Com a Lei do governo Zapatero sobre a “Educação para a Cidadania”, o Estado de apropria de um papel que não lhe cabe: formar as consciências. Diante disso, famílias e educadores se manifestaram gerando um confronto que está repercutindo nas salas de aula, praças e jornais de Madri e cidades próximas. Algo que diz respeito a todos
Durante a primavera de 2006, foi aprovado o grande projeto educativo do governo socialista de José Luis Zapatero: a Lei Orgânica de Educação (LOE). A principal novidade que introduzia era a apresentação de uma nova matéria obrigatória chamada Educação para a Cidadania (EpC). Foi proposta por pessoas que nunca esconderam seu objetivo: a formação dos valores morais dos estudantes. Até aquele momento, na escola, tanto pública quanto privada, a Religião e a Ética eram matérias facultativas. O novo sistema, na prática, propunha uma redução das horas de ensino religioso e a introdução, em todas as turmas dos cursos primário e secundário, da matéria obrigatória há pouco instituída.
Os temores iniciais de muitos pais e professores logo se confirmaram com a publicação dos decretos que determinavam as bases do novo preceito, por meio do qual o Estado apropriou-se de um papel que não lhe cabe: o de ser sujeito educador e formador das consciências. Além disso, o fez por meio de uma bibliografia nada neutra, querendo impor uma visão reduzida do homem, partindo de pressupostos como o relativismo cultural, o laicismo ou uma ideologia genérica.
Apenas poucos meses antes da aprovação da lei, em 12 de novembro de 2005, nas ruas de Madri se protestava contra os planos educativos do governo e contra a matéria que era o centro da polêmica. Para surpresa geral, uma plataforma criada especialmente por várias organizações de pais e professores conseguiu reunir um milhão de pessoas no centro da capital para pedir que o projeto fosse retirado.
Neste contexto, com muita simplicidade, alguns amigos do Movimento, cada um no seu ambiente e segundo suas possibilidades, começaram a tomar a iniciativa. Diversos professores, por exemplo, não satisfeitos com as interpretações e respostas obtidas, começaram a estudar diretamente o texto dos decretos, procurando outros amigos e colegas, trocando artigos e comentários por e-mail e organizando encontros para discutir sobre esse novo desafio.
A inquietude inicial transformava-se em curiosidade real. A nova matéria não era apenas um peso acrescentado à vida, mas uma ocasião para um juízo pessoal e um trabalho comum.
Assim, por exemplo, na escola John Henry Newman, de Madri, nascida da amizade de um grupo de professores que vivem a experiência do Movimento, aos poucos foram sendo organizadas reuniões para trabalhar sobre o livro Educar é um risco (L. Giussani, Ed. Companhia Ilimitada, São Paulo, 2005; nde). Juan Ramón de la Serna, diretor da escola, explica que o texto de Dom Giussani abre um “horizonte que permite abordar adequadamente as preocupações pessoais e da escola e com os desafios políticos e sociais, como a Lei Educação para a Cidadania”.
Primeiras manifestações públicas
Esse trabalho abriu o caminho para outras iniciativas, como a organização de um evento público, em colaboração com pais, paróquia e a outras realidades educativas do bairro. Tratava-se, em substância, de responder a pessoas concretas que se aproximavam para escutar um juízo claro sobre um caso concreto.
No início do curso, Ana Llano, professora de Direito na Universidade Computense, recebeu um telefonema de Maite Padura, uma cara amiga, professora de Direito Processual, que lhe exprimia toda a sua preocupação em relação à nova matéria. Decidiram ocupar-se do assunto e falar com outros amigos. Isso originou duas reuniões públicas na Faculdade de Direito, para a qual foram convidadas importantes personalidades do ambiente político e jurídico.
Ao mesmo tempo, a Associação Cultural Charles Péguy, preparava um seminário sobre a questão. Participaram algumas das mais significativas personalidades da batalha cultural sobre a nova matéria, entre os quais Ignacio Carbajosa, professor da Faculdade de Teologia de San Dámaso, que leu seu discurso “Pressupostos antropológicos e culturais da Educação para o Cidadão”. Até a Conferência Episcopal espanhola decidiu distribuir o texto para que fosse estudado pelos Bispos.
Em busca de um juízo comum
Contemporaneamente, os bispos espanhóis, ativamente contra a nova matéria, definiam sua posição em uma nota e, em seguida, em uma declaração. Dois documentos que ofereceram a possibilidade de considerar atentamente a autoridade eclesial e de se confrontar com ela por meio de um diálogo direto, sempre animado por uma tensão em direção à unidade. Este diálogo culminou com a visita que o Cardeal Rouco Varala fez à escola J. H. Newman.
Outras comunidades de CL, em várias regiões da Espanha, organizaram encontros sobre a introdução da EpC.
A um certo ponto, as iniciativas, as discussões e as relações tinham se tornado muito numerosas. Todavia, faltava algo. Diversas pessoas envolvidas nesse turbilhão de eventos começaram a sentir fortemente a necessidade de chegar a um juízo comum. “Desejávamos formular um juízo comum mais claro – lembra Ana Llano – e declarar publicamente a nossa contribuição para a emergência educativa atual. Por isso, alguns de nós começaram a trabalhar juntos”.
Um grande grupo de professores universitários e pessoas do ambiente político-social, foram a gênese do manifesto apresentado no início deste ano escolar, com um slogan provocativo: “A melhor maneira de defender a liberdade é exercitá-la”.
Mari Carmen Carrón, professora de Letras, e Soledad de las Hazas, professora de Filosofia e Ética, há dois anos já estudavam os conteúdos concretos da nova matéria e os problemas dos novos livros.
