Homem marcado pela experiência da dor, do sofrimento e da solidão, Nelson Cavaquinho percebe que é possível uma mudança na vida. Minha festa, samba onde a Presença de um Outro muda a realidade e acaba com a tristeza
Nelson Cavaquinho (1910-1986) nasceu e viveu no Rio de Janeiro. Seu nome era Nelson Antonio da Silva, um sambista singular na música brasileira. Seus sambas ligam-se a realidades muito dramáticas da existência humana, como a dor e a finitude. Suas temáticas estão ligadas a uma forte poética da morte, da dor, da boemia, incluindo a paixão pela Estação Primeira de Mangueira, as desilusões amorosas e a busca de uma vida feliz.
A vida, sem disfarces ou retoques, é apresentada nos seus sambas, o que levou o crítico José Ramos Tinhorão a compará-lo aos trovadores e andarilhos da Idade Média, onde tudo convergia para Deus, até a morte, mostrando uma unidade na vida e no sentimento expresso de existir.
Por muitas vezes escutei e mostrei aos meus amigos os sambas do Nelson Cavaquinho e todos ficaram sempre muito impressionados com as suas particularidades e mesmo com a maneira como ele canta, com uma voz rouca e rascante, tocando o seu incomparável violão: versátil, arpejado com força e singularidade. Ouvi-lo interpretar as suas canções é uma experiência de beleza e mistério, na qual o autor vai nos conduzindo a uma expressão bem legítima do que é o samba, do que é o cantar para expressar a beleza que ele transmite e não para agradar a determinados padrões.
Temáticas da vida
Nelson Cavaquinho é um sambista ímpar. Suas composições falam sempre da efemeridade da vida, da morte, das desilusões, como quem nos lembra que nem tudo é festa e regozijo como a imagem que alguns querem do Brasil. Somos alegres, sim, mas sofremos, temos medo e a morte nos ronda como rondou a todos na história humana, sem exceções, como nos mostra os azulejos do claustro da igreja e convento de São Francisco em Salvador, ou mesmo a série de pinturas, denominada Dança Macabra, numa igreja perto das montanhas de Trento, na Itália. A morte é uma experiência de vida e Nelson Cavaquinho entendeu essa realidade. Há uma identificação da sua música com a poesia de autores como Giacomo Leopardi (1798- 1837), poeta italiano de Recanati, caracterizado por seu pessimismo diante da vida, mas um pessimismo que faz compreender a realidade como feita por um Outro, e Augusto dos Anjos (1884-1914), poeta brasileiro, nascido na Paraíba, cuja obra versou sobre o sofrimento humano e a morte, dentre outros temas.
Há uma percepção da tristeza nos seus sambas, como poucos conseguem expressar. É interessante notar que essa tristeza assume, nas suas mais variadas manifestações, ora a esperança, ora a percepção de um bem ausente, de algo que falta para realizar a felicidade. Nelson Cavaquinho é um dos sambistas que mais constantemente faz referência a essa experiência humana.
A dor, a amargura e a força aparecem no samba Rugas, admirado por Vinícius de Moraes e Tom Jobim, no qual o autor apresenta um modo de se relacionar com o sofrimento, escondendo-o para que não contagie os outros, numa espécie de estoicismo, de uma introspecção:
“Se eu for pensar muito na vida
Morro cedo, amor.
Meu peito é forte,
Nele tenho acumulado tanta dor
As rugas fizeram residência no meu rosto
Não choro pra ninguém
Me ver sofrer de desgosto (...).
O samba A flor e o espinho, considerado um dos mais belos da música brasileira, pelo achado poético dos dois primeiros versos, mostra como a experiência da dor atravessa a existência humana.
“Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca flor
Eu só errei quando juntei minh´alma à sua
O sol não pode viver perto lua
É no espelho que eu vejo a minha mágoa
A minha dor e os meus olhos rasos d´água
Eu na tua vida já fui uma flor
Hoje sou espinho em seu amor”
Alguns sambas falam diretamente do fim, como no samba bíblico Juízo final, no qual, a despeito do seu pessimismo, o mal será vencido e o amor reinará, numa atitude de esperança, que supera o ceticismo, ou seja, há uma luz e uma presença que iluminará a realidade, conferindo-lhe novo sentido. Vejam que pouco a pouco o autor vai se aproximando de uma percepção onde chegará a resposta às nossas aflições humanas. Existe uma esperança que não decepciona.
