Uma pobreza cada vez mais cruel, um governo que oprime o povo, e um regime que há quarenta anos tenta eliminar Deus, “porque o homem é o único ser supremo”. Um historiador missionário do Pime explica o que existe, de fato, na raiz da tragédia que está atormentando esse país oriental. Mesmo agora que a mídia ocidental voltou a silenciar sobre o assunto
É a primeira vez, nos últimos vinte anos, que a mídia internacional fala da Birmânia (ou Myanmar), um país sempre esquecido, que desde 1962 é oprimido por uma ditadura militar-socialista (ou melhor, comunista), que esmaga o povo e não representa qualquer ameaça direta ao Ocidente.
Na segunda quinzena do último mês de agosto, por causa do aumento inesperado do preço da gasolina e do querosene – que cortou as pernas da pequena economia –, o povo saiu às ruas; em setembro, uniram-se a ele os monges budistas, também estes desfilando pelas cidades, vestidos com suas túnicas vermelhas. Durante alguns dias, os militares não reagiram; depois, desencadeou-se violenta repressão, que rapidamente eliminou o incômodo espetáculo, transmitido pelas televisões do mundo inteiro.
“Morrem como moscas”
Desde 1988 não se verificava, na Birmânia, uma revolução popular em escala nacional. Naquele ano, o início se deu com o protesto dos estudantes diante do freqüente fechamento das escolas superiores e das universidades. Na ocasião a junta militar foi obrigada a dar certa liberdade às oposições, devido às fortes pressões internacionais. Em 1990 ocorreram eleições “livres”, sendo vencedora a Liga pela Democracia, de Aung San Suu Kyi, enquanto o partido socialista birmanês, dos militares, conseguiu apenas 10% dos votos. Alguns anos depois, tudo voltou ao que era antes: Suu Kyi nunca conseguiu governar, seus deputados eleitos terminaram na prisão ou fugiram para o Exterior. Houve milhares de mortos e muitos manifestantes foram enviados para trabalhos forçados. Visitando a Birmânia em 1993, eu mesmo vi fileiras de homens, acorrentados dois a dois pelos pés, vigiados por militares fortemente armados, enquanto construíam uma estrada na fronteira com a Tailândia (fronteira de Thachileik). Um espetáculo aterrorizante, tanto mais quando a pessoa que me acompanhava disse: “Morrem como moscas, vivem em cabanas de palha, com pouca comida, sem proteção contra o frio e o calor das montanhas, sem assistência médica; e a grande maioria é de homens das cidades, desabituados aos trabalhos pesados e à vida na floresta”.
Teme-se que a recente rebelião, com os monges na primeira fila, termine do mesmo modo, apesar das pressões internacionais, que são anuladas pelo simples motivo de que, desde 1990, a Birmânia conta com um poderoso protetor, a China comunista, que hoje volta à ribalta como grande potência econômica, e que precisa de uma saída para o Oceano Índico (através da Birmânia). Uma testemunha ocular escreveu-me, há cerca de um ano: “Os militares estão obrigando os cidadãos a cultivar o ópio para eles, e fazem da Birmânia o maior exportador do mundo... Hoje a China reabastece os militares de armas, que são pagas com madeira nobre, com minério, com gás e petróleo; eles constroem estradas e inundam o país com seus produtos”.
Os chineses já estão na Birmânia, “colonizam” algumas regiões tribais de fronteira, que são autônomas. Visitei uma delas em 2002 e a sua pequena capital, Mong Lar, que está cheia de chineses: escrita chinesa, táxis chineses, moeda chinesa, restaurantes chineses, serviços chineses. Modernizam a cidade com mansões jamais vistas naquelas bandas, canalizam a água e garantem eletricidade.
É fácil entender por que China e Rússia se opõem às sanções aprovadas pela ONU. Além do interesse econômico e estratégico dessas duas potências há o fato, do qual absolutamente não se fala, de que o golpe de Estado que, no dia 2 de março de 1962, levou as forças armadas ao poder absoluto, não era comandado apenas pelos “militares”, mas por militares “socialistas”, isto é, “comunistas”, que inspiravam-se nos modelos de desenvolvimento da Rússia stalinista e da China maoísta. Isso ficou logo demonstrado quando, naquele mesmo ano, decretaram o Lanzin, isto é, “a via birmanesa de socialismo”, um socialismo “inspirado no budismo”, embora de budismo não tenha absolutamente nada.
No “Programa” do Lanzin, entre as idéias básicas para a formação da nova sociedade, lê-se: “No lugar de deus (em minúsculo) é preciso colocar o homem, que é o ser supremo... A filosofia do nosso partido é uma doutrina puramente mundana e humana. Ela não é uma religião... A história da humanidade é não só história de nações e de guerras, mas também de luta de classes. O socialismo pretende pôr fim a essa exploração do homem pelo homem. O ideal do socialismo é uma sociedade próspera, rica, baseada na justiça. Não há lugar para a caridade. Faremos de tudo, com métodos apropriados, para eliminar atos e obras de falsa caridade e assistência social. O Estado providencia tudo. Alimentar e educar os filhos dos trabalhadores será exclusiva responsabilidade do Estado, quando houver suficientes recursos econômicos. A atividade de empresas baseadas no direito de propriedade privada é contra a natureza e só desemboca em antagonismos sociais. A propriedade dos meios de produção deve ser social... Uma ação só pode ser considerada reta, moral, quando serve aos interesses dos trabalhadores. Para um homem, trabalhar toda a vida para o bem-estar dos seus concidadãos e da humanidade, em espírito de fraternidade, é o Programa das Beatitudes para a Sociedade da União Birmanesa”.
