Vai para os conteúdos

Passos N.79, Fevereiro 2007

CULTURA - Rio de Janeiro / Exposição de Aleijadinho

As formas de um olhar apaixonado

por Juliana Perez

Aleijadinho, mestre da arte barroca, um dos maiores artistas brasileiros vivido no século XVIII, ganha exposição em sua homenagem no Rio de Janeiro. Um homem formidável, que viveu de fé e razão

Não são apenas as belas curvas do talhe, não é apenas a genial síntese dos elementos artísticos da época – a expressão das faces ovais, os olhos amendoados, os cachos cuidadosamente esculpidos, o drapeado das vestes, a robustez das figuras, as nuances da pintura de mestre Athaide –, não é somente o drama das cenas que comove nas obras de Aleijadinho (1738-1814). É aquela estranha vida nos olhares que parece perseguir quem admira suas esculturas, como se na madeira não se entalhassem figuras, mas o amor ou o ódio ao Mistério. O olhar de Nossa Senhora das Dores ou o de Senhor dos Passos, por exemplo, parecem ser um sim em silêncio e sem alarde; o olhar dos soldados dos Passos da Paixão é duro como o de quem se fechou a uma realidade que o supera.
Quem afirma o que um artista viveu ou deixou de viver sempre está submetido ao risco do subjetivismo – mas é quase impossível não imaginar que, ao esculpir o olhar de Maria e dos santos, Aleijadinho traduzia seu próprio olhar a Cristo. É conhecida a história de que o escultor pedia para seus ajudantes amarrarem o cinzel e o martelo em suas mãos e que se colocava a caminho do trabalho nas primeiras horas da manhã, para sair de lá à noite fechada. Também é conhecido o pedido de Aleijadinho para que Cristo colocasse seus pés sobre ele, para que acabassem seus sofrimentos com a doença que o deformara. E a religiosidade intrínseca às obras e à experiência de sacrifício de Antônio Francisco Lisboa parece condizer com o ambiente cultural da época.
No entanto, nem sempre se recorda que – para impedir a ingerência estrangeira na administração do ouro, entre outros motivos – o governo real português havia proibido a entrada de padres de clero regular e de ordens religiosas em Minas Gerais; que, em 1759, os jesuítas foram expulsos do Brasil; que até o início do século XIX só havia dois sacerdotes na região e que muitos padres, que chegaram no Brasil após esse período, já estavam formados no espírito iluminista que iria determinar a mentalidade “oficial” do país dali em diante1. Assim, a experiência de fé naquele período pode ter sido forte, mas certamente não foi óbvia e tranqüila, e o ambiente cultural em que as obras de Aleijadinho surgiram, talvez só não tenha sido tão árido quanto o atual porque a liberdade de expressão da sociedade não era cerceada como agora. Afinal, a fé foi conservada, transmitida e cultivada pelas confrarias leigas, irmandades e ordens terceiras, que encomendavam a construção ou a reforma das igrejas2.
Talvez por isso as figuras de Aleijadinho – sobretudo as imagens de Cristo, que ele exigia esculpir mesmo sexagenário e doente – possuam tanta força humana. Como escreve Manuel Bandeira, “... o diminutivo Aleijadinho é significativo da pura compaixão e meiguice brasileira. O homem a que ele se aplicou nada tinha de fraco ou de pequeno. Era, em sua disformidade, formidável. Nem no físico, nem na moral, nem na arte, nenhum vestígio da tibieza sentimental. Toda a sua obra de arquiteto e escultor é de uma saúde, de uma robustez e de uma dignidade que não atingiu nenhum outro artista plástico brasileiro. Suas igrejas, que apresentam uma solução tão sábia de adaptação do barroco ao ambiente do século XVIII mineiro, não criam aquela atmosfera de misticismo quase doentio que há, por exemplo, em São Francisco de Assis, na Bahia, ou na Misericórdia, de Olinda: nas claras naves de Antônio Francisco dir-se-ia que a crença não se socorre senão da razão”3.

