O discurso do Papa Bento XVI na Universidade de
Regensburg (Alemanha), que infelizmente se tornou mais conhecido por uma citação ao Islamismo do que por seu conteúdo global, nos remete a uma curiosa questão: para que serve a razão? A questão parece óbvia, mas na verdade não é, e a dificuldade de compreender a importância da razão na vida de cada pessoa leva a não compreender adequadamente a importância das palavras de Bento XVI em Regensburg, assim como não se entendeu a importância da encíclica “Fé e razão”, de João Paulo II.
Todos sabemos que a razão é o instrumento de trabalho básico no mundo contemporâneo: com a mecanização crescente do trabalho manual, até as funções mais simples dependem do uso do raciocínio para serem executadas. Além disso, todas as decisões econômicas e políticas dependem, em última análise, do emprego da razão. A essa razão, filósofos e cientistas sociais chamam “razão instrumental”, pois ela é um instrumento para se chegar a atingir certos fins.
Para a mentalidade moderna, o campo dos afetos, dos desejos e da beleza, porém, não parece pertencer a essa “razão instrumental”. Aqui dominam a subjetividade, os impulsos e relativismo, e por isso não há espaço para a racionalização e para a objetividade. Cada um gosta de uma coisa diferente, todos têm direito a se deixar levar pelos seus instintos (desde que não atrapalhem a vida do outro), o amor é uma explosão desenfreada de sentimentos (como mostram as novelas de televisão e os filmes de cinema)... A fé se integra nesse conjunto de aspectos irracionais da vida social. Por isso, cada um tem a sua fé e ninguém deve ter direito de utilizar a sua fé como princípio que determine seu modo de viver.
Essa visão de mundo, contudo, limita o próprio coração do ser humano, pois exila o desejo, a beleza e o amor para longe da vida cotidiana, confinando-os em mundos de sonho e fantasia que podem até aplacar as dores do dia-a-dia, mas nunca incidir decididamente sobre ele. Essa é a prisão sem grades do homem moderno, a prisão de todos os dias que transformou o ideal em sonho ou utopia, realidades que incidem cada vez menos na vida de cada um. Compreendemos então porque a fé também deve estar exilada da vida social: porque ela é, antes de tudo, o reconhecimento de um amor e de uma beleza que abraçam a totalidade do desejo do homem, um fato tão radical que implica uma resposta diária.
Para que o desejo de felicidade, de amor e de beleza que estão no coração de cada ser humano possam se expressar plenamente na vida cotidiana, é necessário que percebamos a razão como algo mais que razão instrumental. Ela deve estar aberta a toda a realidade, buscando permanentemente a compreensão e o sentido de todos os acontecimentos. Só então se torna possível a construção de uma personalidade integral, que não se divide entre as decisões práticas e inevitáveis do dia-a-dia e os desejos e os amores que deveriam dar sentido a essas decisões. Por isso, quando João Paulo II e Bento XVI propõem a unidade entre fé e razão, não estão apenas defendendo a fé, mas a própria possibilidade de vivermos nossa vida de modo integral. É um convite que, de certa forma, se estende a cristãos e não-cristãos, crentes e não-crentes. Por isso, a citação ao Islã no discurso de Regensburg, antes de ser visto como uma condenação do outro, deve ser visto como a extensão de um convite, que é feito não só a nós mesmos, mas a todo o gênero humano.
O caminho para uma razão integral
A mentalidade dominante atual limita e reduz a razão, até uma razão integral. O primeiro passo é dado no maravilhoso discurso do Papa em Regensburg. Como mostra Pigi Colognesi, nesta edição de Passos, o discurso do Papa acontece na universidade e se refere, inicialmente, a ela mesma. A universidade, como o próprio nome já indica, foi criada na busca pelo conhecimento de todas as coisas e para sua integração. A totalidade e a aquisição de uma visão integral do real são elementos constitutivos do próprio ser do conhecimento universitário. Mas essa integralidade está se perdendo, os saberes se tornam cada vez mais especializados e instrumentais. Não se quer conhecer para abraçar o mundo, mas apenas para usar algum de seus aspectos particulares, como a biologia, a física ou as relações econômicas.
A abertura ao mistério último, que é a característica da fé, deve ser compreendida também em seu aspecto racional para que a razão seja capaz de recuperar a sua integralidade e para que a fé possa ser verdadeiramente incidente na vida de cada homem. O Papa desenvolve, na continuação de seu discurso, uma reflexão na qual mostra as conseqüências de um percurso histórico no qual a cultura moderna perdeu esse nexo entre fé e razão, perdendo também a própria capaci-dade de uma razão integral.
Poderíamos nos perguntar: mas o que quer dizer uma fé que não está dissociada da razão? Como esse nexo funciona no cotidiano de cada um de nós? Na busca dos sinais de Deus e de seu amor por nós em cada coisa. Isso pode se dar quando olhamos fascinados para a beleza da criação e nos damos conta de que aquilo foi criado para nós e, portanto, exige de nós uma resposta em cada particular da nossa vida. Passamos então a viver tudo como resposta consciente – e racional – a um grande amor. Ou então quando, diante de um grande sofrimento, insistimos em pedir que Deus revele-nos seu desígnio de amor também naquela dor, e passamos a viver também esses momentos como um sinal do seu amor que nos mostra um caminho a seguir e uma postura a ser adotada diante do mundo. Uma fé vivida irracionalmente considera a beleza como alívio e consolo dado em certos momentos e a dor como algo indesejável e, geralmente, como uma conseqüência de nossos erros ou um “capricho” de Deus. Numa e noutra situação se perde a dimensão amorosa de toda a realidade e o nexo profundo entre todas as coisas.
No Meeting de Rímini deste ano, promovido por Comunhão e Libertação sobre o tema da razão, padre Javier Prades, professor de Teologia Dogmática na Faculdade teológica de Madri (Espanha), mostrou em sua conferência qual é o percurso que leva a razão a reconhecer o mistério e ganhar sua dimensão integral. Seu caminho pode ser sintetizado em três passos: 1) reconhecer a realidade como sinal, como manifestação de um Outro que nos ama; 2) compreender que esses sinais amorosos são um convite, um chamado para uma vocação; 3) viver na memória desse amor que a tudo compreende.
Nesse caminho, se compreende que a razão não é uma coisa só para intelectuais, ou uma reflexão abstrata. Ver a realidade como sinal e agir a partir de uma vocação e na memória de um gesto de amor determinam basicamente nosso modo de estar no mundo, de nos relacionarmos com cada coisa. A razão, vivida em sua integralidade, é uma das condições para que a vida seja vivida em liberdade e com um gosto verdadeiro. A fé não está em oposição à razão, mas é uma condição para que possamos abraçar plenamente essa integralidade da razão.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón