Passos N.109, Outubro 2009

RUBRICAS

Cartas

É SÓ UMA QUESTÃO
DE MÉTODO
Padre Paulo nos dizia no Retiro de Páscoa que a beleza fere. Nosso primeiro instinto é parar a dor, mas hoje sou grata por ela, porque foi ela quem me mostrou o que está acontecendo na minha vida. Porque definitivamente Algo está acontecendo. Quando encontrei o Movimento, uma das minhas primeiras vontades foi gritar para o mundo inteiro o que eu estava vivendo, dividir a maravilha que eu tinha encontrado, e me parecia impossível pensar em dar por óbvio algo assim. Mas como aplicar isso na escola, onde a maioria dos meus amigos se entrega a ideia de morte? Percebi que não adiantava tentar mudá-los porque a Yasmine sozinha não tem poder para mudar alguém, era preciso mais. Eu me sentia tão impotente perante tantos problemas! Assim que desisti da minha ideia de mudar o mundo, comecei a usar uma máscara, uma forma de fingir não me importar com coisas que no fundo eu sabia que importavam. Até que num dia normal, no ônibus, após uma das discussões que eu fazia questão de manter distância, um amigo que era um dos ateus mais convictos e polêmicos me disse: “Falaram tanta coisa, mas ninguém me explicou o que é a fé.” Então eu expliquei aquilo que me explicaram na Escola de Comunidade e quando eu olhei nos olhos dele, eu achei a beleza que o padre Paulo dizia. Na hora eu não entendi, mas aqueles olhos eram iguais aos meus quando era eu quem perguntava. Dentro dos olhos do meu colega eu perguntava também. Foi como levar um tapa no rosto. Realmente, eu não estava dando “o Movimento” por óbvio, eu estava dando os meus amigos, a minha vida por óbvia! Acordei e percebi que não tenho que tentar mudar os meus amigos por eles, mas tenho que conviver com eles do jeito que eles são, porque cada um me foi dado, cada um é um presente para mim. Para mim, não para eles. Eu preciso desses meus amigos “loucos” porque a amizade deles desperta a pergunta que eu carrego no meu íntimo, e os dias têm um novo sabor. Afinal, o entendimento é uma graça. Não fui eu que fiz meus pais aderirem a CL, foi uma graça que passou por mim, sem eu ter planejado. Por isso não há sentido em me preocupar se meus amigos se tornam do Movimento ou não, porque a finalidade do Movimento é me educar a viver a minha vida profundamente, levar tudo o que há nela a sério, amar o destino último dos meus amigos. Não dá para separar o meu cotidiano e o Movimento. Não é uma coisa que se pode controlar. Acho que na verdade há apenas uma condição: seguir, seguir o método. E o resto é mistério. Que bom que vocês apareceram na minha vida!
Yasmine, Rio de Janeiro – RJ


