Anton estuda Kant. Rosa, os polinômios. Ao longo dos corredores, classes e carteiras, parecendo uma escola. Porém, é final da tarde, e os professores não estão à frente da sala, mas lado a lado com os jovens. Mais de mil estudantes e quinhentos voluntários os ajudam no estudo. Aí estão os ingredientes de uma realidade única no mundo escolar de Milão. Fomos ver o que está acontecendo ali, onde nascem histórias e amizades antes inimagináveis
Milão, rua Papiniano, ao longo dos Bastioni, antigos muros seiscentistas da cidade. Hora: 14h30. Uma jovem atravessa a rua. Véu na cabeça; branco como açúcar. Olhos escuros, a pele do rosto cor de azeite. É egípcia. A mochila nas costas está cheia de livros; ela havia passado a manhã toda na escola. Pela calçada, caminha por entre as caixas de madeira de uma feira que está encerrando o expediente. Na frente dela, uma maciça construção de mármore e tijolos. Antigamente, havia ali um célebre instituto profissionalizante. Hoje, uma escola de ensino médio ocupa parte do edifício. A jovem entra por um pequeno portão. Segue ao longo de um muro grafitado de amarelo e verde até a porta principal, acima da qual está escrito: “Portofranco”. Sobe a escada até o segundo andar.
“Veja, depois do almoço começam a chegar os jovens, como eu lhe disse”, explica Alberto Bonfanti, indicando a jovem, no momento em que nós também voltávamos ao edifício, depois de tomar um café num bar próximo. Professor em um colégio de Milão e presidente da Associação Portofranco, ele foi um dos iniciadores dessa que ele prefere chamar de “aventura”, ao invés de obra educacional. Ele é o guia ideal para alguém, como eu, que pretende passar um dia inteiro no centro, que há dez anos representa algo inédito no panorama escolar milanês.
CADA MATÉRIA UMA COR. A ideia? Simples. “Na cidade há muitos alunos que têm dificuldade em certas matérias. Portofranco é um lugar onde os jovens podem vir estudar com a ajuda de voluntários, que são professores ou universitários, num atendimento personalizado. E tudo isso de graça.” Simples mesmo. O prédio foi cedido em comodato pela Prefeitura à Associação. Basta um giro pelo corredor, cheio de classes, para entender que o trabalho ali é sério, e que não se trata apenas de “quatro paredes” onde as pessoas podem estudar. Isso fica claro quando a gente observa os murais, com regulamentos e avisos; ou as folhas de presença, na entrada, onde os que chegam precisam deixar a própria assinatura, com horário de entrada e saída. As cartolinas pregadas na parede, cada uma de uma cor, identificam as matérias nas quais o voluntário pode ajudar; por exemplo: amarelo para matemática; azul para italiano.
Na parte da manhã, deparei-me com os números. “Só no ano passado tivemos mais de 1.200 alunos inscritos, que vieram de cerca de 130 escolas de ensino médio de Milão; foram quase vinte mil horas de aulas, em duzentos dias letivos”, desfiou Alberto. Depois, um rápido giro pela estrutura, entre o laboratório de informática e os armários cheios de livros. Ao meio-dia, uma reunião de equipe, com cerca de vinte pessoas ao todo: na ordem do dia, vários temas, do jovem que tem um pai na cadeia ao fato de que são necessários mais voluntários. Em seguida, todos na sala de italiano, “porque uma vez por semana nós, operadores, almoçamos juntos”, explicam.
Depois do almoço, o corredor vazio começa a ficar animado. Os jovens vão chegando, com as mochilas lotadas. A maioria vem direto da escola. Param na entrada, sob o olhar vigilante de Alba Valli, secretária do Centro, com a cara fechada; mas, pela maneira como os jovens a saúdam, a gente logo compreende que gostam dela e que ela gosta deles. Na metade do corredor, um compartimento acolhe as máquinas de café. Luca Cova, operador do centro, recebe os alunos com uma folha na mão, organizando o trabalho de encaixar cada aluno com o voluntário que o ajudará. “Professor, o senhor é do italiano? Você, Safia, precisa de ajuda no italiano, certo? Então, vá com ele.” E ambos saem, caminhando até o fundo do corredor, à direita. “Andrea, você ajuda em álgebra?” Rosa precisa de uma força. Juntos vão para a grande sala de matemática, onde já se encontra com dificuldade um banco livre. “Parece tudo confuso e desorganizado”, diz Alberto sorrindo. “Na realidade, a gente procura seguir um esquema de reservas: os jovens se inscrevem, uma ou duas semanas antes, nas matérias em que precisam de ajuda. Com esse sistema, evitamos que haja aluno sem professor ou professor sem aluno.”