Uma fé que provêm da razão
Entre 1790 e 1794, esta razão apaixonada cria o “espaço harmônico” da Igreja de São Francisco de Assis, que atinge a “unidade através de uma seqüência de irregularidades a convergir para um centro harmônico”4. Entre 1796 e 1799, concebe e entalha, com o auxílio de vários ajudantes, as 64 figuras do Santuário de Bom Jesus dos Matosinhos. Segundo os especialistas, as figuras da Ceia e do Horto foram todas esculpidas por Aleijadinho; na cena da prisão, apenas Cristo e Pedro foram inteiramente entalhados por ele, que orientou de perto o trabalho nas figuras secundárias. Da mesma forma, o ateliê de artistas realizou, sob sua orientação, a maior parte das figuras da Flagelação e da Coroação de Espinhos, mas não o entalhe das duas figuras do Cristo atado à coluna, feitas por Aleijadinho; assim também na Via Crucis, em que ele entalha as figuras centrais de Jesus e da mulher que enxuga as lágrimas; e o comovente Cristo da Crucificação, deitado com os braços abertos a um abismo celeste5.
Se sua fé provém toda da razão, como afirma Bandeira, trata-se de uma razão que se apaixonou pela humanidade de O Senhor dos Passos. Como também diz Drummond: “A contradição fundamental entre o estilo da época – elegante e amaneirado – e o ímpeto poderoso de seu temperamento apaixonado e tantas vezes místico, contradição magistralmente superada, mas latente e que, por isso, de quando em quando extravasada, é a marca indelével de sua obra, o que lhe dá o tom singular e faz desse brasileiro das Minas Gerais a mais alta expressão individualizada de seu tempo”6.
Paixão e razão, portanto, levam-no a criar, entre 1800 e 1805, as imagens dos 12 profetas para a plataforma do Santuário de Bom Jesus dos Matosinhos, que comparecem na exposição por fotos dos anos 50. Integrados à paisagem e ao povo que os cerca, os profetas fazem o visitante se perguntar mais uma vez: para onde eles olham e de onde vem seu olhar? E como foi possível criar uma obra assim? Talvez não se possa responder a perguntas assim de modo exaustivo, mas não há como negar: as figuras de Aleijadinho são as formas de seu olhar apaixonado por Cristo.

NOTAS
1 Cf. Moreira, Dom Gil Antônio. “Religiosidade e arte em Minas Gerais no século XVIII”. In: Aleijadinho e seu tempo. Fé, engenho e arte. Catálogo da exposição. Org. Fábio Magalhães. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2006, p. 55.
2 O Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, por exemplo, onde se encontram as capelas com os Passos da Paixão, foi encomendado por Feliciano Mendes, minerador português, como pagamento de uma promessa. Idem, p. 56; 230.
3 Bandeira, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1938. Apud: Aleijadinho e seu tempo, p. 230.
4 Cf. a expressão de Germain Bazin e o comentário na “Cronologia da vida e obra de Antônio Francisco de Lisboa”, no catálogo Aleijadinho e seu tempo, p. 230.
5 Na exposição, estas imagens podem ser vistas em um vídeo que, além de mostrar as imagens em close, favorece a observação de belos detalhes dos conjuntos.
6 Carlos Drummond de Andrade, apud: Aleijadinho e seu tempo, p. 232.


Aleijadinho e seu tempo - Fé, engenho e arte

por Marina Massimi


Aberta para visitação até 11 de fevereiro no Rio de Janeiro, a exposição do Centro Cultural Banco do Brasil contextualiza Minas Gerais no Brasil e no mundo, no século XVIII, e sua expressão artística máxima: o barroco brasileiro em Aleijadinho e seus contemporâneos


