No último mês de maio completaram-se sete anos de falecimento de Enzo Piccinini, um dos responsáveis pelo Movimento Comunhão e Libertação na Itália. Para lembrá-lo, propomos o trecho de uma palestra que ele proferiu em Módena, em 1978. Mistério, fé e liberdade
Se Jesus desejasse impor-se e impor Deus ao mundo poderia ter ressuscitado clamorosamente, ter ido encontrar Pilatos e Caifás e ter voltado a circular nos pórticos do templo fazendo-se ver por quem zombara dele pregado na cruz. Mas Deus quer que acreditemos nEle, coloca-se à mercê da nossa liberdade, porque a liberdade é o valor mais alto, aquele pelo qual somos sua imagem.
A tradução existencial mais imediata da fé, segundo Jesus, é a oração como pedido. “Pedi e vos será dado, buscai e achareis, batei e será aberto” (Mt 7,7). “Se vós, pois, que sois maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai celeste dará boas coisas aos que lhe pedirem” (Mt 7,11). Jesus quer afastar toda incerteza sobre a oração: o juiz iníquo não queria fazer justiça à viúva, mas cedeu diante da sua incessante súplica: “Por acaso não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que estão clamando por ele dia e noite? Porventura tardará em socorrê-los? Digo-vos que em breve lhes fará justiça. Mas, quando vier o Filho do homem, acaso achará fé sobre a terra?” (Lc 18, 7-9). Na raiz da não-oração está a não-fé. Se tivéssemos fé, a vida transcorreria no pedido, seria um pedido contínuo pelo Reino.
Abandonar-se ao Mistério
Porventura Deus é mau, não generoso e lento em responder como o juiz iníquo e como todos nós? Se, ao contrário, é infinitamente bom e misericordioso, como é possível que o Reino nunca aconteça entre nós? Porque nós não lhe pedimos, não gritamos a Ele dia e noite. E não pedimos porque não temos fé, não vivemos a fé, não há em nós uma certeza que alimente o nosso pedido. Tendo firme no coração o juízo de certeza sobre Deus a pessoa se abandona verdadeiramente e se apóia até o fundo no Mistério, a cujas mãos confia tudo. Só assim é possível obter algo: confiando e abandonando-se totalmente, porque vivendo assim a pessoa torna-se de Deus, começa a pertencer a Ele e a ser uma coisa sua. A grande potência de Deus começa a operar somente em quem a preza verdadeiramente e se abandona. O nosso problema, a nossa dificuldade, é nos desligarmos do nosso poder, que sabemos que é frágil e incerto, mas temos um medo terrível de abandonar. O ponto é renunciar à falsa segurança e à ilusão que o nosso projeto nos dá: somos tão bobos que para nos sentirmos seguros basta apenas termos formulado um projeto, não é preciso nem mesmo tê-lo realizado; e, quando ele se realiza, percebemos imediatamente a sua inconsistência. Somente renunciando à ilusão de poder que a esperança em um projeto nosso nos dá, poderemos experimentar a potência inabalável e absoluta do Mistério. Como potência, é irresistível e todos nós já o experimentamos de algum modo. Porém, tem seu próprio tempo e nos obriga a sermos pacientes, o que é um modo privilegiado de depender. Ter fé é viver em tensão ao Mistério na paciência.
A alegria do arrependimento
Entre as coisas que pedimos pouco, ou pedimos sem fé, está o perdão. “Filho, teus pecados estão perdoados” (Mc 2,5), são as primeiras palavras de Jesus ao paralítico, e elas escandalizam os escribas presentes que, sendo formados em Teologia, sabiam que somente Deus pode tirar os pecados. O Senhor dá este perdão, mas o homem tem dificuldade em acreditar realmente. A pecadora anônima tinha tanta fé, estava tão certa de ser perdoada, que se jogou a seus pés para agradecer, com ungüento e lágrimas. Devemos nos comparar com esta certeza, nós, que nos confessamos, mas não acreditamos na absolvição. Tanto é verdade que saímos do confessionário ainda com o peso psicológico do nosso pecado, não nos sentimos livres daquilo que fizemos ou deixamos de fazer. “Há mais alegria no céu por um pecador que se arrepender do que por 99 justos que não necessitam de arrependimento” (Lc 15,7): mas nós não acreditamos nesta alegria, e não saímos contentes da confissão. Fazemos um gesto bem intencionado, mas formal, e a certeza do perdão não acontece em nós. Observemos, ainda, que as lágrimas de alegria continuam sendo lágrimas de arrependimento e pedido de perdão. A certeza não exaure o pedido: o modo pelo qual a certeza consome o coração é o incansável pedido de que se cumpra aquilo que Deus quer.
