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Passos N.72, Maio 2006

DESTAQUE - Contra o Vírus Niilista

Catalunha: menos Espanha, menos liberdade

por Fernando De Haro

Em março, foi aprovado o novo Estatuto da região espanhola. Num clima de niilismo e de relativismo, foram “consagradas” novas liberdades e instituídos novos direitos, como a eutanásia, o aborto e os casamentos homossexuais

A Catalunha é cada vez menos espanhola. O Congresso dos Deputados aprovou, no mês de março, o novo Estatuto da Catalunha, uma autêntica Constituição que, em relação a alguns assuntos, vai muito além das Constituições dos Estados federados. Mas o paradoxo é que a reforma foi posta em ação sem que a sociedade a exigisse. Segundo as pesquisas, quando se iniciaram os trabalhos voltados para a mudança, eram poucos os catalães que a consideravam necessária. Agora, faltam apenas algumas formalidades, além do referendo de junho, para que o novo texto seja definitivamente aprovado.
O nacionalismo conseguiu realizar o seu velho sonho de obter para a Catalunha a condição de realidade diferenciada. A obsessão pela diferenciação explica boa parte da instabilidade territorial da Espanha nos últimos 25 anos. Obsessão baseada numa suposta ofensa.
Uma análise histórica nos permite constatar que a Catalunha foi uma nação cultural, uma comunidade com tradição e língua próprias dentro da nação espanhola. Mas o grande problema é que quase toda a classe política e quase todos os intelectuais da Catalunha – alimentados pelo nacionalismo – transformaram esse conceito cultural num conceito político.
O texto do novo Estatuto catalão, no Preâmbulo, reconhece que essa região tem a natureza jurídica de nação, etapa indispensável para que possa exigir o direito de autodeterminação. Direito que – como lembraram os bispos espanhóis a respeito do terrorismo do ETA (sigla em língua basca que significa: Pátria Basca e Liberdade; nde) – a doutrina social da Igreja considera aplicável apenas a uma realidade territorial que foi invadida ou conquistada. E não é esse o caso.

Nacionalismo alterado
Mas para compreender bem o novo Estatuto não precisamos levar em conta só o nacionalismo tradicional, que tanta violência gerou na Europa do século XX. Além da ampliação da competência do governo regional, exigiu-se muito mais. Temos diante de nós os frutos de um movimento regionalista que surgiu no final do século XIX como resposta do mundo católico aos desafios da modernidade. No século XX, esse movimento regionalista se transformou num nacionalismo que afirmava o particular sem se abrir para o universal; e no início do século XXI também sofreu “mudanças”, até se tornar uma realidade que quer romper deliberadamente com as referências que serviram para regular a convivência dentro da Espanha nos últimos 25 anos.
O texto do Estatuto é reflexo de uma autêntica revolução radical promovida pelos círculos de Pascual Maragall – atual presidente catalão –, de Esquerra – partido minoritário independentista – e, sobretudo, de Zapatero. As forças que constituem o Parlamento catalão, convictas de que a Constituição que se estava elaborando jamais seria efetiva, durante meses bandearam-se para o extremismo. Todas as fórmulas que vinham à mente para garantir a “catalanidade” com a intervenção do Estado e para tutelar novos direitos – absolutamente diferentes dos direitos clássicos – confluíram no texto. Num clima de niilismo, de relativismo, consagram-se novas liberdades.
Como Alejandro Llano, professor de Metafísica, explica claramente: “Os direitos não provêem da natureza; são algo que o Estado cria, que o Estado fabrica. Propriamente, não podem ser chamados de direitos humanos”. São fruto de uma ideologia que transforma o Estado em “realizador” de desejos que não respeitam a real natureza das coisas.

Unidade em questão
E quando o texto do Estatuto parecia condenado ao fracasso, Zapatero transformou-se em seu protetor, trabalhando para que ele tivesse os votos suficientes no Parlamento catalão e no Congresso dos Deputados. Emerge, assim, uma Constituição catalã que coloca em dúvida toda a experiência que deu forma à unidade da Espanha. Essa unidade é o “depositum” da tradição ocidental, que teve impulso com o cristianismo e foi acolhida pela social-democracia clássica, pelo liberalismo e até pelos comunistas favoráveis ao regime democrático.
A maior parte dessas tendências representadas no Parlamento da Catalunha e no Congresso dos Deputados não compartilhava, inicialmente, a vontade de “desconstruir” a tradição ocidental, porém elas não tiveram razões suficientes para defendê-la e terminaram por transformar-se em simples coadjuvantes.
O nacionalismo de origem católica, convicto de que o protagonista da história não era mais a Igreja, mas a “mediação” do povo catalão, terminou por ser instrumentalizado pelo subjetivismo radical encarnado por Zapatero (“não é a verdade que nos torna livres; é a liberdade que nos torna verdadeiros”, afirma o atual presidente do Governo espanhol).
Particularmente trágico foi o papel desempenhado pelos democrata-cristãos. O Unio (União Democrática da Catalunha) é um dos partidos que fazem parte da CiU (Convergência e União), a coalizão que governou por mais de vinte anos a Catalunha. Neste momento, está na oposição, mas graças a um acordo do seu líder – Artur Mas – com Zapatero, o Estatuto foi salvo. O Unio limitou-se a votar, no Parlamento, contra os artigos do Estatuto que abrem as portas para a eutanásia sem restrições, para o aborto livre e que consagram o casamento gay. E o Congresso dos Deputados, depois de algumas mudanças não-substanciais, votou a favor.
Os democrata-cristãos catalães desempenharam um triste papel. Abandonaram a própria vocação de minoria-que-testemunha para se tornar uma minoria-cortesã. A Catalunha continua sem uma regulamentação do poder autenticamente laica e verdadeiramente a serviço do povo. Ao mesmo tempo, triunfa o confessionalismo laicista, em um novo Estatuto que impõe a ideologia radical.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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