Soledad diz: “Esse debate permitiu-me colocar à prova a abertura da minha mente e fazer um sério exercício de confronto com todas as posições, a partir da minha experiência e também do juízo comum alcançado com outros amigos interessados na questão. Lendo a normativa, as declarações dos que apóiam a matéria, o que diziam as associações contrárias a ela, escutando os discursos dos bispos, observando a postura das escolas... tudo me levou para um único método: confrontar com a minha experiência e verificar se a proposta de outros era mais realista que a minha por levar em conta mais fatores do que eu via”. E esse percurso de pensamento permitiu, a quem o fez, descobrir que a “emergência educativa”, ou seja, o relativismo, a renúncia de muitos pais, a anulação do desejo dos alunos, o tédio, já estavam presentes muito antes das Leis de Zapatero; que não existe nada que possa impedir a liberdade em ação, nem a responsabilidade, sobretudo onde existem experiências educativas verdadeiras e, portanto, irredutíveis; que, no ápice da batalha, muitas vezes dura e áspera, a pessoa busca um rosto que introduza uma novidade, um rosto que se encarna em lugares, obras, relações e nas pessoas que se colocam à disposição de todos.
O manifesto Tiempo de educar quer dizer a todos que em qualquer situação é possível construir e criar obras que “eduquem o cidadão” na sua irrenunciável liberdade.
O panfleto de Tiempo de Educar
A MELHOR MANEIRA DE DEFENDER A LIBERDADE É EXERCITÁ-LA
1. Uma nova matéria escolar. A entrada na escola e no mercado de trabalho desperta, ainda que apenas por um momento, o desejo de uma vida cheia de significado, para nós e para os nossos filhos. É o mérito de todo início: reaparece aquele desejo que parecia esquecido. Este desejo é a principal fonte de qualquer esforço educativo, porque ele estimula a curiosidade e as perguntas inerentes a todas as questões da vida.
A censura desse desejo e de suas implicações educativas – como se se tratasse de uma questão irrelevante – está na origem da situação de "emergência educativa" da qual sofre o nosso país. As cifras da falência escolar e a diminuição dos níveis de conhecimento são certamente preocupantes. Mas, tão preocupante quanto, é o fato de que nas famílias e nas escolas, mesmo naquelas em que se obtém bons resultados acadêmicos e onde se fala de valores, não se consegue despertar o interesse dos jovens pelas matérias que estudam e, coisa ainda mais grave, pelo próprio destino. Estes terminam, assim, à mercê de todo tipo de poder e do tédio. "As crises educativas – escrevia Charles Péguy – não são crises de ensino, são crises de vida. Uma sociedade que não ensina é uma sociedade que não se ama, que não se estima, e este é precisamente o caso da sociedade moderna" (Charles Peguy, Lui è qui, Bur, Itália, 2003, p. 39).
2. Diante da evidência de como a educação nas nossas escolas não está à altura do seu objetivo, o Governo procurou dar uma resposta introduzindo a nova matéria "Educação para a Cidadania". Uma matéria que, nas intenções de seus defensores, permitirá plasmar a mentalidade dos nossos jovens e, a longo prazo, mudar a sociedade.
Milhares de estudantes do segundo grau começaram a estudá-la, mediante a qual o Estado tenta se apropriar da formação das consciências. A pressuposta neutralidade da matéria, tão proclamada pelo Governo e por seus mentores ideológicos, rompe-se no momento em que se constata como ela pretende responder às questões inerentes ao sentido da vida, ao bem e ao mal, ao caminho para a felicidade pessoal e a justiça nas relações humanas. Os mesmos que teorizam a separação radical entre âmbito público e privado, com o fim de excluir a religião da vida social, parecem agora querer invadir, através da esfera estatal, a parte mais profunda das consciências.
3. Por esse motivo, os pais e os próprios alunos defendem a essência de sua liberdade e se servem de todos os meios que o Estado de direito coloca à sua disposição para se opor à obrigatoriedade desta matéria. Pedimos aos responsáveis políticos que mudem os decretos que estabelecem os conteúdos da mesma e procurem um acordo de base, sem o qual nenhuma reforma política, e, tampouco no âmbito educativo, será realizável. Ao mesmo tempo, associamo-nos ao movimento social que rejeita a matéria "Educação para a Cidadania", servindo-nos de todos os meios legítimos contra a sua introdução, incluindo a “objeção de consciência” [no italiano, essa expressão significa negar-se aderir a obrigações legislativas, administrativas, fiscais ou profissionais por motivos morais, religiosos ou ideológicos; nde].
Os poderes públicos, por mandato constitucional, devem garantir o direito próprio dos pais de que seus filhos recebam uma formação moral e religiosa conforme seus princípios, tanto no âmbito da educação pública quanto privada. A introdução da "Educação para a Cidadania" danificaria esse direito e deve ser, por isso, rejeitada.
4. Nenhuma ingerência do Estado pode impedir que existam experiências educativas autênticas. Esperando que se resolva a batalha política e jurídica em relação a esta matéria (que, esperamos, desapareça ou seja profundamente reformulada), a sua introdução implica um desafio para que jovens e adultos julguem seus conteúdos a partir da exigência de verdade que nos constitui e que tem um caráter objetivo. Exercitar essa faculdade de juízo é a condição necessária tanto para educar como para estabelecer um autêntico diálogo.
A melhor maneira de defender a liberdade de educação é exercitá-la. Promover experiências educativas enriquece a nossa democracia. A laicidade do Estado é medida através da consideração que mostra em relação às iniciativas promovidas por indivíduos ou por determinados grupos sociais e, sobretudo, em relação à liberdade de educação.
* Panfleto com um juízo sobre a emergência educativa na Espanha preparado em outubro pela associação Tiempo de Educar.
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