“O sol....há de brilhar mais uma vez
A luz....há de chegar nos corações
O mal....será queimada a semente
O amor...será eterno novamente
É o Juízo Final, a história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparecer
O amor será eterno novamente”
No samba Eu e as flores, o autor, mesmo no desespero e na consciência da própria morte, reconhece que sua vida pertence ao Criador, ou seja, que a vida tem uma destinação concreta.
“Quando eu passo
Perto das flores
Quase elas dizem assim:
Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim
A nossa vida é tão curta
Estamos nesse mundo de passagem
Ó meu grande Deus, nosso criador
A minha vida pertence ao senhor”
O mesmo sentimento diante da morte, que caracteriza a obra de Nelson Cavaquinho aparece no samba Luto, onde a tristeza invade a sua alegria e Quando eu me chamar saudade. Interessante notar que a experiência do sofrimento em Nelson tem uma repercussão no corpo e na existência concreta, que merece ser respeitada, como se ele enfrentasse cada situação na introspeção, não querendo a interferência dos outros, mas o auxílio por meio de preces e do silêncio, por isso pede que o amigo não cante.
Outros aspectos presentes na obra do Nelson Cavaquinho são as desilusões amorosas e a perda da pessoa amada, que gera um sentimento de piedade e tristeza, como nos sambas Luto e Cuidado com a outra, este um samba misterioso, no qual vislumbramos que há uma questão mal resolvida de amor entre um homem e uma mulher, e este, exercendo sua piedade, a deixa entrar porque é dia das mães.
Mangueira, lugar de pertença
Uma das características mais interessantes dos sambistas é que eles em suas composições, e mesmo no nome que carregam, são identificados a uma pertença efetiva, a um lugar ou a um instrumento, como nos casos de Nelson Cavaquinho, Paulo da Portela, Paulinho da Viola e Martinho da Vila, dentre outros.
Num texto de 1982, o jornalista Tinhorão assim apresenta a história do apelido do compositor Nelson Cavaquinho: “A razão do apelido é que, pelos inícios da década de 20, o menino Nelson, tendo feito com as próprias mãos um cavaquinho de brinquedo, de madeira de caixas de charutos e cordas de barbante, apaixonou-se de tal forma pelos choros fingidos que lhe soavam na imaginação, que daí passaria ao cavaquinho de verdade (embora recebendo as primeiras aulas em instrumentos alheios, porque não tinha dinheiro para comprar um para ele)”.
Nos sambas essa relação de pertença a um lugar aparece de forma explícita, como no samba Folhas secas, que é um samba especial na obra do Nelson Cavaquinho e do Guilherme de Brito, seu parceiro, onde a morada é uma escola de samba, localizada em um morro específico, a Mangueira, que é o seu lugar onde a experiência da vida está ligada ao passado, ao presente e ao futuro.
“Quando piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira
Penso na minha escola
E nos poetas da minha Estação Primeira
Não sei quantas vezes
Subi o morro cantando
Sempre o sol me queimando
E assim vou me acabando
Quando o tempo avisar
Que eu não posso mais cantar
Sei que vou sentir saudades
Ao lado do meu violão
Da minha mocidade.”
Aqui a morada é um lugar, uma comunidade que evoca, traz sentimentos, lembranças. Neste samba notamos que há a percepção da vida como um ciclo de eterno recomeços em meio às labutas diárias e encontros. As coisas são sinais; as aparências (folhas secas de uma mangueira lembrando a Escola de Samba símbolo do Brasil, por exemplo) revelam significados profundos, histórias, sentimentos, laços.
Por um lado este samba vai mostrar a realidade do sinal, a percepção dessas folhas que caem e que quando pisadas o autor vai tomando contato com as lembranças que fazem-no rememorar fatos da vida. É uma espécie de maravilhamento diante do real que vai gerando uma relação de pertença àquele lugar. Por outro lado, o samba apresenta uma visão que valoriza a sacralidade do lugar, onde a realidade é percebida como provedora.
As perguntas, a procura
Alguns sambas falam da solidão e da procura do homem, por um encontro que realize a existência, como Luz negra, onde o sambista mostra uma abertura, apesar de sua circunstância. Há um desejo de realização, de encontro, que une o autor aos outros, que passa pela experiência de sofrimento, mas que o faz olhar para a realidade com olhos mais atentos.
