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Passos N.110, Novembro 2009

MOVIMENTO - CHIOGGIA

Da amizade à clareza do olhar

por Davide Perillo

A história, os relacionamentos, as obras... Viagem por uma comunidade bem arraigada, em que “tudo já existia”. Mas na qual, a partir do testemunho de Cleuza e Marcos Zerbini nos Exercícios dos Trabalhadores do ano passado (e de uma pergunta verdadeira), algo novo começou. Algo que vem impelindo o olhar para além das coisas habituais

De vez em quando acontece um dia como este, em Chioggia. O vento varre as nuvens e a neblina cobre a espuma cinza das ondas. O céu fica límpido, cristal puro. E o olhar – livre – pode chegar além do horizonte, conseguindo enxergar aquilo que normalmente não se vê: as montanhas além da lagoa. O fundo do real. É em dias como este que, entre os barcos e os canais gêmeos das ruas de Veneza, irmã mais velha amada e odiada, pode-se ouvir uma expressão não usada em outro lugar, mas capaz de dizer tudo a todos: “Olhe ali, a vista límpida”, diz Bárbara, apoiada no parapeito do dique. Viro a cabeça para onde ela olha. E, enquanto o coração bate mais forte diante do espetáculo, penso que, no fundo, a história recente da comunidade de Chioggia está toda ali. Uma vista límpida. Um olhar sobre as coisas habituais que agora alcança além delas.
É por isso que estamos aqui. Não para contar fatos extraordinários ou sei lá que tipo de revoluções. Em Chioggia, o Movimento existe há anos. Muitos: quase quarenta. E quando percorremos esta história tão arraigada, é possível encontrar de tudo. Pessoas de fé sólida. Pastores atentos (três paróquias nas redondezas, incluindo a de Sottomarina). Até uma presença pública clara e forte: pessoas empenhadas em política, com a escola e obras educativas... Não faltava nada. E de fato, à primeira vista, não se acrescenta nada. Porém, vai-se até o fundo daquilo que existe. Exatamente como aconteceu com Lorenzo que, de certo modo, está no início desta estranha história de florescimento e crescimento. “Tudo começou há dezoito meses, nos Exercícios dos Trabalhadores”, conta ele, na sala de sua casa, um sobrado da periferia, onde o ar marítimo sopra costeiro e forte. “Fui aos Exercícios para trabalhar: cuidava dos vídeos e das gravações.” Bárbara, a mulher, ficou em casa com as crianças. Os clássicos telefonemas desses casos: “Então, como vão as coisas? Como você está?”. A resposta é que é diferente: “Estou como nunca estive em minha vida”. Algo tinha acontecido. As palestras, com certeza. Mas, sobretudo, o testemunho de Cleuza e Marcos Zerbini. “Eu os tinha visto e revisto na montagem da aparelhagem de vídeo; mas não tinha dado muita importância àquela mulher com uma jaqueta de nylon nas costas.” Depois, os vi ali, em carne e osso, e aventura humana: “Foi como ser tocado por um desfibrilador e sentir o coração recomeçar a bater. A partir daí, não podia mais voltar para casa e continuar a viver como antes. Precisava ir a fundo”. Só isso? – vocês diriam. Só isso. Porque esse “ir a fundo” tornou-se imediatamente uma pergunta feita a Mario Dupuis, alguém que não mora em Chioggia, mas em uma cidade que fica uma hora a oeste. Ele é o motor de uma obra educativa de Pádua que acolhe dezenas de jovens “difíceis”, mas é também amigo histórico da comunidade de Chioggia: “Mario, você faria Escola de Comunidade comigo?”.