ENTRE AS ESTANTES
DA BARNES & NOBLE
Giacomo, 16 anos, enviou esta carta a seus amigos
Quinta Avenida. Uma garoa fina sobre Nova York, saio da catedral de St. Patrick e me dirijo à livraria Barnes & Noble. O objetivo é comprar A abolição do homem, de C. S. Lewis, sugerido por Matt. Aqui, Lewis é muito conhecido e publicado. Entro na Barnes, desço as escadas rolantes, vou às estantes de “Cristianismo” e “Inspiração Cristã” e começo a folhear os livros do autor de Nárnia. Depois, procuro livros de De Wohl (que, porém, não parecem ter) e de Giussani. Um exemplar de O caminho para a verdade é uma experiência (The journey to the truth is an experience) estava escondido entre os outros livros. Coloco-o entre os livros de Lewis. Chega uma moça coreana que também começa a olhar as estantes de “Cristianismo”, e em um inglês meio ruim, me pede ajuda timidamente. Eu, com o livro na mão, me viro e a olho. Quer algum conselho sobre aquele tipo de livro. Um pouco distraidamente, digo-lhe que Lewis é bom, e que os outros autores são pouco conhecidos na Itália. Exceto os santos e Lewis, não saberia o que sugerir. Começamos a conversar. Pelo que posso entender, ela pertence a uma Igreja protestante na Coreia, e eu lhe digo que sou católico. Chama-se Maggie.
Continuo olhando os livros de Lewis, e ela também pega um. Estava um pouco distraído, mas ela continuava a me pedir sugestões e, então, comecei a entender. Tudo me pareceu muito claro. Peguei o único exemplar do livro de Giussani e dei a ela, explicando o que é Comunhão e Libertação e sobre o que falava o livro, “fala sobre o encontro de Cristo e o seu desejo de felicidade”. Começamos a conversar e ela ficou muito contente. Ficamos ali um pouco e, não acreditando no que estava acontecendo, comecei a dizer que se ela quisesse saber mais sobre CL, poderia entrar no site e procurar páginas em coreano. Ela pegou uma caderneta na bolsa para eu escrever o endereço da web. Estava ali, feliz, com os dois livros na mão: Giussani e uma antologia de Lewis. Fomos ao caixa e pagamos. Ela pediu o meu e-mail e eu ainda lhe repeti todos os “procedimentos” para encontrar CL na Coreia, dizendo-lhe para entrar em contato. “Você é um amigo”, me disse ela, satisfeita. Eu não conseguia acreditar naquilo que estava acontecendo. Já me escreveu dizendo que vai ler os livros, que gosta da comida e da música italiana, e eu enviei a ela o e-mail da pessoa responsável na Coreia, a quem provavelmente eu também escreverei. Voltando para casa, não conseguia parar de rir e sorrir. Um pedaço da realidade vale realmente mais que mil palavras, e não importa como termine essa história, tenho a enésima prova de que o cristianismo é realmente um fato, e todos os meus cálculos nunca teriam me feito encontrar uma coreana em uma livraria americana toda satisfeita por levar para casa Giussani e Lewis. O resto, mas o que estou dizendo, tudo, é obra d’Ele.
Giacomo, Nova York – EUA

“ALÁ É GRANDE,
MAS O SEU DEUS TAMBÉM É”
Caro padre Carrón, o âmbito de trabalho no qual estou desenvolvendo minhas atividades neste período é um terreno árido e individualista. Há alguns dias, como de costume, vi-me diante de um casal em dificuldades. Sou obstetra, dou assistência às mães nos dias seguintes ao parto, depois da saída do hospital. Normalmente estão confusas, incomodadas com a administração da casa depois da chegada de uma criança para ser cuidada. O casal é árabe e tem uma menina, Sara, muito bonita, que chora esfomeada e a mãe não consegue amamentá-la. O marido a insulta publicamente e, sem paciência também comigo, quer uma solução imediata. Meu primeiro pensamento foi o de que era mais uma “briga” que precisava administrar. As costumeiras cenas de casais desse tipo, etc. Num instante, uma comparação profunda, uma pergunta silenciosa nasce dentro de mim: mas, no fundo, o que desejam diferente de mim? Como podem saber que são amados e que essa experiência é a prova mais evidente da afeição de Deus por eles? Olho para aquela mulher que se recusava a me olhar nos olhos e ser ajudada, e lhe pergunto: “Você tem medo?”, acaricio seu rosto e a trato com dignidade e firmeza, pedindo que ela confie em mim. O marido se acalma e começamos a conversar. Ao mesmo tempo, peço a Jesus que se manifeste entre nós. Veem-me em mente as coisas que pedi pela manhã durante as Laudes e... tenho vontade de chorar por causa do meu esquecimento e da Sua misericórdia. Passamos juntos duas horas ricas de descobertas, sorrisos, esperanças, depois a mulher pega minha mão, a acaricia e a beija. No final, o marido me agradece e diz: “Alá é grande, mas o seu Deus também é”. Eu respondo: “O meu Jesus é amor e está aqui, agora”. Saio do trabalho, volto para Milão e, por acaso, vejo-me diante do cemitério monumental. Decido visitar o túmulo de Dom Giussani para pedir que ele ajude a todos nós a levarmos a sério a proposta cristã que nos fez, como você nos lembrou nos Exercícios. Posso sintetizar este dia com uma frase de Dom Giussani do livrinho dos Exercícios da Fraternidade: “O empenho no caminho humano é condição para que estejamos alerta quando Cristo nos oferece o Seu encontro”.
Silvia

