Vai para os conteúdos

Passos N.76, Setembro 2006

IGREJA - MOSTRA DE SÃO BENTO

As mãos e a força

por Alberto Savorana

A apresentação da Mostra “Com as nossas mãos, mas com a tua força”, realizada pelo mosteiro beneditino de Cascinazza e a Fundação para a Subsidiariedade. Evento cultural do Meeting, apresentado por um estatístico, um historiador de arte, um banqueiro e um monge

Suspiro, pressentimento. Palavras que aparecem no título do Meeting e que o senso comum associa a algo etéreo, feito de pouca matéria. Mas bastava estar no auditório da Feira de Rímini, lotado com 10 mil pessoas, na quinta-feira, 24 de agosto, para receber o verdadeiro sentido dessas palavras, concretas como pedras. No palco, um grupo especial e variado de expositores: um professor de estatística, um professor de história da arte, um banqueiro e um monge. Convocados para falarem sobre a grande Mostra “Com as nossas mãos, mas com a tua força”, baseada nas obras geradas por São Bento, e sobre o monaquismo ocidental. Mostra que foi visitada por um mar de gente durante toda a semana.

O estatístico
Giorgio Vittadini foi um dos curadores da Mostra que apresentou as obras do movimento beneditino; ele também introduziu as intervenções, explicando que o suspiro e o pressentimento do Infinito “para nós não é algo abstrato: quando é desejo, quando é pergunta, quando é espera sobre a realidade, é uma coisa extremamente real; e essa posição é vista como transformação em ato da realidade, verificada naquele ponto a que a tradição cristã dá o nome de obra”. Para entender isso, é preciso ir às raízes dessa palavra, “lá onde essa palavra – diz Vittadini – tomou forma, onde foi gerada, lá onde se originou, a partir de uma visão completa da realidade, de atuar sobre a realidade, que é a experiência beneditina”.
Vittadini recorda que quando Dom Giussani falava do período de São Bento, dizia que “durante as invasões bárbaras, ocorria que se você cultivava a terra, poderia chegar um bando e destruir tudo, e então os lavradores abandonavam a terra, paravam de trabalhar; mas alguns – os beneditinos – continuaram a trabalhar do mesmo jeito, permaneceram nas terras porque ali se dava a relação com Cristo, independentemente do resultado imediato” do seu trabalho. E assim nasceram as primeiras obras – conclui Vittadini – “não tanto como resposta a uma necessidade, mas resultado do maravilhamento com o encontro de Cristo dentro da realidade”.

O historiador de arte
Marco Bona Castellotti leciona na Universidade Católica de Milão, e é o responsável cultural do Meeting. No caso, é a pessoa que “sugeriu” aos monges do mosteiro beneditino de Cascinazza, a realização de uma segunda Mostra, depois daquela sobre a vida de São Bento, em 2004.
“Na seção dedicada à natureza do mosteiro – explica Bona Castellotti – se lê que ‘o mosteiro é obra de Deus’; e num painel onde está escrito ‘Ora et labora’ é mostrada uma passagem da Regra beneditina onde São Bento recomenda aos monges que não anteponham nada à obra de Deus, e para reconhecer que a obra de Deus não está em nossas mãos, o monge é convidado a acionar a memória, isto é, a manter uma plena e perene consciência da intervenção de Deus na vida e nas coisas da vida, portanto também no trabalho”.
Assim – explicou Bona Castellotti – “trabalhar é o senso do reconhecimento mais completo da nossa dependência de Deus”. Ele lê esta passagem da Regra “Quando chega a hora do ofício divino, deve-se largar qualquer coisa que tenha nas mãos, e comparecer imediatamente, com sumo zelo”, e, com a perspicácia de quem é treinado para buscar o belo e o verdadeiro, observa: “Nesse sentido, o trabalho é reconhecido como forma especial de oração. Gostaria de citar uma passagem de Dom Giussani na qual a relação trabalho-oração é tão estreita que ambos parecem coincidir: ‘O trabalho é oração real, e não existe oração se não for trabalho, se não expressar um trabalho’. Na vida do monge, se o trabalho não é oração, corre o risco de se transformar numa fuga, numa distração. Uma das preocupações mais verdadeiras, na vida de um mosteiro, é o excesso de trabalho; em outros termos, o ativismo. O risco é que o ativismo ofusque a dimensão contemplativa. O equilíbrio, a fusão entre dimensão ativa e dimensão contemplativa, está na base da vida monástica”.
O que passa pelas nossas mãos – insiste Bona Castellotti – é fruto da força de um Outro, lembrando que Ratzinger, quando era ainda Cardeal, afirmou: “A grande tentação era transformar o cristianismo num moralismo, substituir o crer pelo fazer. Para o cristão, a primeira obra é a fé em Deus”.
Nesse sentido, Bona Castellotti concluiu aprofundando a palavra “contemplação”: “Essa é uma das palavras das quais no passado se fez grande uso, para não dizer abuso, mas hoje foi deixada de lado, ou reduzida a algo abstrato, espiritualista, desencarnado; no entanto, o invisível tem uma densidade concreta, na medida em que é sinônimo de Mistério, e o Mistério cristão é o que há de mais concreto, porque Deus se fez homem. E a contemplação nos permite penetrar no invisível, porque ela é inteligência e conhecimento. É um método, como diz Dom Giussani: memória. A contemplação é memória, memória tendencialmente contínua de Cristo”.

