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Passos N.82, Maio 2007

SOCIEDADE - Família

Os Pedros e a realidade

Lendo o “Estadão” de hoje, 5/7/99, fui atraída por uma matéria que se intitulava “FHC intervém e mantém inovações sobre o aborto”. Passei a ler com mais atenção e minha indignação cresceu quando cheguei ao trecho que transcrevo: “A permissão de aborto por anomalia do feto foi discutida longamente pela comissão. Inicialmente, acolheu-se uma proposta mais flexível ainda do que as sentenças dos juízes de permitir a retirada do feto no caso de anomalia irreversível – o que poderia permitir, por exemplo, o aborto legal nos casos de Síndrome de Down. (...) Na versão definitiva, no entanto, a comissão abrigou a hipótese de aborto por anomalia que torne o feto inviável”. Até a minha ingenuidade tem limites; é evidente que um dos motivos para se querer legalizar o aborto é a pseudo liberdade de mulheres que pretendem ser donas de seus próprios corpos, então usa-se a possibilidade de gerar uma criança inviável como álibi para se fazer instintivamente o que se quer. Não se está tratando da possibilidade de se prevenir uma patologia por conta de um avanço da medicina, que certamente pouparia muitos sofrimentos, mas sim de assassinato de não-nascidos por uma exacerbada pretensão de alguns que querem brincar de Deus e determinar quem pode ou não nascer. É com temor que me vêm à mente as palavras do salmista que não deveriam ser ignoradas: “Fostes Vós que me formastes as entranhas, e no seio de minha mãe Vós me tecestes. Até o mais íntimo, Senhor, me conheceis: nenhuma sequer de minhas fibras ignoráveis, quando eu era modelado ocultamente, era formado nas entranhas subterrâneas. Ainda informe, os Vossos olhos me olharam, e por Vós foram previstos os meus dias”. O que assusta é a desfaçatez com que a sociedade é manipulada, pois a tal comissão parece estar interessada ou preocupada com a incidência de excepcionais nos nascimentos, expressando uma preocupação da sociedade, entretanto, se isso é verdade, por que nós, pais de deficientes, não fomos ouvidos? Somos ignorados e agora vem o presidente, juristas, etc., que nunca tiveram a graça grande de passar uma hora sequer junto de um “irreversivelmente anômalo” e de público nos comunicam que nas próximas gerações não haverá mais Pedros, Williams, Brunos, Carlinhas, etc. Como será o mundo sem eles? Fui ao quarto olhar meu filho que dorme e novamente afirmo que não é possível que ele seja inviável, que apenas um acidente genético me fez gerá-lo. Estou convencida de que o olhar de Deus viu meu filho sendo formado, determinou sua condição e quis dar para minha família este mimo, este agrado (como diz o caipira que cria dez filhos com sacrifício porque tem como certo que assim o Senhor é servido); é certo que esse olhar onipresente sabia que em minha casa a inocência seria acolhida e muito mais amada. Escandaliza-me o cinismo de quem quer tratar daquilo que não entende porque não se enquadra no que suas expectativas ínfimas são capazes de abranger. Ora, não me é possível admitir que o Pedro seja como um bolo que não deu certo ou então que Deus se distraiu e não percebeu que meu filho estava sendo gerado de forma “errada” ou, ainda, que seria uma capacidade minha determinar sua condição. Cada vez mais me convenço de que é o inverso, que “aquilo que é loucura para os homens é a sabedoria de Deus”. Se IPE, CFEMEA, CLADEM querem legalizar o aborto, que o façam e que Deus tenha piedade de suas almas; entretanto, usar a possibilidade de que nasça outra criança como Pedro para fazê-lo é injusto e devo falar pelo meu filho. Falo de alguém que amo, de um menino de seis anos que redimensiona a minha relação com a realidade, uma criança que eu geraria novamente, mil vezes, se Deus me permitisse. Pedro, portador de uma anomalia irreversível, é capaz de relacionar-se com as mínimas coisas com uma alegria, uma sinceridade, uma despretensão que fazem com que várias vezes eu questione a maneira como, por exemplo, me relaciono com as pessoas no meu trabalho, pois tenho absoluta certeza de que a relação do Pedro com os vizinhos, com os amigos do André, com a senhora que nos ajuda aqui em casa está bem próxima do que Deus espera de cada um de seus filhos. Somente faz sentido trazer à luz um filho se tivermos a consciência de que é por um Outro, que nos constitui, nos determina. É assustador que pretendamos determinar quem seria ou não viável para viver; isto nos destruirá antes de nos darmos conta, pois se alargarmos esse horizonte poucos poderão sobreviver. O fato de uma criança nascer viável não significa absolutamente que essa circunstância não poderá ser mudada. O que Deus espera dos homens é o mesmo relacionamento que os Pedros têm com a realidade; o dom da vida foi dado a esse menino, que não é um inviável: é irmão do André, filho do Joel, neto da D. Isabel, primo da Joice, afilhado da Malu, amigo do William, aluno da Marli, sinal do incomensurável amor de Deus pela minha pessoa, pois me deu o enorme privilégio de ser a mãe dele.
em nome de Pedro, Cida, de São Paulo

(Carta publicada em Litterae n. 70, julho/agosto 1999)


Relendo esta carta eu me comovi. Eu reafirmo tudo 8 anos depois e agora com muito mais alegria. Esta semana eu conversei com o “Pedrão” que fez o parto e eu pensava em quanto o Senhor é bom comigo e como é bom dizer sim diante de qualquer circunstância. E ontem eu li que em Portugal o aborto foi aprovado até décima primeira semana. Pensei: que pena, que derrota para um país tão católico! Mas, enfim, acho que é importante reafirmar aquilo que é verdadeiro ainda que a voz seja pequena e frágil.
Cida - São Paulo

 
 

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