Passos N.75, Agosto 2006

CARTAS

Cartas

Gosto de vida nova
Cristiana de São Paulo nos enviou este e-mail que recebeu de seu amigo Carlos (Dot).
Os últimos meses têm tido realmente um gosto diferente. Se, no começo do ano, eu rezava a Deus pedindo que ele não me fizesse ter que escolher entre as férias do CLU e a viagem a Alemanha (sim, eu rezava assim porque já previa essa possibilidade), hoje eu tenho que reconhecer com gratidão tudo que aconteceu. Porque depois de me colocar a pergunta “onde eu realmente aposto a minha vida” – a pergunta que eu precisava responder pra decidir ir nas férias –, não dava mais pra ficar inerte, enrolando a vida, antes de ir atrás da Resposta. Era como se antes eu soubesse que a Resposta para o meu coração estava ali, mas ficasse esperando para ir atrás dela. Como se estivesse esperando um momento melhor para ir atrás dela... olhe só que absurdo! Diante da promessa do cêntuplo, era como se eu pudesse ficar me distraindo um pouco na vida antes de gastar mais tempo com isso! Ora essa, mas ou é uma promessa verdadeira de cêntuplo ou não é! E se é, que pessoa poderia esperar um pouco mais para ir atrás disso? “Sim, sim... eu estou morrendo de sede... minha boca está seca... mas daqui a pouco eu bebo água... daqui a pouco... daqui a pouco”. Percebe o absurdo da situação?! Então, era mais ou menos assim que eu ia levando as coisas. E foi bonito ver como, ao primeiro passo de levar isso mais a sério, no primeiro passo que precisou “cortar na carne” (como a Juju disse nessas férias), no primeiro passo que eu resolvi arriscar mais a fundo, apostar mais a fundo... Cristo responde. Responde mesmo! De verdade! Então começou uma dinâmica bem interessante na minha vida: a de continuar apostando nisso. De continuar correndo atrás disso (gosto muito
quando São Paulo faz a comparação da corrida). Ah, e sempre apostando de um jeito que escapa das minhas medidas. Porque não é que você começa a marcar almoços com o pessoal do CLU (mesmo cheio de coisas pra fazer) e almoça convencido de que Cristo está ali. Mas, de repente, você começa a perceber que a amizade com aquelas pessoas está diferente, que você está diferente diante daquelas pessoas. E daí dá vontade de chegar antes da Escola de Comunidade (EdC) pra trabalhar o texto melhor. Porque me interessa. Não porque eu acho o texto mais divertido do mundo, mas porque eu passava a reconhecer que o diálogo com Dom Gius (tomar um cafezinho com Dom Gius, como recomendou o Christian nas férias), era uma possibilidade de que Cristo respondesse ainda mais ao meu coração. E, repito, de um jeito que sempre escapa das minhas medidas, porque não é que a realização da minha vida é ler um livro. Não se esgota num livro. Pensando agora é até engraçado, porque eu mal tenho idéia de como isso tudo aconteceu. Mal tenho idéia porque se me pedissem para esgotar tudo isso em alguma situação, circunstância, eu simplesmente não saberia o que dizer. “Só sei que foi assim”, responderia como o Chicó (do Auto da Compadecida). E digo que isso se tornou uma dinâmica porque quando o padre Paulo veio me falar da Itália, de faltar duas semanas de aulas para ir na Equipe Internacional, eu percebo que a resposta razoável é “sim” e correr atrás disso pra que seja possível. E eu nunca responderia isso.
O Dot que eu conheço há 22 anos ia enrolar todo mundo com o seu grande saco de desculpas prontas. Desculpas mui bem construídas, coerentes entre si, bem costuradas, com sistemas de segurança (caso uma falhasse tinha uma outra logo depois), mas desculpas ainda assim. Aliás, desculpas muito bem calibradas por anos evitando eventos de CL que não estivesse a fim. Ah, e antes eu queria gastar o mínimo de tempo possível com aquelas pessoas. Só o tempo absolutamente necessário para “encontrar a Cristo”. Só o básico mesmo. “Precisa ir pra EdC e assembléia? Eu vou, sim. Chego na hora, presto atenção direitinho e depois vou-me embora que tenho mais o que fazer”. Mas depois foi ficando claro que para ser carnal, para ser mais concreto, ter rostos, precisava que eu me arriscasse naquela
amizade. Arriscasse mesmo! Investisse! Pouco importando a afinidade que eu pudesse ter com aquelas pessoas. E a Cecília já tinha me chamado a atenção pra isso. Ela disse “vá andar de bicicleta com alguém da sua EdC... coma pizza com o Gustavo... tome café com o Fulano” e me contou de como era quando ela comia pizza na casa do padre Vando. De como era diferente... de como anulava a tentação de que tudo se tornasse abstrato, teórico, um esquema.
Dot, Rio de Janeiro – RJ

