cinco filhos nascidos em Kitgum. Por fim, a última etapa, em 2003: três meses na Etiópia trabalhando com a UNICEF. Mas, de três em três meses, o tempo vai passando e Stefano pensa em outra mudança da família, e discute sobre isso com os amigos da Fraternidade. "Tudo bem", Elena diz pela enésima vez ao marido. Mas desta vez é mais difícil do que das outras. Chegando em Addis Abeba, os oito Pizzi não conhecem ninguém. Lá não estão as famílias do Movimento ou os amigos Memores, padre Poppi ou padre Valerio... E sentem o contragolpe. Alguns filhos começam a dizer: "Mas o que faremos aqui sozinhos?!". Elena nos conta: "Eu pedia para que aquilo que nos tinha sido dado gratuitamente nos outros lugares, o rosto amoroso de Jesus, acontecesse também na Etiópia", que fosse possível conhecermos novos amigos com os quais pudéssemos percorrer também aquele trecho do caminho. "A Fraternidade da Uganda" nunca nos abandonou. Muitos vinham passar breves períodos conosco. Isso foi um grande conforto." E, dia após dia, o novelo se desenrolava e bastou seguir o fio para reencontrar aquele rosto amoroso que nunca os havia deixado.


Impacto com a Etiópia
Por onde começar? Pelo Club Iuventus, um Círculo onde os italianos se encontravam. A fama dos Pizzi os precedeu: seis filhos é algo incomum, mesmo na Etiópia! "Lembro - diz Elena - que, saindo de casa para ir ao Club naquela noite com Stefano e Luigi, pedia com toda minha alma para que Jesus se fizesse ver." Foi lá que conheci a primeira pessoa: "Renata, presidente do clube, empresária, conhecida por todos (etíopes e italianos), e... as perguntas habituais: como você se chama, menininho? De onde você vem? O que você veio fazer em Addis Abeba etc. Desse modo, nos conhecemos. E foi apenas isso." Mas Renata também compareceu a um estranho encontro, onde uma dúzia de colegiais falava sobre as reuniões que faziam depois das aulas com irmã Gabriella, sua professora de religião, na Paróquia de São Salvador. É o grupo de "pós-crisma", que nasceu quando Pietro e Giacomo Pizzi pediram à irmã para se encontrarem às sextas-feiras à tarde e, juntos, falar sobre questões importantes para eles. "Renata ficou boquiaberta - conta Elena -, suas filhas, que participam do grupo, também se colocam e no final dos testemunhos, ela pergunta: ‘Alguém pode me dizer o que está acontecendo? Durante anos minhas filhas foram empurradas ao catecismo e, agora, dois dias antes, já começam a me lembrar das aulas’. Durante toda a vida me lancei sobre tudo mas esqueci a coisa mais importante: Jesus. Digam-me o que devo fazer". Uma semana depois, Renata sai com Elena para tomar café. Nasceu, assim, a primeira Escola de Comunidade de Addis Abeba: Elena, Stefano e Renata. Quase imediatamente une-se a eles Monica, professora da escola italiana, encontrada no caminho. "Os encontros aconteciam em nossa casa", conta Elena. Mas, depois de algum tempo, Renata insistiu que deviam fazer as reuniões no Club, "por ser um lugar público e visível".
"Em uma manhã, fui ao escritório de Renata - continua Elena -, onde trabalham seis secretárias. Eu disse a ela: ‘Seria bonito se elas também pudessem conhecer aquilo pelo qual eu e você somos tão amigas’. Ela respondeu: ‘Que dia faremos a reunião?’.”. Na quinta-feira daquela semana, às 11h30, fizemos a primeira Escola de Comunidade em amarico, a língua local. Eu falava inglês, e Renata traduzia. Então, pudemos convidar todas: Daniela, Moira, Marilena, Belletech, mãe de Tiziana que trabalha com Cecilia, e a mãe de uma amiga de Caterina, que estava preocupada com a filha, que andava em má companhia...".


Uma mãe e seis crianças
Em Addis Abeba, Elena decidiu não trabalhar, como tinha feito nas outras cidades, para acompanhar os filhos na adaptação à nova escola. A escola italiana é freqüentada por 80% de etíopes e 20% de italianos e estrangeiros em geral. Os professores vêm da Itália, trazendo consigo os problemas da escola italiana que se somam aos locais. "Tornei-me representante de classe e, na primeira reunião, fiquei estarrecida: mais da metade da classe corria o risco de reprovar. O problema: os meninos não faziam as tarefas em casa. Proponho-me estudar com eles uma tarde por semana". Depois de três meses dessa experiência percebi que, "embora os meninos não tivessem se tornado muito mais assíduos em fazer as tarefas e estudar, sem dúvida a situação da classe mudou". Da longa lista, somente dois reprovaram no final do ano. Essa atividade continuou nos anos seguintes, com os colegas de Caterina, Cecilia e Luca. Os filhos maiores começaram a ajudar. Um dia, Pietro disse: "Davide pediu para vir estudar aqui. Eu disse para ele vir na quarta porque estou em casa".

Também entre os jovens há uma grande agitação, um grande desejo de ter amizades estáveis, verdadeiras, como as que deixaram no Quênia. Os colegas de escola também sentem o mesmo. É Pietro quem conta: "Uma vez, Enrico Guffanti, que veio nos visitar por alguns dias, me disse: ‘o grupo dos Colegiais é você, senão não existe. Se o grupo faz parte da sua vida, por conseqüência, quem olha para você se dá conta da diferença’." O Senhor tem seu tempo e, depois de dois anos de tentativas, nasceu um pequeno grupo de Colegiais que, além dos jovens Pizzi, contava com Carlo, Iafet, Amanuel, Pinael, Franco, Mike, Claudia, Lorena, Henos, Hamayes... E eles não só se encontravam aos sábados mas também às terças-feiras, na hora do almoço, para fazer o Raio no jardim da escola italiana. E sempre apareciam novas pessoas.
Os jovens Pizzi também conhecem Gigi e Chiara, voluntárias da Ong "Amigos do Sidamo", e padre Dino, um salesiano. Os padres salesianos dirigem um centro de assistência para meninos de rua. Assim, Pietro e Giacomo, com outros amigos, começam a ensinar inglês a alguns deles (que só falam amarico). Nasce uma experiência de caritativa e, acompanhar de perto o caminho de recuperação dos meninos - diz Pietro - fez com que "eu também fosse recuperado... pela caridade de Jesus que mais uma vez tinha me colocado ao lado de companheiros de caminhada".


Enésima mudança
Depois de dois anos na Etiópia, acontece a enésima mudança: Stefano aceita uma proposta de trabalho da UNICEF, no sul do Sudão. A família fica em Addis Abeba, onde se reencontram a cada seis semanas. Stefano explica: "As decisões difíceis que Elena e eu tomamos nestes anos em relação à família foram todas guiadas por um confiar-se à realidade do modo como se apresentava diante de nós, sempre curiosos em ver o que estava além. Mas sendo pais certos de um Bem oculto em todas essas "transições" penosas, os filhos sempre nos seguiram com o mesmo esforço e a mesma certeza, sempre aprendendo um pouco mais, eles mesmos, a confiar".

"Nunca duvidei de que aquilo que fazíamos fosse algo bom também para nossos filhos - continua Elena -.Não acredito que o lugar ou condições pré-constituídas seja o que garante um certo tipo de crescimento: a questão central é que Stefano e eu nos amamos de um modo que não é um sentimento, uma fidelidade abstrata entre nós dois, mas uma fidelidade a Cristo.

A partida de Stefano, naquele longínquo dia de 1984, afirmou que não possuíamos o nosso relacionamento. Isso é compartilhado por nossos filhos, e quando se torna um sim pessoal de cada um deles, então é possível pedir tudo". Tanto que Caterina conta: "Quando nos mudamos para Addis Abeba, foi muito difícil recomeçar tudo. Os relacionamentos que se criavam permaneciam superficiais. Faltava aquela unidade com os amigos que eu tinha tido até então". E Cecilia, que completou 13 anos este ano, continua: "Quando cheguei na Etiópia, fiquei um pouco desiludida. A companhia que eu sempre tive por perto, ali, não existia. Mas, na verdade, ela existia: a minha família! Nós éramos aquela presença experimentada e vivida durante meus dez anos de vida: era hora de viver em primeira pessoa aquilo que eu tinha tido quase sem pedir, e de reconstruí-lo".