COMO NUM “JOGO”. Nas classes, os alunos estão concentrados, cabeça inclinada sobre os livros. O único barulho é o murmúrio do estudo feito em duplas, com perguntas, respostas, sugestões. Uma atmosfera bem diferente de outros lugares, onde o aluno se contenta em passar os olhos pelo caderno cheio de polinômios ou de versões de grego. Com Alberto, percorremos todo o corredor. Os jovens continuam a chegar e Luca, com os operadores Andrea Diamantini, Giovanni Borgonovo e Aldo Baldini (os dois últimos, professores da rede pública liberados pelo Governo para trabalhar em Portofranco) continuam o seu “jogo de encaixe”, composto de classes, jovens e voluntários.
Às 16h30 termina o primeiro turno. “Depois de anos de trabalho, estabelecemos que o melhor método seria o de fixar um teto máximo de duas horas para cada aula, até para segurar a atenção dos jovens. Esse tipo de método também os responsabiliza em relação ao que devem estudar”, explica Alberto. Os alunos saem das classes em grupinhos; os que terminaram, ficam um pouco mais conversando no corredor; os outros se apresentam e se dirigem para a sala, agora com um professor diferente.
ABDEL E A “COMÉDIA”.É algo surpreendente observar, ou melhor, admirar uma centena de agitados adolescentes debruçados sobre livros, passando uma tarde inteira estudando. E não se trata de jovens “caxias”... Alguns até que vão bem na escola, como Vittoria, de origem egípcia, que em grego consegue a média oito. Mas muitos são como Abdel: “Por que venho aqui? Claro, porque tenho dez em italiano e conheço de cor a Divina Comédia”, diz ele por brincadeira, arrancando a risada dos colegas. Embora alguns versos de Dante ele, de fato, saiba de cor.
Durante a mudança de turno, eles reservam alguns minutos para o bate-papo. Muitos deles são estrangeiros. Alguns nasceram na Itália, de famílias de imigrantes. Os italianos de origem são uma minoria, em meio a egípcios, ucranianos, marroquinos, bolivianos, etc. Diversos, por proveniência e por religião: cristãos coptas, ortodoxos, muçulmanos. No entanto, entre Marco, Mohamed, Linda, Hassina, Tony e Emanuele há algo que a gente não consegue captar totalmente: uma familiaridade, uma amizade surpreendente. Eles não têm afinidade nenhuma entre si. Um veio até aqui convidado por um amigo, outros ouviram falar do Centro na escola, outro veio porque a avó o obrigou e ela controla de perto o que o neto faz. Eles contam para nós que, quando forem adultos, querem ser engenheiros ou voltar para o próprio país. Falam que começaram a participar da caritativa da Cometa (a casa-família de Como, onde nasceu também uma escola profissionalizante), a convite de Alberto. Descrevem as férias juntos, na montanha. Contam até que organizaram grandes eventos culturais. Como aquele em que levaram a exposição sobre os jovens da Rosa Branca para o centro de Milão. “Se este lugar não existisse, eu estaria perdido, vagando pelas ruas, como tantos amigos da minha idade”, sublinha Momo, egípcio, com os olhos brilhantes por causa da gripe. Ele estuda no Quarto Oggiaro, um instituto técnico. Rosto de um garoto esperto, olhar atento e mente lúcida. Ele não tinha aula agendada para hoje, mas veio assim mesmo, embora para isso tenha atravessado a cidade.
CASOS COMPLEXOS. Com Alberto retomamos o giro pelo prédio. Na entrada da secretaria, um jovem está passando por uma entrevista. “Serve para a gente entender de que tipo de ajuda eles precisam.” Às vezes, basta o estudo com um colega mais velho. Em outros casos, é necessário um acompanhamento mais de perto. “Alguns jovens apresentam situações muito complexas”, explica Andrea, que com Daniela Mancioppi coordena essa atividade do Centro. “Eles precisam de alguém que os acompanhe de perto, que tenha contatos diretos com a família, que chegue a falar diretamente com os professores da escola. Hoje temos quase uma centena de casos desse tipo.” “E há também dois serviços que criamos recentemente”, acrescenta Alberto. A orientação vocacional, aberta em 2007, e o serviço de escuta, aberto um ano depois, onde os jovens podem conversar com um psicólogo. “Estão ainda em fase experimental, mas já percebemos que são muito úteis: muitos dos que vêm para cá por causa de uma nota quatro no boletim escondem situações pessoais complexas, ligadas à família ou a outros contextos. O fato de haver aqui um psicólogo à disposição melhora a nossa ajuda a eles.”
JANTAR COM O PADRE GIORGIO. A conversa prossegue, num rápido intervalo entre as aulas. “Você pode estar se perguntando como nasceu tudo isto”, diz Alberto, antecipando-se à pergunta que eu faria. “Da paixão educacional de alguns professores. E do padre Giorgio Pontiggia. Há dez anos, com um grupinho de professores, conversávamos, durante o jantar, com esse sacerdote de CL, falecido em outubro do ano passado. ‘Precisamos fazer alguma coisa por esses jovens. Partir deles, da necessidade deles. Que é ajudá-los a fazerem o que têm que fazer nessa idade: o estudo’, nos dizia ele.” O portão de Portofranco abriu-se em setembro de 2000, e naquele ano houve 130 inscritos.