O banqueiro
Contemplação, memória... Giovanni Bazoli tomou a palavra justamente na hora em que o Banco Intesa, do qual é presidente, anunciava a fusão com o Banco San Paolo de Turim, dando origem à maior “obra” bancária da Itália, entre as seis primeiras da Europa. “Qual é o tema de reflexão sugerido pela Mostra?”, perguntou-se Bazoli. Esta é a resposta que ele próprio deu: “Como é que o Senhor age por meio da obra, por meio do trabalho do homem? Ou, o que é a mesma coisa vista da parte do homem, como o homem é assistido por Deus no seu agir? É um tema fascinante e misterioso, um tema inevitável e central nas reflexões dos crentes”.
Para o presidente do Banco Intesa, a exposição ilustra de modo muito sugestivo como se manifestou o desígnio, a ação de Deus, por meio da obra de São Bento, “e é maravilhoso verificar que, como resultado da sua obra e do monaquismo, elevou-se a inspiração e o compromisso religioso, mas também a contribuição dada ao progresso civil, cultural e temporal da sociedade humana”.
E partiu para cima de uma mentalidade muito difundida: “Com isso quero dizer que a idéia de que a Idade Média foi um período obscurantista, que o catolicismo foi um freio às energias intelectuais e às aplicações científicas, é um mito que contraria a historiografia; essa Mostra, mesmo, contribui para evidenciar a inconsistência desse mito. Toda a moderna civilização ocidental e, em particular, a européia, é profundamente devedora do monaquismo; como não reconhecer que tudo isso constitui a prova de um desígnio divino, realizado na história através da obra dos homens? E hoje?”, perguntou-se Bazoli. “O homem moderno constrói sozinho o seu mundo e Deus não aparece mais diretamente como guia dos destinos e das sociedade humanas. É atual a mensagem propagada por essa Mostra? Respondo sem hesitação que sim, porque é atualíssima a questão inicial que foi o meu ponto de partida: como Deus utiliza a obra do homem”.