Nenhuma hostilidade
O escritor inglês Ian MacEwan dizia recentemente, numa entrevista ao jornal italiano La Repubblica: “Na medida em que envelheço, sinto crescer a minha hostilidade para com qualquer religião, ainda que moderada. O que significa ter fé senão crer em algo que não tem fundamento? Há quem tente conciliar ciência e religião dizendo que pertencem a esferas diversas que não se excluem. Não é verdade: as crenças religiosas são explicações do mundo, mas intelectualmente infantis”. Para mim é diferente. À medida que passam os anos, me dou conta de que tudo é milagre e, ao contrário de hostilidade, aumenta a minha gratidão pela experiência a qual pertenço. O fundamento em que creio e que dá estabilidade à minha vida é encontrável em cada aspecto da existência e se torna mais evidente a mim, a cada dia que passa. Ser marido e pai, ter acolhido em minha família uma nova filha, Roberta, ser médico, são eventos que aconteceram todos dentro da companhia do Movimento. E tudo acontece por um objetivo que, à medida que o tempo passa, torna mais evidente a minha consciência. Acontece para testemunhar que a realidade é de Cristo, dAquele que veio e que me chama para participar da Sua vitória. Isto é de tal maneira fundado no que acredito que fica provado a cada dia na existência do real, na beleza, por exemplo, do sorriso de Roberta que, fisiologicamente falando, nem mesmo sabe sorrir, mas, na verdade, o faz; ou no relacionamento com os pacientes que sofrem, que procuram consolação, não somente a do corpo. A vida não está privada de fadiga. Muito cansativa foi, para mim e para minha família, a recente transferência para Palermo. Porém, não é a fadiga que determina a vida. E depois, me dou conta do quanto o Senhor é consolador pelo sustento que me concede cotidianamente, por exemplo, por meio do rosto de minha mulher. Ou, pelos nossos novos amigos da comunidade de Palermo que imediatamente se nos tornaram familiares. Não é uma familiaridade que nasce do pensar do mesmo modo, nem de uma afinidade de temperamentos, que é, na maioria das vezes, longínqua. Mas que nasce do reconhecimento da mesma raiz da qual floresce uma vida nova.
Gerardo,
Palermo – Itália

Gesto de anúncio
Na quarta-feira 2 de agosto fomos protagonistas de um momento belo, simples e de uma grandeza infinita: um encontro sobre o texto da revista Passos de maio (Maria no mistério de Cristo e da Igreja). Quando o padre João Cláudio pediu nossa ajuda (minha e do José Martins, meu esposo), para vender as revistas, foi de uma forma muito simples. Aceitamos sem pretensão nenhuma e tínhamos apenas o desejo de que aquele momento fosse como o primeiro encontro de CL ao qual participamos. A postura das pessoas que estavam lá era impressionante, pois todas estavam em profundo silêncio aguardando o início do encontro. Era uma noite muito fria, pois durante o dia havia chovido muito. E mesmo assim essas pessoas aderiram. Estavam todos super atentos ao que o padre Paulo tinha para lhes falar. Ao final do encontro todos que passavam pela banquinha queriam comprar a revista e saber mais a respeito do Movimento. Ver e ouvir pessoas com um olhar atento nos provocava ainda mais a viver com mais beleza e atenção este carisma ao qual Deus nos escolheu pra seguir. Era como se eu olhasse para um bebê que acabara de nascer e com ele renovasse todo o caminho feito até minha idade atual. O que ouvi a respeito de Nossa Senhora me comoveu muito, e dava pra perceber que as pessoas também estavam participando do mesmo sentimento. Eu vi em seus olhares essa atenção. Só peço que zelem por esta história, pois se algo belo nos alcançou um dia e nos abraça até hoje, não podemos deixar de anunciar, para que outras pessoas façam também este bonito encontro. Precisamos sim ser maduros na fé.
Ana Maria,
Niterói – RJ

