O poder parece querer diminuir a amplitude do coração com algo mais “cômodo”, anestesiado, para reduzir as relações a mera burocracia. Resultado: um eu desfacelado, embargado, sem direção
A opção que nos desafia a todos, hoje, é “reencontrar o sentido e a alegria da própria vida”, que Bento XVI repropõe – com o entusiasmo de uma criança – como o destino do homem (por exemplo, quando discursou para a diocese de Roma, falando sobre a educação dos jovens para a fé, dia 5 de junho de 2006). Contudo, vários grupos políticos propõem cada vez mais uma “insensibilização” burocrática frente às próprias emoções, a começar por aquelas ligadas à dor. Esta “insensibilização” é, inclusive, apontada como um novo fator de desenvolvimento social a ser realizado pelo poder político.
Esse poder que decide ocupar-se da dor das pessoas (talvez também porque as ideologias de que dispõe o deixaram sem receitas para decidir sobre temas específicos do governo, como a economia, o transporte, a política internacional etc), fala dela como se se tratasse de um fenômeno neurológico, biológico, resolvível com anestésicos ou com o uso cuidadoso de substâncias ou práticas que induzem a morte, docemente tanatogenéticas.
Relação com a dor
A dor humana, porém, tal como a alegria, é muito mais do que isso, vai muito além. A relação com a dor é um conhecimento direto, pessoal, não um pensamento governamental (que pode, porém, ter conseqüências práticas de grande importância). A relação com a dor, tal como com a alegria, é uma experiência elementar do coração humano, dos seus afetos (justamente no sentido em que Julián Carrón, retomando Giussani, falou durante os Exercícios Espirituais de 2006). Só partindo do coração, da experiência afetiva elementar que a mãe tem com o bebê que começou a viver dentro dela, e que estimula a nascer; do afeto, às vezes silencioso, pelo pai que se prepara para a morte; ou pelo amado(a) que leva uma vida diferente e misteriosa, que se comunica de um jeito diverso; só assim é possível viver com plenitude humana (e não só intelectualmente, ideologicamente) essas situações. Só relatando as pulsões, os projetos, as idéias que nascem dentro de mim, nas minhas relações afetivas, só submetendo-as sempre a essa prova verdadeira, porque elementar, porque descritiva da nossa “marca interior” (como o chama Giussani em O Senso Religioso, p. 26) do nosso Eu (como diria em linguagem psicológica), é que posso aproximar-me de fato do outro, expressar-me, estar com ele, amá-lo.
O resto é burocracia das relações. É o “desencanto” de que falava Weber, um século atrás, ao se referir ao poder político e econômico, que hoje já invadiu todos os âmbitos do humano, e quer ocupar com intervenções, regulamentos, prescrições ideológicas, também a esfera sexual e reprodutiva.
Do ponto de vista psico-antropológico, com essa orientação o atual poder político propõe a tecnologia da substituição do coração, com a ideologia do menor esforço afetivo como estilo de vida e de relacionamento. Menor esforço, reduzido ou anulado envolvimento do coração, que comporta outros gestos, outros atos, muito relevantes nesse mal-estar contemporâneo.
Essa “pouca observação e muito raciocínio”, que Giussani cita (de Alexis Carrel) logo na abertura de O Senso Religioso, é um sinal desse “enervante utilitarismo da vida moderna”.
Pesadelo totalitário
O que os arautos desta insensibilização não suspeitam, mas que qualquer honesto estudioso da psique não pode ignorar, é justamente que todo esse “utilitarismo”, essa anestesia e fuga da dor, é profundamente “enervante”, no sentido literal de que debilita os nervos, bloqueia a capacidade de reagir (afetivamente e até mesmo mecanicamente) ao estímulo, deixando a pessoa como que deso-rientada, sem dor, mas também sem rumo, sem direção.
Esse trágico programa de ação política tende a permanecer como que oculto, subentendido, como um fantasma horripilante, poderoso porque um modo de ser conta mais que mil discursos. Ele nos afasta, gradualmente, daquelas experiências elementares (entre as quais, a dor, irmã da alegria) sem as quais não há amor pela vida, não há estímulo, porque não há coração. Se a dor-alegria de uma gravidez é anulada com uma pílula; a dor do parto, com um sedativo; a de um ancião em estado terminal, com outros instrumentos que o “desligam”; a da construção de uma identidade sexual, com um certificado público de diversidade; e assim todas as demais, inclusive aquelas que passam pela supressão do mais fraco e indefeso, então é sinal de que nós já perdemos aquela liberdade pela qual o nosso coração bate, acima de tudo, organizando por trás do seu projeto vital as forças da razão.
E já estamos penetrando, então, naquele pesadelo totalitário onde, em vez de judeus, matam-se crianças, temperam-se as identidades, para convencê-las a acomodar-se em posições de menor esforço, mas também de menor valor, portanto mais fáceis de chantagear (pois, por estranho que possa parecer, sempre há alguém disposto a controlar o seu telefone).
A essa quieta e mortífera frieza, a psique, que também é elementar, responde com a paixão primordial pela vida. Com o dom. A minha vida pela sua. Até porque não são separáveis. A não ser transformando a vida em um inferno.
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A supressão de qualquer sofrimento
como política de Estado
No artigo aqui apresentado, Claudio Risé comenta uma das
tendências mais fortes no Estado contemporâneo. Diante da dificuldade de enfrentar as contradições e injustiças da sociedade, as políticas públicas se voltam para uma pretensa “supressão do sofrimento”, que acaba coincidindo com uma insensibilização da pessoa diante de sua experiência humana.
No Brasil, a primeira manifestação deste processo foi a generalização da cesariana, em contraposição ao parto normal. O que era um procedimento especial, com várias conseqüências sobre o corpo da mulher, passou a ser compreendido como sendo o “normal”, pois aliviava a dor imediata e facilitava a vida dos médicos, que podiam “agendar” os partos.
Mas o processo evoluiu, e o que pode ser uma opção inocente pela “não dor” vai ganhando contornos cada vez mais dramáticos. Assim, a esterilização compulsória de mulheres pobres se tornou prática comum em vários lugares do mundo. Por que trazer novas crianças à vida, sabendo que elas, suas mães e parentes irão sofrer o drama da pobreza? Melhor que estas mães nem tenham a opção de ter filhos...
O passo seguinte é a supressão voluntária da vida do próprio filho, pelo aborto provocado. A mãe, para fugir do sofrimento pessoal, passa a se considerar no direito e sacrificar o filho ainda não-nascido. E mais: oferecer – e até incentivar – o aborto passa a ser considerado obrigação do Estado.
A mesma lógica se aplica, no final da vida, ao paciente terminal: por que as famílias irão sofrer com seus velhos? Melhor matá-los logo. Sem sofrimento, mas também sem amor...
Por incrível que pareça, a pesquisa com células-tronco embrionárias passa pela mesma lógica: a pessoa humana que é o embrião não pode manifestar sofrimento, portanto vamos sacrificá-los em nome de uma vaga promessa de que os doentes do futuro não sofrerão.
Assim, o Estado, que inicialmente só é chamado a permitir estas práticas, passa gradativamente a torná-las “políticas públicas”, isto é procedimento padrão para toda a população e termina mesmo por torná-las até obrigatórias em certas situações. Trata-se de uma nova forma de “tutela”, de dominação, de quem tem o poder político sobre a pessoa.
(por Francisco Borba Ribeiro Neto)
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