Trechos da colocação de Giancarlo Cesana no encontro sobre o título do Meeting deste ano. Segunda-feira, 21 de agosto de 2006
A vontade é uma condição necessária do agir humano, mas não é suficiente, não basta, porque são grandes demais as traições e as contradições que cada um de nós vive. A unidade se assenta sobre um alicerce que é mais forte do que a vontade: uma concepção de si e do mundo. Uma concepção que se baseia na experiência está ao alcance de todos, inclusive dos que não têm estudo, ao passo que a concepção baseada numa filosofia só é possível aos que estudaram, que sabem interpretar a realidade, que explicam aos outros como são e funcionam as coisas.
A unidade, a tensão que o homem sente pela amizade, aquilo que cada um de nós busca, se realiza a partir de uma concepção aproximativa, que se baseia na experiência. E a experiência não é só provar as coisas, é prová-las mantendo o valor delas. “Avaliai tudo e ficai com o que tem valor”, dizia São Paulo (é a definição mais bela de cultura, comentava Dom Giussani). A unidade se realiza a partir da experiência da própria humanidade, do significado de ser homem ou mulher. Mas a humanidade, do que é feita? De liberdade (Meeting do ano passado), de razão (Meeting deste ano) e também de experiência.
A razão e o infinito
Não sou um filósofo, o que falo é tirado da minha experiência. E o que faço é um apelo à experiência de vocês. Na nossa experiência, o que significa dizer que a razão é exigência de infinito? Onde vemos essa exigência de infinito? Nós a vemos na relação que temos com a realidade. Na relação com a realidade – seja quando a realidade se manifesta a nós positivamente, seja quando se manifesta negativamente, quando vem ao nosso encontro trazendo o mal – sempre falta alguma coisa. A satisfação, como o diz a própria palavra (do latim satis facere, fazer o bastante, é justamente o bastante, o suficiente, mas jamais é tudo.
A percepção do infinito, para um homem que tem sensibilidade, nasce como saudade. Escreve Dom Giussani: “Eu, naquele início de colegial, no canto de Tito Schipa sentira o calafrio de que estava faltando algo; algo que faltava não ao canto belíssimo do romance de Donizetti, mas à minha vida: algo que faltava e que não encontraria satisfação, apoio, completude, resposta, em nenhum lugar. (...) Há como que um ponto de fuga, algo que rompe o objeto que seguramos, por isso jamais o prendemos suficientemente, e por isso há sempre como que uma intolerável injustiça, que procuramos ocultar de nós mesmos, distraindo-nos. O lançar-se no jogo do instinto é o pior modo de fechar-se para essa abertura que todas as coisas exigem, para a qual todas as coisas nos empurram” (L. Giussani, Realtà e giovinezza. La sfida, Sei, Turim 1995, pp. 32-33).
Dom Giussani me contava que, quando viveu essa experiência, entendera, pela primeira vez, que essa falta podia ser verdadeiramente Deus. Já estava no seminário e essa não é uma observação secundária, justamente porque a percepção de Deus não é um fenômeno intelectualista, mas provém de uma “fome”, no sentido de que o faminto entende muito melhor o valor da comida, talvez mais do que o bom cozinheiro. A gente entende as coisas quando corre até elas movido por uma tensão. É a saudade da vida; é a tristeza de Dostoievski, uma tristeza que se experimenta na relação não-completa com a pessoa que a gente mais ama, porque eu não sou capaz, porque ela não é capaz: esse é o suspiro. A razão é exigência de infinito e culmina no suspiro.
Quando há um juízo sobre as coisas, quando a gente vive, quando não está disperso, quando não se joga no instinto; isto é, quando a razão está presente, quando eu estou presente, a característica mais humana da vida cotidiana é esse suspiro, a consciência da incompletude, da perene expectativa, que é a vida. Como dizia Cesare Pavese em Il Mestiere di vivere: “Alguém por acaso nos prometeu algo? Então, por que estamos esperando?”. Por outro lado, não se pode esperar por algo que não existe: se fosse assim, se sentíssemos que a nossa espera é por algo que não existe, seríamos tomados pelo medo do desconhecido (é o apelo de um outro tema do Meeting). O desconhecido é a escuridão além da qual nada existe; o contrário do mistério, que, ao invés, é a manifestação de algo que existe, ainda que não sejamos capazes de compreendê-lo plenamente.