“CRISTO EXISTE E TEM
O ROSTO DE VOCÊS”
Tudo nasceu a partir de uma provocação da realidade. A crise econômica e o desejo da Companhia das Obras de Turim de “desembarcar” em Cuneo, nos colocou em movimento. Começamos a nos encontrar para jantar com alguns clientes, fornecedores e amigos, e propusemos uma amizade operativa e uma companhia ideal para enfrentar a crise. Não era possível, porém, não desejar falar até o fundo sobre a Origem dessas coisas. Assim, com simplicidade, falamos sobre a nossa experiência de empresários que têm um ideal presente para usar como critério para enfrentar a realidade: logo nasceu em nossos convidados um tipo de gratidão e de entusiasmo curioso por uma proposta “humana” que os fez sair da casca, e acabou sendo mais do que uma simples discussão profissional. Maravilhados com essa abertura inesperada, e gratos por aquilo que estava acontecendo conosco, nos dissemos que não poderíamos deixar de propor a todos eles aquele Fato Novo que tornou a nossa vida maior. Então, começamos a fazer Escola de Comunidade também em nossa empresa. Contemporaneamente, há alguns meses, alguns jovens trabalhadores vindos de Turim começaram a estreitar uma surpreendente amizade com alguns de nós, comigo e minha mulher em particular. Uma amizade que nos maravilhou, nos reanimou, nos recolocou em movimento depois de um inverno profissional e pessoal muito atormentado. Alguns funcionários nossos começaram a participar da Escola de Comunidade da empresa, alguns amigos aceitaram o convite para participar dos Exercícios dos trabalhadores, outros, ao contrário, ainda não se sentiam prontos para coisas “tão exigentes”, porém, se fizéssemos “algo mais leve”... Sem muitos cálculos e depois de alguns passeios e partidas de futebol, decidimos propor umas férias breves de sexta a domingo, no final de julho. Convidamos todos aqueles de quem gostávamos: funcionários, amigos que não eram do Movimento, clientes e fornecedores, alguns parentes e amigos do Movimento que precisavam recomeçar. No final, éramos uns vinte do Movimento e uns trinta “novos”. Pedimos ajuda a padre Primo e a Paolo, responsável de CL na região de Piemonte, e decidimos abandonar todos os temores e todos os cálculos “do que seria melhor propor e como”. A nós interessava apenas olhar aquilo que Cristo estava colocando diante dos nossos olhos e dizer o nosso “sim”. Na primeira noite, assistimos ao vídeo de Rose e, depois, ensinamos o Angelus. “O Verbo se fez carne e habita entre nós”: propusemos a todos que percebessem isso no testemunho de Rose, no vídeo, e no testemunho de Bottini, ao vivo, nos passeios e nos jogos, nos cantos e na música. Não sei descrever com palavras o que aconteceu desde os primeiros cantos na sexta-feira à noite (havia a timidez de quem não está acostumado) até quando nos despedimos no domingo: o olhar de muitos desses amigos, não só dos novos, aos poucos se fez curioso, depois, contente e, depois, grato, alguns até comovidos. Assistimos ao espetáculo de uma Presença que se manifestou entre nós e que agora está pedindo para que entreguemos cada vez mais a nossa vida a Cristo. Cristina escreveu: “O que vejo na amizade destes meses é que o nosso ‘sim’ pessoal, consciente e comovido tornou e torna possível essa letícia e essa beleza que vivemos. ‘Devemos festejar Cristo, que Cristo existe!’: essas foram as férias. Cristo está presente, agora! Quer dizer, não é que Cristo existe e a pessoa fica contente porque reconhece isso. Eu sou feliz porque Cristo existe e tem o rosto de vocês”.
Paolo, Cuneo – Itália

