Diante da avalanche de escândalos, frustrações e desilusões que assaltou nosso cenário político recente, não basta, ainda que seja necessário, verificar se os erros foram deste ou daquele político, denunciar suas mazelas e puni-los. Precisamos repensar todo o nosso modo de viver a política e construir a sociedade. O que sustenta uma posição humana capaz de enfrentar tanto a força quanto as tentações do poder? De onde pode nascer uma esperança que se sustente no tempo?
“O homem capaz de fazer o bem é o mesmo capaz de amaldiçoar e matar” – escreveu Mário Mauro, filósofo e político italiano, vice-presidente do Parlamento Europeu. “O homem é uma unidade e cada um de nós carrega em si uma contradição que lhe faz compreender que não é perfeito. A experiência do cristianismo nunca será ideológica, porque não supõe a idéia de um homem perfeito. Há quem diga que é possível ao homem ser ‘perfeito’. Basta que tenha a sua mesma posição política. Esta é a ideologia de hoje, que facilmente nos sufoca se não fossemos ajudados a ir contra a corrente e seguir a imponência e a beleza daquilo que encontramos”.
Dom Giussani escreveu, em O Eu, o Poder e as Obras (Cidade Nova, São Paulo, 2001), que a alternativa está entre o homem depender de um Transcendente, de um Mistério, de um Outro, ou depender de outros homens – e aí ele dependerá tanto mais destes homens quanto mais eles tiverem o poder. Para aquele que percebe que depende de um Outro, se torna claro que a responsabilidade diante da vida social – tanto para o político quanto para qualquer outra pessoa – é uma resposta a um gesto de amor que já aconteceu, e não um esforço moralista ou a decorrência de um projeto ideológico.
Realismo diante do que é o homem e fascínio por um encontro capaz de dar um sentido e uma tarefa à vida. Estes dois elementos estão na base de qualquer experiência de construção dentro da sociedade e na política. Bento XVI, em sua recente encíclica, lembra que a doutrina social da Igreja não se coloca como uma postura política a mais, mas quer ser uma ajuda para que o homem purifique a sua razão e, a partir daí, seja mais capaz de realizar a justiça e a solidariedade. O grande problema de fundo que permanece em qualquer contexto sócio-político não é o de qual projeto ideológico assumir, mas o de como chegar a esta postura humana adequada para o enfrentamento de qualquer situação.
Em nossa sociedade, a unidade é entendida, geralmente, como fruto de uma necessidade em comum. Os homens se colocam juntos pela urgência em resolver um problema, enfrentar um inimigo comum, atingir uma meta. Mas, nesta posição, é o interesse individual que gera a unidade. Quando este interesse está satisfeito, ou quando aparecem contradições entre os vários interesses particulares, a unidade se rompe.
Esta é justamente a postura inadequada para a solução dos problemas. Pode parecer adequada no curto prazo, mas acaba mostrando-se falha em uma construção de médio e longo prazo, quando os problemas e os contextos mudam e os interesses e demandas das pessoas também mudam. A unidade não pode nascer de uma exigência ainda não satisfeita, mas sim do encontro com uma resposta que já está em ato. Então, a política não é o marchar rumo a uma utopia que não se sabe quando nem como acontecerá, mas o desenvolvimento e consolidação de uma riqueza de vida que já está em ato.
Nesta perspectiva, tanto a ação coletiva quanto a postura pessoal têm a mesma origem: a consciência de alguma coisa que já aconteceu, que já está em ato. Isto coincide com a consciência do pertencer a um coletivo que se formou não na oposição a uma força externa, mas na memória a uma riqueza compartilhada. Este é o sentido de ser um povo. Dentro desta consciência de ser povo, é possível manter uma postura humana realista diante das contradições de todos nós e que mantém viva a esperança diante das dificuldades e das ameaças do poder.
Apesar de muito usada, a palavra “povo” perdeu em nosso cotidiano o seu poder de designar uma realidade concreta e significativa. Tornou-se quase um sinônimo para “massa”, referindo-se a um conjunto informe de pessoas. Mas é possível viver, mesmo na realidade de um mundo globalizado e dinâmico, a memória de um valor e de uma riqueza em comum, explorar uma tradição que não é tradicionalismo nem saudosismo, mas uma força viva de enfrentamento das contradições do momento presente. Este é o sentido do “povo cristão”, que há cerca de 2 000 anos rompeu os limites das etnias e se compreendeu como povo universal, unido por um valor e um sentido para a vida, pela memória de um encontro com um Outro.
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