Junto de Sherlock Holmes, outra figura mundialmente conhecida como protagonista de literatura policial é o padre Brown (criado por G. K. Chesterton): uma espécie de detetive capaz de desvendar grandes enigmas com uma simplicidade desconcertante. Sempre presente como intenso observador, ele surpreende ao revelar como as tramas se dão, quase como se fossem óbvias. Isso já provoca muitas interrogações: como ele sabe quem é o criminoso e como as artimanhas se configuram? Ele tem uma solução mágica? Seria ele um visionário? Suas soluções se apresentam por intuição mais que por raciocínio? Qual seria seu método tão infalível? Ou padre Brown tematiza a possibilidade do realismo?
Curiosos são também os personagens tão bem nomeados de “O homem invisível e outras histórias de padre Brown”, salpicados de humor inglês. Só para citar alguns: Smythe, o homem simples, ocupado em futilidades, garboso mas nanico, assemelhando-se demais a um cavalheiro para de fato sê-lo, capaz de usar toda criatividade e todas as armas para conquistar seu pretendido amor. Angus, o angustiado e andarilho senhor alto, tão feio e estrábico de dar medo, busca ter a pessoa amada para se sentir confortável, pretendente do mesmo amor de seu companheiro Smythe. Flambeau, homem de juventude fogosa e tempestuosa, e de velhice pacata, francês rebelde adaptado, homem experiente mas que vive uma ruptura com seu passado: abandonou seu apelido de “A Tocha” pelo nome verdadeiro, Duroc. O americano Grandison Chace que alugou um castelo na Inglaterra, por curiosidade e deslumbramento para com a antiga cultura europeia. Seymour, o político poderoso, dominador na sua aparência ilustre e convencional. Chaucer, soldado forte e bonito, de olhos azuis francos e penetrantes, mais famoso, porém menos poderoso que Seymour. Aurora Rome, artista que desperta, a um só tempo, admiração e ciúmes, veste-se com cores de pavão, sua face mágica é um perigo para todos os homens. Senhorita Hope, que tendo passado a vida a servir as pessoas no bar Peixe Vermelho, agora incute uma espécie de ar cristão na confeitaria em que trabalha, onde se forma uma fila de admiradores pretendendo desposá-la. O padre Brown é apresentado como alguém um tanto apagado no seu lugar de observador incauto, empoeirado em sua batina escura, pequeno e grosso, numa simplicidade estranha capaz de vencer a imagem rude e despertar ternura e admiração.
Intrigante é também o próprio criador de nosso misterioso padre Brown: por que G. K. Chesterton (1874-1936), autor do clássico livro intitulado “Ortodoxia” (São Paulo: Ed. Mundo Cristão, 2008) – sua obra-prima em que apresenta o racionalismo e o cientificismo como suicídio do pensamento –, se dedica a escrever uma longa série de contos e romances de suspense policial ao longo de 25 anos? Por que o autor de importantes biografias de São Francisco de Assis e de Santo Tomás de Aquino (Rio de Janeiro: Ediouro, 2003), como defesa da simplicidade da fé operante e do valor da razão, se dedica por tantos anos à literatura de ficção e com ela marca gerações inteiras?
A chave da questão não é revelada só no final do livro “O homem invisível...”. Ao contrário, ela nos é oferecida logo de início, sem interromper a trama com caráter de mistério que o gênero policial requer. Chesterton permite que padre Brown nos revele seu método logo no primeiro conto: ele se coloca atento à realidade a partir do ponto que há em comum entre ele e os personagens (e por isso também os criminosos). Reconhecendo em si algo de cada um daqueles personagens, pode desejar como eles, usar a realidade como eles, planejar a vida como eles, pode conhecer o outro como humano e não com a distância como para com algo pré-histórico que o olhar exterior promove. A realidade se faz límpida. Assim, os contos fantásticos convidam ao realismo, com admiração pelo mistério.
Talvez seja esse o segredo do sucesso da literatura com padre Brown em todo o mundo. Mas talvez seja essa também a fonte da afeição que este personagem e o próprio autor provocam em nós. Eles solicitam nosso humano, o reconhecimento de nossos desejos e das tentativas irônicas de levá-los em consideração. Eles nos provocam a ser realistas justamente partindo da humanidade ferida que temos em comum. E essa humildade é a fonte da sabedoria de quem consegue olhar de verdade para o real; sabedoria e humildade já anunciadas no livro “Ortodoxia”: “Com frequência se diz que os sábios não conseguem ver nenhuma resposta para o enigma (...), mas o problema dos nossos sábios não é que eles não consigam ver a resposta; é que eles não conseguem sequer ver o enigma”.
Esse segredo revelado desde o início do livro não elimina o mistério dos contos nem a surpresa das soluções dos enigmas. Mantém o gosto pela leitura assim como pela vida, chamando a presença de uma peça fundamental: a humanidade do leitor, sua experiência elementar. Assim, o autor se torna nosso amigo, nosso caro amigo. Qual é a experiência-chave do enigma da realidade? É a elementar, meu caro Chesterton.
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SERVIÇO:
G. K. Chesterton
“O homem invisível e outras histórias do padre Brown”Ed. Imago – Rio de Janeiro
pp. 104 – R$ 24,00
Encomendas: Livraria Companhia Ilimitada
Tel: (11) 2950.4683
E-mail: livrariaciailimitada@gmail.com
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