OS AMIGOS
QUE CONHECI NA PRISÃO
Sou Rosario, detento há mais de 18 anos. Tive uma vida desgraçada, sujando-me com crimes horríveis. Mas, desde o início dos anos noventa comecei a tomar consciência de que a vida que eu tinha vivido até aquele momento era uma vida vazia e sem valor algum. Com o apoio dos meus familiares, comecei a pensar em como recomeçar, coisa que, não obstante todas as dificuldades de alguns anos, consegui. Comecei a olhar a vida com olhos diferentes, também a detenção. Comecei a vivê-la com mais serenidade. Mas a vida, quando menos esperamos, nos coloca diante de dores difíceis de digerir. Em 2005, por causa de um tumor, meu pai morreu. Essa dor, unida à descoberta de que minha mãe tinha a mesma doença, me fez refletir muito e me aproximar de Cristo (para mim, esse gesto já era um acontecimento, porque embora tenha nascido em uma família católica, sempre vivi o catolicismo de maneira superficial). Mas, sem dúvida alguma, conhecer Vincenzo marcou e está influenciando de maneira positiva a minha existência, e ele está me ajudando no percurso da reflexão e da autocrítica, ajudando-me a aproveitar o máximo possível o verdadeiro Rosario e direcioná-lo aos comportamentos justos e aos valores da vida. Tem me ajudado a ter consciência da fé, que é uma coisa extraordinária. Graças a ele, Cristo passou a fazer parte da minha vida. Vivo uma vida plena e serena. Tenho uma força enorme, que não julgava ter. Com sua maneira de ser fez com que meu coração se abrisse para o próximo. Foi graças sempre a ele que conheci a importância dessa belíssima e extraordinária família que é o Movimento Comunhão e Libertação. Ainda por meio de Vincenzo, tive o prazer e a honra de conhecer e encontrar o professor Giorgio Vittadini. Ainda tenho no coração e na mente aquele encontro, prolongado, acontecido na salinha de visita da prisão de Biella com Vincenzo, Vittadini, Gigi Amicone e Calcedonio (outro colega da prisão que está vivendo a emoção deste conhecimento). Para mim, aquele encontro foi, sem dúvida alguma, uma das mais belas emoções que jamais me aconteceram, porque ter a atenção de pessoas tão boas e de tal estatura moral, para mim foi comovente. Ouvir o professor Vittadini dizer, com uma simplicidade desarmante, que eu fazia parte do grupo deles, encheu meu coração. Para mim, tudo isso foi uma confirmação de que o bom Cristo, apesar dos meus gravíssimos pecados, me escolheu.
Rosario, Milão – Itália

Há tempos não participava das férias nas montanhas com os amigos do Movimento. Ouvindo alguns confraternos falarem da bela experiência vivida no último ano (decidi) desejei não perder a oportunidade. Não para uma escapada, mas para ver como o Mistério está entre nós. Foi uma semana rica, não apenas pelas belezas naturais e pela companhia, mas sobretudo pelos testemunhos de amigos que vivem, no cotidiano, o carisma de Dom Giussani. Entendi, porém, que não basta escutar e seguir. Preciso caminhar com as minhas forças e fazer minha a experiência deles. Tenho quase oitenta anos, mas sei que sempre é possível começar: penso nos trabalhadores da última hora.
Marta, Rimini – Itália

Quando a dependência gera paz
A experiência vivida por nós, nesta última semana, foi de uma agonia profunda. Eu pensava a todo momento, sem entender direito: Deus não nos deu isso à toa. Uma experiência dessa nos transforma. Não somos mais os mesmos. Ver a Esther, isolada, com a suspeita da gripe suína nos deixou muito apreensivos. Tudo passava pela nossa pobre cabeça. O cuidado a mais que teríamos que ter com a Raquel e com nós mesmos! A tristeza dela de não poder ver os amigos e nem poder brincar. A fraqueza corporal que tudo isso provoca! Como disse, mudamos! A entrega e a confiança que vivo ultrapassam a minha consciência e zelo pela minha filha. Estamos totalmente nas mãos d’Ele. A mesma experiência que fiz na minha última viagem, dentro de um avião. Eu me sentia exatamente assim: dentro de um avião! Tínhamos todo o aparato mais que necessário para a cura dela mas, com certeza, quem pilotava essa aeronave não éramos nós e muito menos os inúmeros médicos, enfermeiras, fisioterapeutas que entravam a todo momento no quarto. Um dia, fomos fazer um desenho, ainda no hospital. A Esther usou guache e, do olho esquerdo da figura escorreu um pouco de tinta. Perguntei se a menininha estava chorando e ela me disse que a tinta tinha escorrido. Guardei o desenho que ultrapassou a expectativa dela de só fazer um desenho bonito. Ele “gritou” o que sinceramente ela estava vivendo. Compreendi que nem a tristeza que a minha filha sentia eu não era capaz de extirpá-la. Mais uma vez entreguei e percebi que eu e ela somos totalmente de um Outro, somos criaturas, totalmente dependentes e, paradoxalmente, senti-me serena e segura.
Hilda, São Paulo – SP