Numa sala do segundo andar do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, a imagem de Nossa Senhora das Dores surpreende o visitador: seu olhar carrega a dramática e universal pergunta sobre o significado da dor humana. E realmente, ao visitarmos esta bela exposição Aleijadinho e seu tempo: fé, engenho e arte – acompanhada de uma contextualização histórico-cultural, séria e didática, acerca do momento histórico em que viveu o grande artista brasileiro –, temos a impressão de que Aleijadinho não foi apenas filho de seu tempo, o maior representante do barroco brasileiro, mas de que é um gênio da humanidade. Sua obra é universal pela capacidade de transmitir por meio de fortes traços expressivos as grandes evidências e exigências do coração humano.
Algumas peças de estatuária ali expostas, bem como a proposta dos vídeos com detalhes das imagens das capelas dos Passos de Congonhas (estrategicamente colocados num pequeno corredor que o visitador pode percorrer vagarosamente contemplando as imagens), permitem apreender o modo como o grande artista viveu, concebeu e representou o profundo mistério da experiência humana. Mistério este que ele mesmo protagonizou com sua história pessoal marcada pela incomensurabilidade e desproporção entre a afirmação crescente de sua potência criativa e a dissolução progressiva de seu corpo deforme. Com efeito, Antônio Francisco Lisboa, filho natural de uma escrava e do arquiteto português Manoel Francisco Lisboa, nascido em 1738 e falecido em 1814, tornou-se “o Aleijadinho” por ter contraído doença venérea aos 47 anos de idade. Aos poucos tornou-se deforme, perdendo todos os dedos dos pés (de modo que somente podia andar de joelhos) e das mãos. Perdeu seus dentes e adquiriu uma expressão medonha, de forma que preferia trabalhar e viver escondido da vista do próximo.
Na consciência de Aleijadinho, cristão convicto e terciário da família franciscana, esta desproporção foi vivida como participação da cruz de Cristo e oferta da própria vida e da própria obra, associada à entrega do próprio Jesus. Assim como o belíssimo Cristo paciente (exposto na sala do segundo andar) que carrega a cruz em seu corpo e cujo olhar expressa a aceitação, o artista carregou em si mesmo e em sua arte o mistério profundo do sofrimento e, pela oferta de sua dor, tornou-a reveladora de sentido para os homens.
O percurso da dor humana é colocado ainda nos Passos do Cristo de Congonhas. Obra madura do artista, que representa o gesto extremo de doação de Cristo na Última Ceia, em companhia dos Doze, passando para a solidão do Horto – cena em que Aleijadinho faz questão de contrapor o sono e a distração dos discípulos –, à agonia de Jesus diante da consciência do iminente destino da Paixão e da morte. Expressam aceitação os braços abertos de Jesus e seu olhar diante do anjo enviado do Pai para confirmar e consolar. Nas cenas da Paixão, prisão e flagelação, Cristo fixa seu olhar nos soldados e nos espectadores como a perguntar o por quê de sua injusta e inocente dor. Carregando a cruz, volta seu olhar para a Filha de Jerusalém, que segue chorando. E, por fim, pregado, na cruz, seu rosto é definitiva e solenemente composto numa expressão última de entrega amorosa aos homens e de abandono confiante ao Pai. É uma dor cheia de paz que contrasta com os rostos tensos, embrutecidos e raivosos de seus perseguidores. As posições dos corpos e os olhares das personagens da história sagrada que Aleijadinho nos propõe, expressam definitivamente sua pessoal experiência e a colocam no drama universal da história sagrada.
A exposição mostra vídeos contendo a história de Vila Rica (Ouro Preto), a vida do artista, bem como os mais importantes exemplos da produção de Aleijadinho (como a Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto e o conjunto de esculturas de Congonhas do Campo), além de apresentar várias talhas do mestre e outras obras de artistas a ele contemporâneos.


SERVIÇO

Aleijadinho e seu Tempo – Fé, engenho e arte
Exposição Multidisciplinar
Até dia 11 de fevereiro de 2007
Centro Cultural Banco do Brasil – Rio de Janeiro
Endereço: Rua Primeiro de Março 66 – Centro
Horário: De terça a domingo das 10h às 21h
Informações: (21) 3808- 2020
E-mail: ccbbrio@bb.com.br

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página