Com base nesses princípios, um dos primeiros decretos do governo foi a abolição do budismo como “religião de Estado” (que vigorava desde a independência do país, em 1948). Depois, o governo nacionalizou os bancos, as indústrias, as pequenas e médias firmas artesanais, as lojas e as terras, os jornais e as rádios, os hotéis e restaurantes, e assim por diante. Desaparecida a propriedade privada, tudo é do Estado, que orienta cada coisa supostamente para o bem público. Enfim, a 31 de março de 1964 são requisitadas as escolas e as estruturas de saúde particulares (com seus terrenos e meios de transporte: com os proprietários ficaram apenas as dívidas), em boa parte católicas e protestantes (sobretudo batistas e anglicanas).
O regime, em 1966, expulsou todos os missionários que entraram na Birmânia depois de 1964, entre os quais trinta do Pontifício Instituto das Missões Exteriores (Pime); outros trinta, que chegaram antes, puderam continuar. Depois, pouco a pouco, o governo percebeu o grande descontentamento popular e deixou que as religiões sobrevivessem; os próprios budistas se reconciliaram com o governo e passaram a apoiar a junta militar, que de qualquer modo garantia estabilidade, num país que durante os catorze anos do governo democrático (1948-1962) conviveu com a guerra civil. A virada aconteceu em 1988, e desde então os budistas passaram para a oposição.
É preciso explicar: como é que o budismo, que prega o desapego às coisas mundanas, a renúncia a tudo, a aceitação passiva para garantir um renascimento mais feliz, empenha-se hoje contra o governo, na Birmânia? Em síntese, pode-se dizer que o renascimento do budismo, no mundo moderno (falo sobretudo da “pequena via”, a hinayana, praticada no Sri Lanka, na Birmânia, na Tailândia, no Camboja e no Laos) teve início no final do séc. XIX, com o nascimento do nacionalismo nesses países, então colonizados (exceto a Tailândia). A identidade nacional compreendia a língua, a história e naturalmente a religião e a cultura budistas, com fortíssimas raízes nesses povos. Tal movimento levou os bonzos, os monges e os fiéis a entender que a sua religião, segundo os princípios doutrinários antigos e a tradição histórica, não podia sobreviver no mundo moderno, que dava importância à escola, à política, à organização popular, ao bem-estar social. Os nacionalismos na Ásia inspiraram-se todos nas religiões populares: basta pensar no Paquistão e no Sri Lanka, com a guerra civil entre a maioria cingalesa budista e a minoria tâmil hindu.
O que disse Buda
A renovação do budismo teve vários aspectos: modernização das escolas ligadas aos mosteiros, fundação de centros de estudo e universidades budistas, início de associações laicas, fundação de muitas obras sociais voltadas para o povo (ao modelo das missões cristãs), que antes absolutamente não existiam.
Visitei a universidade budista de Kandy, no Sri Lanka, e me dei conta da complexidade do budismo, a partir da dificuldade de estabelecer quais são os textos de Buda. O bispo de Kandy (que estudou nessa universidade) dizia-me que hoje os textos da tradição em várias línguas (sânscrito e páli, sobretudo) atribuídos a Buda, que são as sagradas escrituras do budismo, são onze vezes mais longos do que a Bíblia (que tem 72 livros canônicos). Os estudos críticos, iniciados por estudiosos ingleses e alemães há pouco mais de um século, estão praticamente no início, no mare magnum dessa literatura (também em cingalês, birmanês, tailandês, cambojano, vietnamita, etc.). Cientificamente não é possível, ainda, saber o que Buda falou ou não. Isso vale também, em medida menor, para Maomé e o Alcorão!
A alma do povo
Nada disso impede que o budismo popular birmanês sobreviva, tenha inclusive uma segunda juventude, seja cada vez mais a alma do povo e talvez a única força de oposição, dada a quase eliminação das demais forças. A descida maciça dos monges budistas para as ruas, contra o governo, em setembro passado, é um claro indicador de como a situação chegou a um ponto insuportável.
É inútil acrescentar algo. Se não tiver êxito a pacífica revolta popular guiada e animada pelos bonzos, para Myanmar abrem-se cenários ainda mais obscuros: poderia se tornar, por meio de um chamado “governo local”, uma província chinesa. O que fazem os governos do Ocidente?
A única ameaça eficaz de boicote espontâneo do Ocidente seria não participar da Olimpíada de 2008, em Pequim, mas me parece que não há debate público sério a respeito, nos países onde abundam os democratas, os pacifistas e os grupos prontos a mobilizar-se pelos direitos humanos. Por quê?
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