O monge
Padre Sergio Massalongo, prior do mosteiro de Cascinazza, começa com uma confissão: “A Mostra não nasceu de um projeto da nossa comunidade; não nasceu também de uma particular necessidade e nem de um desejo nosso; a Mostra nasceu a partir de uma provocação do professor Marco Bona Castellotti. Isso significa que Deus é verdadeiramente grande, porque faz com que brotem certas coisas do nada, coisas que depois descobrimos que são verdadeiras, das quais temos necessidade, ao passo que outras que nos pareciam mais importantes tornam-se secundárias. De fato, o trabalho da Mostra nos fez descobrir que tínhamos ‘essa’ necessidade, naquele momento da nossa comunidade. Tínhamos justamente esse desejo, e a Mostra como que fez isso vir à tona. Portanto, esse trabalho foi uma graça para nós, de tal modo que, mesmo que não o tivéssemos apresentado no Meeting, estaríamos muito contentes com o trabalho feito”.
Mas assim como entre o dizer e o fazer existe um mar, mesmo quando se trata de monges – que, não nos esqueçamos, são antes de tudo homens –, padre Sergio contou que “naquela altura estávamos diante de um oceano, sem nada, e com um prazo bastante reduzido. A graça de Deus nos fez encontrar, então, o professor Giorgio
Vittadini e a ajuda necessária para iniciar esse trabalho, que envolveu toda a nossa comunidade durante um ano inteiro. Um trabalho não só de estudo e de pesquisa, mas também de comparação com toda a nossa vida, e esse foi o aspecto mais interessante. Um trabalho onde não faltaram dificuldades, mas onde, no fim, sempre fomos sustentados por uma certeza, certeza de que podíamos contar não tanto com o poder das nossas mãos, mas com a força dEle. Agora para nós é claro o milagre que aconteceu: não fomos nós que fizemos essa Mostra; foi o Senhor que nos fez através dessa Mostra. Esse trabalho, para nós, foi só o início de uma maior consciência de algo que é tão amplo quanto a vida: a questão da unidade entre a fé e as obras, entre a graça de Deus e a liberdade humana, entre a oração e o trabalho. Em síntese, entre o divino e o humano. Portanto, não um dualismo, mas o milagre de uma unidade possível; impossível ao homem, mas possível a Deus. A Mostra é uma tentativa, uma ajuda para nos abrirmos a esse mistério de graça e de unidade que foi oferecido ao homem por meio de Cristo”.
E a obra? Como nasce e qual é o seu valor? Padre Sergio esclarece: “Ele é a minha força e exige a nossa liberdade, o nosso livre sim, que permite que a força do Seu amor nos transforme e assim transforme toda a realidade. Então, a obra é o reflexo dessa plenitude que tende a plasmar toda a realidade, em vista do seu objetivo”. E aqui o prior de Cascinazza citou o painel 42, para sublinhar que em toda obra há sempre um dedinho do diabo: “A obra é feita para a glória de Deus, mas há sempre o perigo de que a obra se sobressaia e que não seja mais o fruto de algo maior, mas se torne um projeto moldado pela nossa constante tentação de querer substituir-nos a Deus”. Ora, explica padre Sergio, se o homem pretende colocar-se no lugar de Deus, “se afasta da fonte da sua própria vida, do seu ser, do ponto de energia que o gera; muda o modo de fazer as coisas. E a sua obra, embora importante ou bela, fica limitada. Essa é a tragédia do homem contemporâneo, cego perante a realidade e, portanto, triste, angustiado”.
Por ser um homem perito em humanidade, o prior notou que justamente daí “procede toda a inquietude que carregamos dentro de nós, e tudo aquilo que fazemos é como se fosse a tentativa de superação desse limite, de sermos os autores da nossa própria felicidade, que é a última forma de desespero”.
Surge, então, espontânea a pergunta: trabalhando, agindo, como podemos permanecer na atitude original? Padre Sergio responde: “O homem deve reconhecer-se cego e, por isso, necessitado da luz. Para receber a força que é Deus, o homem deve reconhecer-se como um vaso vazio e mendigar para que alguém o preencha. Só fazendo a experiência do milagre desse preenchimento, dentro do nada que eu sou, de ser continuamente plenificado pelo Cristo presente; só partindo dessa plenitude é que podemos lançar-nos dentro da realidade para uma construção, livres do êxito, isto é, sendo instrumentos de um Outro, que se comunica por meio de nós”.
Só assim aquilo que fazemos tende a se tornar verdadeiramente obra, “quer dizer, uma realidade efêmera que encarna o eterno”. O que padre Sergio traduz com uma citação: “O atual Papa Bento XVI, na homilia para os funerais de Dom Giussani, disse, o que foi reproduzido no painel 35: ‘Quem não dá Deus, dá muito pouco’. Procuremos questionar-nos se as nossas obras têm esse objetivo. Quem não ajuda o outro a encontrar Deus no rosto de Cristo, não constrói, mas destrói, divide; o que seguramos para nós divide e se perde; perde-se porque nós não podemos guardar aquilo que nós oferecemos a Deus. Para manter uma coisa minha, devo dá-la a Deus. Só assim não a perco mais”.
E na conclusão do testemunho, padre Sergio introduziu um ponto de fuga que pode sintetizar o significado de toda a Mostra: “Gostaria de encerrar com o painel 44: ‘O perdão, milagre do recomeço’. O perdão, para o homem moderno que quer se fazer sozinho, que não precisa de nada, que não pede nada a ninguém, é uma coisa absurda, é uma fraqueza. No entanto, o perdão é a capacidade máxima de recriar o eu. O perdão é a capacidade que tem o amor de tirar o bem até mesmo do mal; é a capacidade de salvar. Alguém se sente perdoado quando se sente superado na própria capacidade de perdoar-se e a obra mais bela nasce justamente do perdão. Por isso São Bento nos exorta a não duvidar nunca da misericórdia de Deus, porque os braços da misericórdia de Deus são mais fortes do que qualquer mal e são capazes de levantar-nos de qualquer queda; não se cansam nunca de fazer-nos recomeçar mil vezes ao dia, de renovar-nos mil vezes ao dia e, apesar da nossa fraqueza e fragilidade, levar-nos a ousar tudo nAquele que é a nossa força”.
Essa é a raiz e a razão de uma obra cristã, de um desafio que dá continuidade no mundo à obra de um Outro. Graças aos monges de Cascinazza, que nos recordam isso com o exemplo da própria vida.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página