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Passos N.75, Agosto 2006

CULTURA

Canção do Vento e da Minha Vida

por José Eduardo Ferreira Santos

A poesia é uma forma de comunicação humana. Ela usa de símbolos e palavras para fazer emergir o que de humano há em nós. Para isso o autor, o poeta, usa as metáforas, as palavras, textos densos que nos apresentam com olhos diversos a realidade, fugindo do tom banal que muitas vezes empregamos a ela.
Neste ano de 2006, comemoramos os 120 anos de nascimento do poeta Manuel Bandeira, fato que merece uma homenagem a este homem que tornou mais bela a história da literatura brasileira. Ele nasceu no Recife, em Pernambuco, em 19 de abril de 1886, e morreu no Rio de Janeiro, em 1968, aos 82 anos.
Falar de Manuel Bandeira é encontrar uma expressão de vida que se revela nos seus poemas e na sua existência, num misto de possibilidades e limites diante do viver, síntese de uma existência que se debateu entre o encontro com o real e a vida que “poderia ter sido e não foi”.
Iniciemos o nosso percurso com o trecho de um poema do Manuel Bandeira, datado de 1917, denominado Epígrafe, cujo conteúdo se mostra ilustrativo e representa uma síntese da sua obra poética – e de sua vida, onde o autor assim se autodefine:

Sou bem nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida.
Rompeu em meu coração.
Levou tudo de vencida.
Rugiu como um furacão. (...)¹


Manuel Bandeira foi precursor da poesia moderna brasileira, cronista, tradutor, ensaísta e grande conhecedor da cultura e das artes. Sua presença foi fundamental na literatura brasileira, onde sua obra é muito especial, de uma consistência e integridade únicas.
Um amigo mostrou-me, certa vez, um autógrafo do Bandeira e me contou sobre como era o seu cotidiano: tudo era tão simples na sua rotina, e dessa simplicidade nasceu uma obra comovente e grandiosa, que não perde a sua atualidade. Bandeira é poeta do cotidiano, das coisas miúdas, que não eram “objeto” da poesia. Poeta do deslumbre diante dos pequenos aspectos do cotidiano; das rememorações da infância no velho Recife; da satisfação com o presente, como vemos neste poema Belo Belo, de 1940:

Belo, belo, belo,
Tenho tudo quanto quero. (...)
- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.


Eu me reencontrei com ele quando fui ao Rio em junho de 2006 e pude comprar um Cd já raro pelo valor histórico, O poeta em Botafogo², de 2005. Grande e inestimável iniciativa do senhor Lauro Moreira, onde Manuel Bandeira, o próprio, diz os seus poemas, gravados na residência de Lauro Moreira e da escritora Marly de Oliveira, nos idos de 1960. Um encontro. Para mim, um reencontro, pois Bandeira me acompanha desde os 13 anos, quando datilografei muitos dos seus poemas numa pasta que conservo até hoje.
O poeta, desde a juventude, em 1904, teve que conviver com a tuberculose, que, na época, era ainda uma doença incurável. Fazia parte do tratamento a freqüência a espaços com bons ares, o que lhe impediu muitas coisas na vida, e lhe deu como companhia constante a sombra da Indesejada das gentes, a morte, à qual dedicou poemas como este, Consoada, de 1952:

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:

- Alô, iniludível!

O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.