A permanência no tempo
Poderíamos, ainda, encher muitas páginas com a história dos Pizzi: sobre o ano que Pietro passou nos Estados Unidos; sobre Giacomo, que queria voltar para a Itália para fazer o colegial, que não existe na Etiópia; sobre o entusiasmo de Cecilia e Caterina; sobre como Elena conquistou Daniela com um ramalhete de flores; sobre a serenata no aeroporto; sobre as quarenta pessoas na casa dos Pizzi, para assistir a transmissão no dia 24 de março direto da Praça São Pedro; sobre as trinta e quatro pessoas na Via Sacra... Paramos aqui. Em uma época em que, em toda parte, ouve-se que apostar na família e em sua permanência no tempo é uma utopia, os "extravagantes" Pizzi demonstram simplesmente que, agarrados com os dentes àquilo que pode tornar tudo firme, é possível viver assim.

 


Mas o que faz Stefano Pizzi no sul do Sudão pela UNICEF?

"Sou responsável pelo escritório da UNICEF em Yambio - conta -, província de um dos 10 estados do sul do Sudão. Tem uma população de mais de um milhão de pessoas e duas gerações que perderam até a mínima oportunidade de educação e de desenvolvimento graças a 20 anos de guerra entre o Norte e o Sul, que acabou somente com o estabelecimento de uma paz desgastada em janeiro de 2005. Havia necessidade de escolas, móveis escolares, formação de professores, poços, higienização de escolas e centros de saúde, vacinação contra sarampo, pólio e outras doenças preveníveis, luta contra a malária, ajuda às crianças vítimas de violências de todos os tipos... Em 2006, acabei me reencontrando com a Lord Resistance Army (os rebeldes ugandenses, ndr), com quem tive um relacionamento forçado em Kitgum durante muitos anos: agora estão "instalados" na fronteira entre o Sudão e o Congo, e iniciou-se um difícil processo de paz mediado pelas Nações Unidas. Por isso, de tempos em tempos, pego uma tenda e, com alguns colegas locai,s me aventuro pelas fronteiras para encontrar estes "anjos de criminalidade". Sempre repetindo a mesma música: "Libertem as centenas de crianças raptadas na Uganda em tantos anos de horror!". Não se escolhe por opção uma situação assim, mas quando ela acontece, ou é abraçada ou odiada".


*********************************************************


Jesus Carrascosa, responsável pelas comunidades estrangeiras do Movimento, no dia 29 de março último, foi visitar Addis Abeba, onde encontrou a família Pizzi. Publicamos uma carta que Cecilia Pizzi, de 13 anos, escreveu depois dessa visita.

Caríssimo Carras, quero agradecer muito pela disponibilidade que demonstrou falando conosco e ajudando-nos a entender: o que é, porque é, como é (...).

Também fiquei admirada com a sua abertura em relação às coisas, às pessoas, às perguntas e em relação a tudo o que acontece. De fato, fiquei fascinada com as coisas que você disse e procurarei segui-las do meu modo! Porque, como você disse, a Escola de Comunidade e o grupo dos Colegiais não são somente um encontro onde se discute sobre o significado e sobre o valor da vida, mas são parte da própria vida!

(...) Quando lhe perguntei: "Como se faz para perceber que ser cristão é bonito?", entendi que o importante não é fascinar ou maravilhar, mas estar fascinado e maravilhado!

Enfim, respondo à pergunta que você me fez e eu lhe fiz! Por que é bonito ser cristão? Para mim é bonito ser cristão porque é aquilo que me corresponde mais! É impossível não ficar fascinado e maravilhado por aquilo que é a vida e não se perguntar o porquê, o como, etc. das coisas que acontecem. Então, é uma inesgotável abertura ao caminho e a Deus! Depois, porque é mais belo, como você disse, pensar que existe um ALGO maior e fascinante que estou vivendo e encontrando agora do que pensar que tudo seja por acaso (...)! Sinceramente, se eu me imaginasse sem Deus, me sentiria vazia, então, não saborearia o cêntuplo que nos foi prometido! Muito obrigada, de verdade! Volte logo, porque esperamos você! Com afeto, Cecilia.

P.S.: O homem é tão grande que tudo é pequeno para ele!

 

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página