Melany Kleim, psicanalista que estudou o surgimento da paranóia como fenômeno psicótico nas crianças, dizia: a ausência torna-se uma má presença. Mas se observarmos a nossa experiência, não é assim: a nossa espera não é medo. O coração arde no peito, como diziam os discípulos de Emaús quando eram acompanhados por alguém que não haviam reconhecido, mas que era o Cristo ressuscitado. O coração arde no peito, porque a promessa está na realidade e é preciso prestar atenção a essa promessa, a esse pressentimento: a esse sentimento que vem antes de tudo porque, mesmo quando os olhos se fecham no último ato da vida, a realidade, todo o bem que existe, não pode ser negada. O ser existe e, mesmo que perca a vida, não pode negar o braço que o sustenta.
A necessidade de uma positividade no real
Dom Giussani dizia: imaginem vocês saindo do ventre da própria mãe com a consciência que têm hoje! O primeiro movimento do olhar seria de maravilhamento por tudo aquilo que existe em volta, porque haveria a sensação de que tudo existe para você. Depois, talvez, a realidade vem ao seu encontro como um momento de dor arrasadora e você deve decidir com a razão: qual é o sentido da realidade? O positivo que originalmente você percebeu (pré-sentiu), o ser que existe, ou o negativo que nos arrasa? Se fosse esse segundo sentimento, seria inútil viver; seria inútil qualquer ação, qualquer pensamento. Então a vida nada mais pode fazer do que afirmar a própria positividade, buscar o seu sentido.
Quando é que nós fazemos a experiência desse pressentimento, desse sentimento que vem antes de tudo a respeito da positividade do ser, da positividade do que existe? Quando fazemos essa experiência? Quando temos necessidade. Quando aquela falta, que é saudade, irrompe como busca de algo que possa dar a resposta: o infinito se apresenta a partir da necessidade de algo que é finito. Qualquer coisa: o dinheiro, um gesto de amizade, uma possibilidade, algo que a gente busca na vida. Jesus disse que a vida é dos pobres justamente porque se não sentimos a necessidade, nem vamos perceber a resposta. Por isso Dom Giussani dizia que a vida é busca. Uma vez eu disse ao meu vigário, durante uma confissão: “Eu rezo mal”. E ele respondeu: “No Evangelho não está escrito que é preciso rezar bem. Está escrito que precisamos rezar sempre”.
Como dizia Dom Giussani: “Os desejos que partem realmente do coração, aqueles verdadeiramente constitutivos, são desejos sem limites, têm um horizonte semelhante a um ângulo aberto para o infinito, porque visam, partindo de um ponto qualquer, à realização da pessoa inteira” (L. Giussani, O Eu, o Poder, as Obras, Cidade Nova, São Paulo 2001, p. 58). Um ponto qualquer – a criança que quer o trenzinho, você que quer passar no vestibular, que quer uma namorada – se o desejo for sincero. Ou seja, ele precisa ser decidido, isto é, expresso, e, em segundo lugar, é preciso reconhecer que a sua realização não depende de você; do contrário, não é desejo. Partindo de um ponto qualquer, o desejo tende à realização da pessoa inteira. Dom Giussani nos educou, fez nascer este Movimento porque – me permito dizê-lo – contrariamente a muitos outros padres, não teve medo dos desejos, isto é, não teve medo de misturar razão e desejo, porque não há razão sem desejo.
O infinito não é uma coisa mais outra, mais outra, mais outra; não é um conjunto infinito de coisas. É uma outra dimensão. Na realização do desejo, o infinito se manifesta como imprevisto; aquele descrito por Montale: preparei tudo para a viagem, mas me dizem que o imprevisto é que muda a vida e me dizem também que não vale a pena falar dele. À razão, hoje, não faltam neurônios; os neurônios são o que sempre foram; falta afeto, falta paixão, porque a razão sem afeto não subsiste. Nós não somos um computador, dotado de circuito elétrico. Temos afeto, mas o afeto não depende de nós. Do latim affectus, tocado. E isso não depende só de nós, mas de um encontro. A razão se faz por meio do encontro, que nos introduz no infinito, de que falei antes. É preciso encontrar alguém que seja capaz de te atingir, de te tocar; é preciso encontrar uma atração, do contrário a razão permanece fria, não se apega a nada e, enfim, não entende nada.