A porta aberta. Bastou este gesto para abalar tudo. Este gesto e o “sim” discreto, mas decidido, de Mario. Começaram a reunir-se em três ou quatro. Trouxeram os amigos aos poucos, um por vez, pelo boca-a-boca. E o todo começa a ser direção para o resto, para aquilo que já existe. Começando pelos relacionamentos. “Inclusive com pessoas conhecidas há anos e sobre as quais achamos que conhecemos tudo”, conta Silvio, empresário da área de turismo, um dos primeiros a participar daquele estranho grupo, “e um dos primeiros a ter a tentação de ir embora de repente, quando vi quem estava ali: pessoas com as quais tinha anos de desavenças e inimizade. No entanto, com elas, o relacionamento mudou aos poucos, ouvindo como Lorenzo falava delas. Isso, para mim, significou dar espaço ao Mistério”. Espaço dado aos poucos, sem pressa. Mas que, diante de certos fatos, tornou-se uma vertigem. Uma ferida aberta. Por exemplo, a luta de Franca. Ao entrar em sua casa, tudo fala de um pedido. Mirco, o marido, morreu há alguns meses, se suicidou. Estava paralítico há oito anos. Um incidente, a cadeira de rodas. E uma dor física que aumentava com o tempo, ao invés de diminuir. “Sempre nos acompanhou. Até tornar-se insuportável”. Franca, enfermeira do departamento de nefrologia, sabe bem do que está falando. Mas também sabe o que ajudou a tornar aquela dor uma tensão contínua em direção ao significado de tudo: os amigos. “A pergunta que me fiz foi: o que posso fazer para não me perder? A que posso me ligar? Precisava de alguém que me ajudasse a manter a cabeça erguida, a encontrar um sentido. Não podia viver aquele sofrimento sozinha. Mas também Mirco, a seu modo, fez um caminho, ora se abrindo, ora se fechando.” Um caminho percorrido junto com alguns rostos, com amizades que no último ano tornaram-se necessárias. “A um certo ponto, ele também começou a dizer ‘a minha fraternidade’, ‘quando vamos nos encontrar?’, e perguntava: ‘mas era realmente necessário que Cristo escolhesse esse caminho para se fazer presente?’”, conta Silicio. No fim, sucumbiu. Deixou um bilhete onde, pedindo perdão, falava de Cristo. E um desafio, que Lorenzo relançou assim: “O que quer dizer que Cristo venceu também este drama?”. Pergunta aberta, como a porta da casa de Franca. Onde os amigos vão e vêm e o humano floresce a ponto de ser difícil deixar de ver um toque de resposta.

“Mas aquilo te agrada?”. A mesma que se percebe em outra casa, onde uma doença, há poucos meses, levou Luca, deixando traços de uma humanidade impensável. “Uma coisa misteriosa”, conta Betty, a mulher: “Humanamente, nunca a desejaríamos. Mas a abraçamos como se fosse o Mistério que chegava. Posso abraçar o Mistério ou blasfemar contra ele. Mas, tudo parte daquilo que você deseja e do quê responde realmente a este desejo. O destino está nas circunstâncias, mas não é a circunstância. A companhia nos ajuda a perceber isso. Faz-nos entender que nesse momento, talvez seja mais difícil reconhecê-Lo, mas Ele existe”. A ponto de o irmão, Luigi, poder acrescentar, sereno: “Nada acabou. Ao contrário, os relacionamentos tornaram-se mais intensos. Esse é o dom destes meses: que a estrada está marcada”. Aí está: a vista límpida. Relacionamentos mais intensos e um modo novo de fazer as coisas habituais, nascido do levar a sério o trabalho da Escola de Comunidade. Como nos conta Barbara, enquanto embarcamos num vapor que, em breves quinze minutos, nos levará a Pallestrina, península de terra em pleno mar aberto. “A diferença pôde ser percebida nas últimas férias: um florescer de amizades. Mas, sobretudo, senti-me tomada por mim mesma, não porque era ‘o gesto do Movimento’.”
Esperando-nos na ilha, havia um outro pedaço histórico da comunidade de Laguna. Da Vincenzo, o responsável local, que é pescador e cria mariscos, nos acolhe em sua casa para o almoço, falando sobre a intensidade de vida que brotou entre as pessoas dos Bancos de Solidariedade e sobre a Escola de Comunidade. E Giovanni, pedreiro que tem a fotografia como hobby. Ele lembra do seu testemunho na Assembleia dos Bancos, no ano passado. “Naquele dia, em Milão, me arrepiei. Depois, nos Exercícios, entendi o que eram aqueles arrepios: era o meu coração. Como se um Outro tivesse entrado em meu coração e o tivesse escancarado. E este Outro tem esses rostos: Silvio, Lorenzo...” Ou uma amiga, encontrada outro dia, que me disse que a clareza do olhar desperta a curiosidade de novas pessoas: “mas, você também vai às coisas de CL? Aquilo te agrada?”. Eu respondi: “olha só, não é de forma alguma apenas um passeio. É a vida. É aquilo pelo qual esperei a vida toda”. A mesma coisa pela qual esperava Mattia, outro rosto em volta da mesa, sentado ao lado da mulher, Anka. Ele encontrou o Movimento em um vai e vem da prisão, atraído por um certo padre que, primeiro, desapareceu e, depois, voltou para sua vida para arrastá-lo em um giro que o levaria até o fundo: “Tudo o que quero é ser amado. Encontrei alguém que me ama. E não posso mais ficar com o pé atrás. É muito grande este acontecimento”.