Ir à caritativa
Caro padre Carrón, conheci Colette há alguns anos, quando ainda era estudante de medicina. Dei de cara com uma moça radiante, decidida, cheia de projetos para realizar. Depois, por intermédio de meu professor, soube que a ela tinha sido diagnosticada uma doença genética, em conseqüência da qual logo seria incapaz de caminhar, de falar corretamente, e pela qual seriam prejudicadas rapidamente suas faculdades mentais. Assim, entre exames, terapias e curas, eis-me de novo ligada a ela e a sua família que começava a lidar com esta nova realidade. Quando Colette piorou, comecei a ir encontrá-la em sua casa. A cada vez, saía daquela casa enriquecida; daí o desejo de compartilhar com alguém essa riqueza e de ser sustentada. Assim, falando com Pietro, começamos com Roberta e Federica esta caritativa, indo a cada 15 dias encontrar Colette em sua casa. Foi para mim um ano repleto de gratidão. Colette agora já não consegue falar, nem se movimentar e está quase inconsciente. O estar diante dela, impotentes, inevitavelmente nos obriga a pedir que Cristo se revele, na certeza de que aquele sofrimento tem um sentido e que também ela tem um coração como o meu, que tem a mesma sede de felicidade do meu coração. E alguém no dia seguinte olha grato para a realidade por tudo aquilo que tem em torno e usa o tempo de modo diferente. Deste ano de caritativa, de um modo imponente, emergiu que somente Cristo realiza o humano, mesmo onde Ele não é explicitamente nomeado. É como se o fato de ir lá e ficarmos com toda a família houvesse permitido a eles abraçar toda a realidade. E depois, surgiu o desejo de jantarmos juntos e ficamos comovidos pelo cuidado que a mãe teve ao preparar tudo, e pela atenção do pai que escolheu o vinho. A coisa impressionante é que tudo isso acontece apenas pela nossa fidelidade ao gesto; de verdade, quantas vezes fomos para lá cansados, sobrecarregados por um dia difícil. E isto me faz ser consciente que é um Outro que faz por mim e para mim, para além da minha capacidade.
Carmela,
Chieti – Itália

Irmão Jean
Há quase um ano, Federica me convidou para participar da caritativa da Associação Cilla. Assim, comecei a ir com ela no hospital para dividir o tempo com Jean, um noviço carmelita de Camarões, de 23 anos, gravemente doente. Tornamo-nos muito amigos e nasceu uma familiaridade feita de coragem que nos levava a não ter medo dos nossos temperamentos muito diferentes. Nós ficamos com ele a maior parte do tempo, fascinados pela sua simplicidade e simpatia, pela sua grande vontade de viver e muitas vezes nos perguntávamos como fazia para ser sempre tão positivo e compreendemos estar diante de um grande homem. Nos últimos tempos, cada vez com uma intensidade maior, rezávamos por ele e com ele. Lutava contra a doença com grande decisão, confiando-se fervorosamente a Jesus, como a dizer: “Faço a minha parte, mas estou em Tuas mãos”. Em dezembro, depois que os médicos declararam que seu mal era incurável, realizou o seu grande desejo de vestir a túnica e pronunciar os votos, tornando-se irmão Jean do Menino Jesus da Paixão. Dividimos com ele esse grande acontecimento e compreendemos o quanto esta amizade era importante para ele e para nós. Às vezes líamos Passos, outras vezes cantávamos, muitas vezes jantávamos juntos. Irmão Jean morreu no início deste ano. Conhecemos muitas pessoas que nos agradeceram pelo nosso modo de fazer companhia a Jean. Nós, porém, sabíamos que era apenas um pequeno reflexo daquilo que havíamos encontrado. O que me fica por último é uma gratidão a Dom Gius por uma educação que me ajuda cada vez mais a ver a verdade dentro da realidade.
Mauro,
Pianezza – Itália

Encontros na paróquia
Caríssimo padre Julián, acabo de chegar com minha mulher de um encontro com as famílias da nossa paróquia. Os encontros com as famílias da nossa comunidade acontecem todos os meses há mais de 20 anos, desde quando nos casamos. Somos os únicos a participar do Movimento, e, ainda que, com fadiga e, às vezes, “esmagados” pelo preconceito contra a nossa experiência, nunca abandonamos essa amizade. Como todo ano, depois das férias, nos reencontramos com os outros e com o sacerdote para decidir o percurso a ser desenvol-vido durante o novo ano pastoral. Nesses anos, sempre propusemos
com discrição, mas com clareza, a utilização dos instrumentos que o Movimento nos sugeria: Eram muitos “se”, “mas”, “porém” e, por fim, decidiam-se por outro. Este ano, eu e minha mulher “ousamos” propor um trabalho sobre educação, utilizando o livro de Dom Giussani Educar é um Risco. Inesperada-mente, todos ou quase todos responderam com entusiasmo aquilo que acreditávamos seria o enésimo “não”. Assim, começamos a ler o livro juntos. Tivemos a maior comoção quando revimos, junto com eles, o Dvd incluso em Passos e que presenteamos a cada um. Comoção é a palavra que melhor explica o silêncio que acompanhou o tempo da projeção. Escutando as palavras de Dom Giussani, é como se fosse revelado, com simplicidade e clareza, tudo aquilo que nos últimos meses havíamos lido juntos. Estar com eles, nessas ocasiões, sem a pretensão de uma resposta e de um êxito, nos educa ao respeito para com a liberdade deles e a eles nos afeiçoa, às suas necessidades, às suas vidas. Agradecemos um a um por nos terem dado a ocasião de nos educarmos, de continuar a pedir para sermos educados. Estamos seguros de que cada um deles entreviu a possibilidade de viver o cristianismo como o modo mais adequado ao homem, como o modo mais adequado às necessidades do homem. E é sobre isso que continuaremos a nos confrontar.
Giuseppe e Silvia,
Busto Arsizio – Itália