Por que os homens têm desejos? Porque não se fazem sozinhos, porque o meu eu não está isolado, é um relacionamento. O eu, para ser, precisa do outro. A criança, para nascer, precisa da sua mãe. Sem paixão e sem apego, a razão é uma piada. A razão busca o sentido, e o sentido está na relação que as coisas mantêm entre si e com todo o resto.
Quando Dom Giussani dizia que educar é introduzir a pessoa na realidade total, não queria dizer que é preciso explicar toda a realidade, todas as coisas que existem na realidade, porque isso é impossível. Queria dizer que um detalhe pode bastar para levar ao todo, isto é, para levar a pessoa a captar os nexos com o todo. Algo bem diferente de um diploma de especialista.
Cristo, a fé e a razão
A fé não é uma espécie de sorte – “sorte sua se tem fé” – mas uma necessidade, porque você entendeu que não é um ser só e que precisa confiar em alguém. Como sugeria Chesterton, ateus não são aqueles que não crêem em nada, mas aqueles que crêem em tudo.
A realização do desejo depende da efetiva presença de um outro, diferente de você, que o introduza no sentido das coisas. Por que a gente se casa? Porque reconhece que um determinado outro é fundamental para toda a nossa vida. Porque ele nos fala de Deus, do sentido.
O eu depende do outro e é nesse outro que encontra satisfação. É o amor: eu vivo se faço você feliz. Esse outro não é um outro genérico, é um outro particular: minha mulher, meus filhos, meus amigos, as pessoas que são próximas; é um outro particular, mas que me coloca em relação com tudo.
Cristo é o nome desse outro que me coloca em relação com todo o resto. O romance Inominado, de Manzoni, dizia e eu o repito aqui: “Deus, se existes, revela-te a mim”; repito-o também eu, porque, se Deus não existisse, meu nome não serviria para nada, eu também seria um inominado. Cristo é o Outro por excelência, alguém de que preciso, porque venceu a morte. A morte nega a relação, nega o sentido, é a ausência, a má presença, o diabo, o salário do pecado, como diz a Bíblia. Precisamos de alguém que nos ajude a derrotá-la.
A fé nasce em nós porque encontramos alguém que nos falou dessa presença. Vocês entendem o quanto isso está ligado à razão, à relação com a realidade? Porque a razão serve para nos colocar em relação com a realidade; alguém pode ser racional, mesmo que doido, porque mantém uma relação adequada com a realidade.
O cristianismo, com o qual todos nos envolvemos, é um seguimento, é andar atrás de alguém, como faziam os Apóstolos que seguiam Cristo e, depois, repentinamente, quando estavam no barco e Ele acalmou a tempestade, mesmo conhecendo-o há três anos, perguntaram: mas quem é esse homem? Isso é o cristianismo: seguir essa pergunta, que é a pergunta da vida. Isso é a alma daquilo que somos e é o fator central do encontro, daquilo que nos fala do sentido das coisas, de Deus. Como me dizia Dom Giussani pouco antes de morrer: “A gente não pode amar os homens se não amar a Deus, e não ama a Deus se não ama os homens”. Para nós, Cristo é a presença particular que nos coloca em relação com todos.
Quando o Papa fala da Igreja e diz que a Igreja é uma grande amizade, indica que é a presença particular dos rostos dos nossos amigos que nos coloca em relação com todos; isto é, potencializa a razão porque a coloca em condição de buscar confiante o sentido, de perceber a positividade que existe, de perceber que tudo foi dado a mim. Nada me é estranho. Como quando um jovem se apaixona; a prova de que o relacionamento é verdadeiro não está no fato de que o rapaz deseja estar sempre e só com a sua namorada, mas no fato de que ele sente o desejo de estar com todos.
No início eu dizia que vivemos em tempo de guerra. Tudo o que eu disse até aqui não diz respeito só a um juízo privado, à própria vida. É um juízo que se refere à história, à nossa condição humana, diz respeito à justiça, à paz; a paz que deve existir para todos, para todos! E – permitam-me dizê-lo – sobretudo para Israel.
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