Um outro sintoma disto é o fato de que não perdoamos os outros. Somos como o devedor a quem é perdoada uma dívida de um milhão e, no entanto, estrangula seu companheiro porque lhe deve cem (Mt 18, 21-35). “Com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos” (Mt 7,2; Lc 6, 38). A falta de consciência de ser pecadores e a falta de certeza sobre o perdão nos torna inevitavelmente violentos para com os outros. Mas, mais que pela impiedade contra o próximo, seremos julgados pela impiedade de não ter acreditado na misericórdia. É maior o pecado diante de Deus que diante dos outros, um é causa do outro. A ofensa radical a Deus é não crer nEle.
Há, ainda, um passo: o pedido vivido com fé habilita o homem a realizar as obras de Deus. “Se tu, porém, podes alguma coisa, ajuda-nos, compadece-te de nós. Disse-lhes Jesus: Se podes alguma coisa!... Tudo é possível ao que crê” (Mc 9, 22-23). Ele já tinha se enfurecido antes, quando soube que os discípulos não puderam curar um rapaz por causa de sua pouca fé (Mc 9, 18-19). E, quando os discípulos lhe perguntaram por que não puderam tirar-lhe o espírito mal, Jesus respondeu que era necessária a oração (Mc 9, 28-29), expressão da fé.
Pedir a Cristo
Se tudo é possível a Deus, tudo é possível a quem crê. Quando alguém, na fé, venceu a si mesmo e não tem mais sua consistência em si, mas em Deus, o Senhor opera por meio dele. Os discípulos ficaram felizes porque os demônios se submeteram a eles (Lc 10,17). A pessoa pode fazer tudo se está fundado radicalmente no Senhor: esta é a condição preliminar da oração.
O Evangelho de João usa esta expressão: “Pedir em nome de Cristo” (cf. Jo 14, 13-14). Nome significa potência, fazer conhecer o nome de Deus é elevar a sua potência (Jo 17, 6.26). Pedir em nome de Cristo é servir-se da sua potência, assemelhar-se a Ele e viver o relacionamento com o Pai como Ele. A identidade de Cristo é, de fato, o Pai (Jo 10, 30), assemelhar-se a Cristo é colocar-se diante do Pai como Ele, quer dizer, nEle. Pedir em nome de Cristo é, portanto, imitar, ou melhor, participar da sua oração, deixar que o seu pedido a Deus nos invada e determine o nosso pedido.
O Getsêmani é a documentação mais impressionante do pedido de Cristo: “Agora minha alma está perturbada. Mas que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas é exatamente para isso que vim, para esta hora. Pai, glorifica o teu nome!” (Jo 12, 27-28). Toda a lógica da oração se encontra aqui: Cristo sabe que tudo é possível ao Pai, bastaria pedir para ter legiões de anjos ao seu lado (cf. Jo 18, 36), mas a sua consciência de Filho o faz querer aquilo que o Pai quer. “Glorifica o teu nome” quer dizer “manifesta a tua potência”. Quando nós fazemos o sinal da cruz e dizemos “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, lembramos que a potência do Pai, do Filho e do Espírito Santo é a cruz. Aquilo a que apelamos quando rezamos a Cristo, é a esta potência. O muçulmano pio, diante de cada ação importante do seu dia pronuncia a basmala: “Em nome de Deus, o clemente, o misericordioso”. Ele também tem consciência de que o homem não pode nada e deve apelar à potência do Misericordioso. Mas nós conhecemos o rosto desta potência, o amor feito cruz. Aqui, tocamos a profundidade e a responsabilidade da nossa fé. “Se permanecerdes em mim e as minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes e vos será feito” (Jo 15, 7). Mas o modelo daquilo que queremos é o Getsêmani: pedir em nome de Cristo. A fé nos faz pedir segundo a vontade de Deus (1 Jo 3, 22; 5, 14-15), porque esta vontade, e não a nossa, cumpre e realiza o nosso destino, que é a nossa necessidade mais verdadeira (Mt 6,8). O Pai nosso que Jesus nos ensinou (Mt 6, 9-13; Lc 22, 2-4), o Aba que o Espírito nos faz gritar (Rm 8, 15; Jo 4, 6) são interpretados à luz do Getsêmani e de Jo 17 e são o modelo da oração cheia de certeza. A obra da fé é que a vontade de Deus plasma a nossa: assim, a oração torna-se potente (“em nome de...”), princípio de potência e de obras. “O Pai que permanece em mim realiza as suas próprias obras... aquele que crê em mim também fará as obras que eu faço, e fará ainda maior do que estas: porque vou para junto do Pai” (Jo 14, 10). É a transformação do mundo, a construção do Reino. “Quem crê já passou da morte para a vida” (Jo 5, 24). A vida é Cristo. A fé introduz o homem em uma dimensão totalmente diferente daquela normal na qual todos vivem (inclusive nós). Dizemos que a fé introduz na única dimensão real porque real é somente aquilo que Deus quer e opera. O resto é aparência, um suceder-se de acontecimentos e de coisas nas quais nada é realmente novo, nada acontece, nada muda. A vida sem fé é uma história falsa porque não acontece nada, nenhum desejo encontra realização, o destino não se cumpre, permanece mudo.
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