“Sempre só
Eu vivo procurando alguém
Que sofre como eu também
E não consigo achar ninguém
Sempre só
E a vida vai seguindo assim
Não tenho quem tem dó de mim
Estou chegando ao fim
A luz negra de um destino cruel
Ilumina um teatro sem cor
Onde estou desempenhando o papel
De palhaço do amor”
Em outros há uma vontade irrestrita de sair à procura de um bem, de uma resposta, como no samba Vou partir:
“Vou partir
Não sei se voltarei
Tu não me queiras mal
Hoje é carnaval
Partirei para bem longe
Não precisas se preocupar
Só voltarei pra casa
Quando o carnaval acabar, acabar”
Sambas singulares: Minha festa e Deus não me esqueceu
Ao mesmo tempo em que o autor tem uma percepção tão aguda da dor e da tristeza, ele consegue apreender que a vida é, de fato, uma festa, é um acontecimento que ultrapassa até nosso entendimento.
Minha festa é um samba do Nelson Cavaquinho: curto, pequeno na estrutura, mas essencial para quem fez a experiência do encontro e diante dela a única postura humana correspondente é o agradecimento, a tomada de consciência do que nos aconteceu, que gera uma gratidão pelos amigos e pela vida que recebemos. Analisando a obra musical do Nelson Cavaquinho, este samba contém uma diferença substancial, referente a outros, pois foge às temáticas do autor, indicando um olhar positivo sobre a realidade. É como se o autor percebesse uma mudança em sua vida e agradecesse a Deus por tal mudança.
Nelson Cavaquinho - sambista brasileiro, um homem marcado pela experiência da dor, do sofrimento e da solidão percebe que é possível uma mudança na vida. Minha festa é o samba onde a Presença de um Outro muda a realidade, acaba com a tristeza.
Há, ainda, o traço mais paradoxal que é o “organizaste uma festa em mim, é por isso que eu canto assim”, pois geralmente a festa é um fenômeno, um acontecimento exterior, mas que aqui recai sobre a pessoa, internamente, ou seja, há uma mudança que é de dentro, acontece na pessoa que se percebe objeto de um amor e de ser agraciado com algum dom, alguma certeza que o faz viver.
Minha Festa é onde aparece a vida como acontecimento de encontros e descobertas. Este samba é de uma gratidão e um amor pelo encontro feito que raras vezes é expresso na música brasileira.
Na minha percepção é como se Cristo fizesse uma festa para cada um de nós, toda vez que a nossa liberdade diz sim e acolhe a Sua presença. Um amigo, certa vez, pediu, depois que cantei o samba para ele, que eu o cantasse e tocasse todos os dias antes de dormir, pois é a síntese de uma existência, coisa que fiz, tendo Nelson Cavaquinho como companheiro de humanidade.
“Graças a Deus,
minha vida mudou
Quem me viu,
Quem me vê
A tristeza acabou
Contigo aprendi a sorrir
Escondeste o pranto de quem sofreu tanto
Organizaste uma festa em mim
É por isso que eu canto assim”
O autor tem uma percepção da vida, assim diferente, onde concebe a existência com seus sofrimentos, mas com a possibilidade de uma redenção. Há uma esperança, há a percepção de uma resposta que ele, quando encontra, reconhece.
Como exemplo dessa percepção de certeza diante do sofrimento e de uma presença que o protege e acompanha está o samba Deus não me esqueceu:
“Quem vem ao mundo é para sofrer
uns fogem da vida mas eu quero viver
quem não sabe sofrer
não tem amor a Deus
carrego a minha cruz
Deus me ensinou
A suportar os sofrimentos meus
Assim irei até o fim
Feliz neste mundo quem pensa assim
Sou pobre mas sou rico
De bondade que Deus me deu
Deus não me esqueceu”
DISCOGRAFIA:
Muitas são as coletâneas e CDs de Nelson Cavaquinho disponíveis no mercado fonográfico. Algumas gravações que podemos destacar são:
Nelson Cavaquinho, ODEON, 1973;
Nelson Cavaquinho, série Aplauso, BMG, RCA, 1996;
Nelson Cavaquinho, série Raízes do Samba, EMI, s/data;
Nome Sagrado, Beth Carvalho canta Nelson Cavaquinho, 2001.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón