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Passos N.69, Fevereiro 2006

CULTURA

Um Mozart desconhecido,
por trás da máscara

por Enrico Raggi

Um homenzinho mirrado, solitário. Ele sabia disso, mas não se preocupava. Bastava-lhe a beleza, que preenchia o seu vazio. Os sentimentos profundos do músico, tais como transparecem de suas cartas

Há um Mozart pouco conhecido, insatisfeito e sério, marcado por um humor negro e animado por um poderoso senso religioso, que as reportagens sobre o aniversário do seu nascimento (1756) provavelmente não vão relatar. É difícil descobri-lo, mesmo lendo o seu epistolário. Primeiramente, porque a tradução completa para o português ainda não existe. Mas, sobretudo, porque as cartas de Mozart são um terreno difícil de percorrer. Wolfgang coloca a toda hora máscaras diferentes, muda de estilo dependendo do interlocutor a quem escreve, modifica a linguagem segundo os objetivos que pretende alcançar. Foi um grande homem de teatro, na arte e na vida.
Se escreve ao pai, assume um tom sério, formal, de bom filho, educado e muito devoto. “Durante um longo período, mesmo antes de nos casarmos, eu e Constância íamos à Santa Missa, confessávamos e comungávamos; nunca rezei com tanto fervor, nunca me confessei com tanta devoção como quando a tinha por perto, e também para ela era assim. Numa palavra, fomos feitos um para o outro”. Quando precisa pedir emprestado algum dinheiro, torna-se suplicante, humilde, formal. Gosta de brincar, de usar palavrões, às vezes escreve palavras ao inverso, corta-as pela metade, troca a ordem da frase, inventa nomes, frases em código, siglas, três pontinhos.

Imagem suavizada
Depois que morreu, muitas de suas cartas foram destruídas pela esposa Constância, para fixar a imagem da eterna criança, imagem suavizada, linda, perfeita. Com o mesmo objetivo, as cartas que sobreviveram estão cheias de rasuras.
Outras cartas são invenções modernas. Uma famosa carta sobre a morte, endereçada a Lorenzo Da Ponte, datada de setembro de 1791 (“Nada tenho a temer, agora que a hora chegou e estou à beira da morte. Termino antes de haver usufruído do meu talento. A vida era tão bela, a carreira muito promissora, mas não se pode duelar com o próprio destino. Ninguém mede os seus dias, é preciso resignar-se, será o que aprouver à Providência. Termino, eis o meu canto fúnebre, não devo deixá-lo imperfeito”) não existe, ninguém jamais a viu, e foi transmitida para a história não se sabe por qual fonte poluída.
E também não sabemos se nas suas cartas Mozart finge ou diz a verdade. Ninguém escreveu tanto como ele, mas ninguém se escondeu como ele atrás de um rio de palavras. Mozart pertence ao grupo dos silenciosos: quanto mais escreve, menos se deixa capturar.

Um certo vazio
No entanto, nas entrelinhas, distraidamente, murmurando consigo mesmo, em meio a banalidades, Mozart deixa entrever o seu coração. Assim escreve à sua mulher, dia 7 de julho de 1791: “Não consigo explicar a você a minha impressão. É um certo vazio – que me faz mal –, um certo desejo que nunca se satisfaz e nunca se interrompe, dura sempre, ou melhor, cresce dia a dia. E penso como éramos alegres e infantis, juntos, em Baden, e como são tristes e aborrecidas as horas que passo aqui... Nem o meu trabalho me consola. Basta!”. Wolfgang afirmar que nem mesmo a sua música lhe basta é algo absolutamente revolucionário... Aí emerge um Mozart que se identifica plenamente com Don Juan: quanto mais crê compreender a vida, mais a sua sede aumenta. Quanto mais conquista, mais sente a solidão a desgastá-lo. Mozart sabe que recebeu um dom, a música, um dom que preencheu o vazio de uma vida normal, insignificante, absolutamente banal. Eis como descreve uma das suas jornadas: “Dia 27, na Missa das 7h30, ou coisa do tipo, depois com Lodron, ou coisa do tipo, depois não com os Mayr, que ficaram em casa. Logo depois do almoço, com a condessa Wicka, jogando baralho (tressette) ou coisa do tipo. De manhã, chuva. À tarde, o tempo fica bonito. Ó tempo! Ó bonito! Ó tarde! Ó chuva! Ó manhã!”.

Talento dado por Deus
Os biógrafos que o conheceram pessoalmente descrevem-no como um homenzinho mirrado, solitário, taciturno. Ele era consciente disso, mas não se preocupava. Bastava-lhe fazer frutificar o talento que Deus lhe havia concedido. Bastava-lhe descrever a dor e a alegria, a certeza, a dificuldade do viver, os transtornos do coração, os encantos do espírito, como ninguém jamais conseguiu fazer antes. Mozart irrompe lá onde a técnica não consegue chegar: o Ser, a morte, o homem frente ao infinito. Mozart observa e descreve o humano com uma fidelidade fortíssima: sente que no real há alguma coisa que atrai, e ele a busca por toda parte. A sua música desperta o nosso desejo de vida e de beleza. Mozart afirma sempre o outro de si. Descreve apenas o que viu. Não cria nada. Preocupa-se com o que existe: a fidelidade de um servo (Leporello), a doçura do olhar de uma namorada (o “Agnus Dei” da Missa da Coroação, ou a Condessa das “Núpcias”), o Mistério da Encarnação (na “K 427”).
A beleza nunca o assustou ou embaraçou. Jamais ficou incomodado por se julgar indigno, imoral, não a merecendo (a respeito, escreve: “Mozart era uma figura plena de incoerências e de limitações humanas”). Ao contrário, sempre buscou a beleza. E quando a encontrou e a reconheceu, nunca mais a abandonou: o rosto (e a voz!) das mulheres que ocupavam o seu teatro; a tremenda majestade do Onipotente; a febre de vida e de conhecimento da “Flauta Mágica”. Mozart observa e vai atrás da atração que existe no real.
Ouvindo a sua música, Mozart nos faz amar o Cristo e Nossa Senhora com uma intensidade que não se conhecia há séculos. A música que escreveu é o pedido do Bom Ladrão, é a afirmação do centurião, é o olhar afetuoso da Samaritana e o choro da Madalena. Não definidos pelos próprios limites, mas entregues completamente ao Extraordinário que encontraram.

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Spirto Gentil
Por Mozart


Na coleção “Spirto Gentil”, há cinco CDs dedicados a Mozart. Propomos trechos de Dom Giussani tirados dos libretos dos CDs.

Concerto para piano n. 20 K 466
Estuda-se bem aquela música que entra como que por osmose no nosso espírito, e não aquela que se aprende com a baqueta (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si dó). Que estrada infinita, que estrada longa, que itinerário sem fim, cheio de pedras, devem percorrer 99% das pessoas do mundo para chegar à ternura da flexão musical do viver e, portanto, da percepção de si e dos relacionamentos, que o “Concerto n. 20” para piano, de Mozart, é o maior exemplo que temos na história.
Mas de onde nasce esse sentimento de si e da existência, tão ardente, vivo e, ao mesmo tempo, emotivo?
Experimentalmente, é verdade que a original atividade do homem é reconhecer e constatar. Não há nada mais intenso do que a atividade de alguém que, de rosto aberto, contempla um quadro ou um rosto que lhe agrade; não há nada mais entusiasmante, mais tenso, mais vibrante, isto é, nada mais ativo. Creio que a criação artística é tudo isso.

Grande Missa em dó menor K 427
Essa obra grandiosa de Mozart, que alcança o auge no canto “Et incarnatus est” (E se fez carne), é a expressão mais poderosa e mais convincente, mais simples e mais espetacular de um homem que reconhece o Cristo. A salvação é uma Presença: ela é a fonte da alegria e da afetividade do coração católico de Mozart, do seu coração que ama o Cristo.
Et incarnatus est: é canto no estado puro, quando toda a tensão do homem se dissolve na limpidez original, na pureza absoluta do olhar que vê e reconhece.
Et incarnatus est: é contemplação e, ao mesmo tempo, busca, onda de paz e de alegria que nasce da admiração do coração quando é posto diante da confirmação da sua espera, do milagre do cumprimento da sua busca.

Missa da Coroação K 317
Agnus Dei. Com esse grito, traduzido em notas na sua “Missa da Coroação”, Mozart conquistou, seguramente, a misericórdia de Deus: música e voz se erguem potentes diante do Eterno, alcançando a suma perfeição, que é o espetáculo de beleza sempre almejado.
O seu gênio atinge esse cume não porque fosse uma pessoa reta, irrepreensível, sem mancha de erro; era, antes, uma figura cheia de incoerências e de limitações humanas, mas quando criava, sua ligação com Jesus misteriosamente iluminava todas as coisas.

Requiem
Mozart, artista supremo e profundamente cristão, representa, no “Requiem”, o mal do homem, o ódio do mundo, a malícia do pecado, mas traz dentro de si o reflexo da misericórdia de Deus.
[...] Cada frase do “Requiem” (como a música o evidencia) começa com a afirmação incontestável do domínio da justiça e da verdade, e logo é como que interrompida por algo que se introduz e suaviza repentinamente aquela dureza da justiça, aquela acre afirmação da verdade, a enternece num pedido, numa súplica, que sabe que pode fazer.

Vésperas Solenes do Confessor KV 339
O cosmo e a toda a realidade, do homem e da história humana, são como que uma grande construção, uma grande obra de arte, a grande obra-prima de Deus, da qual nós somos pedras vivas. Por isso, é a consciência que abre as dimensões do ser, da verdade, da beleza do mundo que é Cristo, de que as “Vésperas Solenes do Confessor” – essa belíssima música de Mozart – são um reflexo tão envolvente e fascinante. De fato, é a admiração que desperta o canto no coração de Mozart, e o nosso também; a admiração e a gratidão diante do Ser que é a verdade e a consistência de todas as coisas.

* Estes CD’s podem ser adquiridos pelo site www.itacalibri.it

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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