Mas, a despeito dela, o poeta pôde viver mais de 80 anos, chegando, inclusive, a ultrapassar, em idade e vida, um médico que lhe havia diagnosticado a morte na juventude. Por essa convivência com a morte, a experiência do real em Bandeira é muito intensa: há uma percepção que ultrapassa a aparência das coisas, como que encontrando o significado de cada objeto e experiência para além de sua utilidade, olhando a realidade com olhos mais profundos.
Sua poesia é identificada com a experiência do cotidiano e carregada de um lirismo que é atento à realidade, mas em outros momentos, propenso a uma fuga dela, devido à sua doença, e isso possibilitou a criação de poemas como Vou-me embora pra Pasárgada. Segundo ele, este foi o poema de maior gestação de sua obra, que surgiu em um momento de evasão diante da situação de doença que vivia. Outros poemas seus conhecidos são O bicho, Evocação do Recife, Os sapos, Trem de ferro, Poética, A estrela, Profundamente, Meninos Carvoeiros, dentre tantos outros.
A poesia de Manuel Bandeira carrega também uma constante recriação e descrição densa do real pelas palavras certas, bem escolhidas, cada qual querendo expressar, em imagens e sonoridade, o que os nossos olhos não conseguem ver. Por este motivo, e sua sensibilidade aguçada, Bandeira desentranhava a sua poesia das matérias mais corriqueiras da vida, como das notícias de jornal, das paisagens, dos parentes que iam morrendo, das lembranças da infância e do cotidiano brasileiro, com suas temáticas culturais, prosaicas, religiosas (orações aos Santos e Nossa Senhora) e sociais.
De sua obra poética, considerada uma das mais belas do Brasil, um poema tem chamado a minha atenção nestes dias, o Canção do vento e da minha vida, do livro Lira dos Cinqüent´anos, de 1940. Uma verdadeira obra-prima, que se debate entre a perda e a plenitude, na certeza de que toda perda – aparente – revela, no fundo, um ganho que não podemos mensurar e ninguém pode roubar de nós. Esse poema sempre me acompanhou nas leituras que faço do Bandeira, mas neste último mês, ele povoou meus pensamentos constantemente, talvez pelo entendimento de que há uma promessa que sempre se realiza em nossa vida.
O poema é misterioso, porque não conseguimos, nas primeiras leituras, identificar de que ponto de vista ele percebe essa perda, podendo ser analisada, tanto pela perspectiva da doença que o consumiu durante a vida inteira, quanto pela certeza de que a sua postura diante da vida, dado o seu frágil estado de saúde, tenha lhe possibilitado compreender que há uma resposta que recoloca ordem nas coisas e transforma o mal em bem, repondo cada coisa em seu lugar, o que pode indicar que a morte não é a última palavra sobre a vida, o que apresenta uma esperança de reconquistar cada aspecto de sua existência.
O poema se divide em quatro estrofes, com seis versos cada, onde os três primeiros versos de cada estrofe listam as coisas, objetos, sensações e pessoas que o vento “varria”, e os três últimos versos de cada estrofe mostram, paradoxalmente, como a sua vida ficava cada vez mais repleta e plena após a passagem desse vento. Podemos entendê-lo de várias formas, pois esse varrer pode indicar o ato de levar embora, arrastar para longe de si as coisas e experiências amadas, ou também torná-las mais limpas, ordenadas, com sentido. Eis o poema:

O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.
O vento varria os sonhos
E varria as amizades...
O vento varria as mulheres.
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.

O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos...
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.


Este grande poema revela uma promessa misteriosa e presente, principalmente quando nos entregamos nas mãos de um Outro. A intuição do poeta toca no Mistério. Quem pode preencher tudo? Quem pode conferir essa esperança? Quem pode realizar tamanha promessa, se às vezes o vento ou tempo parecem levar tudo de nós?
O poema mostra-se muito semelhante à promessa do cêntuplo que Cristo faz no Evangelho, onde o “vento” pode ser percebido como uma realidade, como o tempo, que tende, aparentemente, a nos tirar tudo, mas, depois, algo ou Alguém, sempre recoloca tudo no lugar. Não sei se o poeta se deu conta deste fato, mas há nele a intuição de uma resposta, o que confere uma beleza singular ao poema, porque revela um modo novo de conceber a vida, revelando uma presença que preenche tudo. Há no poema uma esperança humana que nos aproxima de sua experiência.
O poema dialoga com cada um de nós, particularmente porque fala de muitas coisas que fazem parte do universo de qualquer pessoa: afetos, amizades, músicas, alegrias, sonhos, aromas, a totalidade, enfim. Tudo o que faz parte da vida cotidiana, e que, por algum motivo, pode se perder.
Há, por fim, uma tensão entre o instante e a eternidade, onde o poema encontra o seu sentido, que está, sempre, na percepção de que existem certezas que não se apagam e nem passam. No entanto, ao final de cada estrofe, vem a promessa, apesar do vento: “a vida fica mais cheia de tudo”.
Mas como isso é possível? Acho que o poeta intuiu que há uma presença, que recoloca tudo no lugar, e confere sentido ao que vivemos, com uma esperança infinita, para que não fujamos de nada.

Notas:
¹ Todos os poemas citados neste texto encontram-se no livro Estrela da vida inteira (3a edição, 1973. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro), com todas as poesias de Manuel Bandeira reunidas.
² Cd Manuel Bandeira, o poeta em Botafogo (2005), produzido por Luiz Chaffin, com concepção e realização de Lauro Moreira.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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