“Não é um projeto”. Outro barco, outro quarto de hora. Passamos no santuário construído no lugar onde, em 1716, Nossa Senhora apareceu a Natalino, um menino de quatorze anos, de Pallestrina, falando com ele em dialeto (“Vem aqui, filho, vai ao pároco e diga-lhe para celebrar missas pelas almas do Purgatório...”), e depois em São Domenico, igreja mãe de Chioggia, onde há um grande crucifixo de madeira que, de acordo com a posição em que é olhado, muda de expressão. Uma ponte acima está a Domus Clugiae, antiga casa religiosa restaurada pela comunidade de Chioggia. Agora, acolhe turistas e estudantes. Mas é também um ponto de apoio para uma realidade como a Obra Baldo, grupo de recuperação que trabalha com jovens que têm dificuldade de aprendizado (cerca de oitenta estudantes do ensino fundamental e médio). “Essa obra não nasceu de um projeto, não queríamos construir uma obra desse tipo”, conta Piergiorgio, psicólogo e diretor: “Deparamo-nos com uma necessidade”. Feita de histórias e rostos. Maria Silvia, por exemplo: 15 anos, um caso daqueles que os especialistas chamam de “multiproblemático”, um destino marcado. “Todos diziam que não passaria do ensino médio. Nós preparamos um programa ad hoc para ela: estudo e acompanhamento, envolvendo outras comunidades da região. Agora, está no colegial.” E os pais, seguidores de Sai Baba, encontraram o cristianismo. “Está acontecendo aquilo que Dom Giussani desejou anos atrás: ‘Desejo que vocês nunca fiquem tranquilos’.”
Vale para todos, inclusive padres. Como diz padre Lino, dez anos de missão no Paraguai, antes de voltar para Laguna: “Nunca pensei que pudesse renascer aos sessenta anos. Conheço tudo por aqui: a cidade, a igreja, o Movimento. No entanto, há uma nova aventura para viver”. E padre Angelo, guia histórico dos moradores de Chioggia: “O que está acontecendo? A minha liberdade. Estou muito mais arrojado, agora. É um dado. Não é um projeto: é algo que vejo”. E que passa por rostos familiares. Os rostos dos amigos que chegam aos poucos. Setenta, oitenta pessoas em volta de uma pizza para retomar o livro O senso religioso e participar da sessão de pergunta e resposta com Mario e Lorenzo, que agora também tem a responsabilidade de guiar a comunidade. “Eu, que nem mesmo sei o Memorare em latim...” Risadas de amigos e um confronto denso, entre os dois, agora mais do que amigos. Levo-os no coração quando entro no carro para pegar o caminho de casa. É noite. Penso naqueles rostos, em uma colocação de Mario (“Estão vendo? Tudo já existia: só era preciso não resistir à atração de um Outro”). E em uma frase que Lorenzo disse quase sem perceber, entre um trajeto e outro: “Às vezes, quando estou dirigindo, penso que a pessoa que está no carro da frente tem o mesmo desejo que eu. Quer aquilo de que eu preciso. Mas não sabe disso. E isto me aperta o coração, e fico comovido, pela preferência que Cristo tem por mim...”. O pedágio é o mesmo de sempre, os carros os mesmos de qualquer avenida. Mas, para quem aprende a olhá-los dessa maneira, eles se tornam um espetáculo. Uma clareza do olhar.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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