A ESPINHA DORSAL. “E fomos crescendo: em 2004 nos tornamos uma associação e veio o primeiro reconhecimento da Prefeitura de Milão. E em 2006 também o Governo do Estado nos reconheceu como ‘fornecedores de serviços de formação e de orientação’”, explica Franca Bonola, diretora do Centro, que com Aurelio Rampini e Antonella Lembo ocupa-se de toda a parte administrativa e burocrática da associação, “da coleta de fundos à preparação dos projetos a serem apresentados às instituições”. E depois nasceram outros centros por toda a Itália. “A família de Portofranco conta, hoje, com mais de vinte irmãos, de Varese a Rímini, em Bolonha, em Cagliari...”
“A espinha dorsal de uma obra como esta são os voluntários, os professores, os universitários. Há também profissionais aposentados que vêm nos ajudar. Em média, são quinze professores e quarenta universitários por dia. Parecem muitos, mas nunca são suficientes. Portofranco sobrevive exatamente graças à disponibilidade e à caridade que muitos deles, como nós, aprenderam no encontro com Dom Giussani.” Serenella Carmo, por exemplo, é uma professora aposentada de História e Filosofia. Frequenta Portofranco desde o início. “Vir aqui é antes de tudo uma oportunidade para mim. Diante desses jovens, com suas dificuldades e também com culturas totalmente diferentes da minha, me sinto obrigada a me questionar sobre a razão de estar aqui. E eu entendo, quando vejo a desproporção entre aquilo que faço e aquilo que, por meu intermédio, um outro Alguém gera.” Como quando Giovanni, seu colega professor no Colégio Allende, se aposentou e ela se sentiu à vontade para convidá-lo a colaborar com o Centro. “Éramos colegas, mas com ideias totalmente opostas em termos de religião, de política... Quantas brigas!”, recorda o professor. “Aí veio o convite. Eu estava em casa, e percebi que ainda tinha muito a dar aos estudantes. A descoberta? Que quanto mais a gente se esforça para dar, mais a gente recebe. Ao dar uma resposta à necessidade deles, tomamos consciência de que na realidade estamos dando resposta a uma necessidade nossa.”
Isso vale também para Gabriele, que ainda estuda na universidade e não tem experiência no campo educacional: “Há cinco anos que ajudo os alunos em Portofranco.” Matriculado em Economia na Universidade Bicocca de Milão, retorna de uma tarde de aulas de economia empresarial. “Nunca imaginei que me tornaria amigo de um muçulmano muito mais novo que eu. Uma noite, ele me convidou para ir à sua casa, para o jantar, em pleno Ramadã. Sua mãe me agradeceu muito, mas era um agradecimento a Portofranco. Pelo que fazemos pelo seu filho, pelo fato de ver como ele mudou depois que começou a estudar conosco. Dar aulas de economia me agrada, claro. Mas a ajuda que danos damos é muito maior do que uma simples aula, que podemos dar mais ou menos bem; começa por aí, mas é a exigência de uma companhia humana. Que ajuda não só a aumentar as notas no boletim. Ajuda a crescer.”
QUESTÃO DE CORAÇÃO. “Quanto mais os observo, mais percebo que estamos presenciando um milagre”, me diz Alberto, ao nos despedirmos, no final do dia. “Explicando melhor: quando padre Giorgio morreu, preparamos um momento de recolhimento. A certa altura, eclodiu uma briga entre alguns jovens. Em árabe. Luca, que estava presente, não entendia nenhuma palavra do que diziam. Depois, descobrimos o que havia acontecido: uma jovem muçulmana havia dito, baixinho, uma frase do tipo: ‘Não estou nem aí com esse padre morto. Quero que os cristãos vão todos para o inferno’. Um jovem, que estava perto dela, ouviu e iniciou-se a discussão. ‘Como você pode dizer uma coisa dessa de alguém que criou esta coisa tão importante para a nossa vida?’. A moça voltou no dia seguinte, chorando, pedindo desculpas. Dizia que não havia usado o coração ao julgar aquela pessoa...”.
O coração! Ao me afastar da entrada, seguindo pela calçada, vou percebendo como estou plenificado, depois de uma jornada como essa. Parado no semáforo, olho para trás, para aquele que, há uma semana, era apenas um edifício anônimo. Do portão saem Abdel e Momo, sorridentes. Quem imaginaria a riqueza que se esconde atrás daqueles muros?
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OS NÚMEROS
*1.270 estudantes inscritos durante o ano escolar 2008/09. Um quarto eram estrangeiros.
* 457 voluntários, entre professores e universitários, em 2009.
* 4.985 horas/aula de matemática durante o ano passado nos seus 194 dias de funcionamento.
* 52.742 horas de estudo nos 22 centros da “Portofranco Itália” em 2009.
Credits /
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón