Muitas competências, muitas disciplinas, muitos interesses. Essa é a universidade hoje: uma fragmentação de coisas, de saberes e de âmbitos. Falar de “educação” nesse contexto parece uma perda de tempo. No entanto, a universidade pode ser, até mais do que escola, o terreno do relacionamento entre educador e educando, caminhando juntos em vista de um destino comum. Passos oferece a contribuição de três docentes italianos
Convidamos três professores universitários para uma conversa, a partir da experiência deles, sobre o que significa “educar na universidade”, tendo em vista o que foi ensinado por Dom Giussani, segundo o qual “educar é introduzir à realidade total”. O livro "Educar é um Risco" trata, de modo especial, da educação de meninos na fase da adolescência, e por isso somos tentados a pensar que essas coisas são válidas mais para a relação adolescente/educador, na fase do ensino médio. Mas Dom Giussani mesmo disse, várias vezes, que a educação é um trabalho, o trabalho, que se desenvolve na vida toda, e os anos universitários podem ser ainda mais fascinantes para um educador: “É o início de uma caminhada nova. Agora, educando e educador são dois homens: é o tempo daquela associação madura e forte que liga aqueles que vivem uma mesma experiência de mundo... é o tempo em que se trabalha junto, lado a lado, para um destino que a tudo reúne”. Sobre este tema conversamos com Guido Tartara, professor de Engenharia das Telecomunicações na Politécnica de Milão, Francesco Botturi, professor de Antropologia Filosófica na Universidade Católica de Milão, e Claudio Giorgi, professor de Mecânica na Universidade de Brescia.
O que significa, na vida e no trabalho de vocês, “educação como introdução à realidade total”?
Guido Tartara: Dirigir-me em todos os momentos ao estudante como uma pessoa; ou seja, estabelecer uma relação pessoa a pessoa. Para mim está ficando cada vez mais claro esse ponto, sobretudo agora, em que a universidade italiana passa por um momento de transição: mudou a figura do estudante em relação ao professor. Sempre mais freqüentemente me encontro a dizer aos estudantes que me colocam perguntas: “Olhe, estamos falando desta outra coisa, que não tem nada a ver com o teorema X, Y”, porque me dou conta de que o problema é outro, e posso interagir com o aluno naquele momento num plano que interessa à sua pessoa, para lhe dizer algo que interessa a mim como pessoa, não como especialista de uma certa disciplina.
Francesco Botturi: creio que o ponto-chave é a relação pessoa-a-pessoa. Ter uma consciência educativa como introdução à realidade total quer dizer, sobretudo hoje, ter a consciência de que, na situação cultural das pessoas de hoje, o que predomina é a decomposição, a fragmentação da experiência. Isso significa que não é normal que a vida se desenvolva à luz de um princípio unificador. Nas instituições universitárias, essa decomposição se dá por meio de uma forte parcelização das coisas, dos saberes e dos âmbitos; por isso, provocativamente se poderia dizer que a universidade é uma instituição antieducativa, não é convergente, não é uma universitas, mas uma multiversitas, habitada por um princípio centrífugo: muitas competências, muitas disciplinas, muitos interesses. Hoje, mais do que nunca, é necessário ter essa consciência, que emerge na medida em que se tem uma preocupação educativa, e isso acontece quando se percebe que é preciso educar a si mesmo, pois um outro já teve essa atenção educativa com você. E os alunos percebem quando isso acontece e entendem que não estão abandonados à sua fragmentação.
Como ajudar o estudante a encontrar essa unidade?
Botturi: Inserir qualquer proposta de trabalho (particular, disciplinar) num horizonte de significado mais amplo, provocar o aluno nessa direção. O estudante é o primeiro a colocar o saber em uma gaveta. É preciso mostrar que aquilo que se está dizendo tem a ver com a condição humana em que se vive e com a busca de significado. Eu penso que mesmo aquele que ensina matérias muito técnicas pode fazer esse trabalho. O jogo perverso desse saber assim organizado é subtrair da memória esse desejo de significado. Metodologicamente a pessoa deve se extrair para analisar alguma coisa, mas depois é preciso inserir a totalidade numa memória do sentido para evitar tornar-se competente, mas ignorante.
Os alunos acham isso difícil? Essa necessidade original custa a emergir?
Botturi: Sim, tendencialmente, porque quando chegamos aos 20 anos de idade, já são 20 anos de esquecimento. São 20 anos de não-educação. O desejo de descobrir um sentido em todos os aspectos da vida está ali, logo abaixo da pele e este contraste parece provocar nos jovens um sofrimento de fundo, ainda que pouco cons-ciente e não revelado.
Tartara: Nessa minha veneranda idade (tenho 67 anos), uma coisa que me impressiona, de modo particular, é ver constantemente ao meu redor a descrença do aluno de que seja possível estabelecer um relacionamento educativo. Tenho a impressão de que o estudante só tem na cabeça que precisa passar no exame (não estou falando de uma culpa do estudante, mas de uma situação que tem muitas causas). E a sua atitude – mesmo que não seja afirmada explicitamente – é mais ou menos esta: “Os algoritmos só me servem pra passar no exame”. É uma triste experiência da universidade atual. Como se dissessem: “Caro professor Tartara, seria muito bom aprofundarmos as coisas, mas eu preciso passar no exame”.
Evidentemente, não proponho coisas complicadas, talvez apenas estudar de um outro jeito. Eles estão inseridos num clima educativo que os desencoraja a enfrentar uma coisa que pareça aventurosa.
Giorgi: Eu leciono Mecânica aos engenheiros. Antes eu pensava que a questão colocada por "Educar é um Risco" era uma preocupação ligada à adolescência. O estudante universitário, para mim, chegava já formado, com uma consciência própria. Dois anos atrás eu me vi numa classe de primeiro ano com 260 alunos. O primeiro impacto foi dramático: eles saíam, entravam, comiam, bebiam, conversavam, liam jornal. Eu não sabia o que fazer para suscitar o interesse deles. Dialogando com um amigo, ele me disse: “A arte de ensinar não está na capacidade de comunicar objetos, coisas, mas num ponto: comunicar o sentido da vida; não de maneira geral, mas pessoal”. Durante um ano eu me perguntava o que isso queria dizer. O significado nós não podemos explicar, não posso fazer um “metadiscurso” sobre modelos matemáticos! O ponto de onde parti é que há uma espera e um positivo. O valor da pessoa que está diante de nós é o ponto de partida.
O que você quer dizer com isso?
Giorgi: No primeiro dia do ano seguinte, comecei dizendo: “Vocês têm a liberdade que Deus lhes deu: podem escolher ficar em casa, sem problema, ou vir aqui e submeter-se às minhas condições”, e expus as condições pelas quais eles podiam compreender o sentido daquilo que estávamos fazendo, o único modo de me compreender, de compreender como eu sou, como eu me coloco. “A questão é que vocês não foram educados, não é que sejam mal-educados. Ninguém se preocupou com vocês.” Comecei pela educação mais elementar. Muitos ficaram; outros foram embora.
Mesmo sem provocá-los, eles vinham falar comigo sobre a sua situação. Vi que mudou o modo deles se relacionarem comigo. Quem está do outro lado sente imediatamente se a sua tensão é para o objeto, para a perfeição da explicação, ou se você está voltado para eles, para comunicar aquilo que você é, e aquilo que para você tem valor.
Para vocês, o que é ser ou ter um mestre?
Tartara: Na realidade, o discurso vale para todos, para mim e para o aluno ou para o colaborador. Comunicação de si. A relação que se estabelece com uma pessoa mais velha – chamada de “mestre” – depende de como nós vemos o sentido do seu agir, o seu horizonte. Eu me lembro de quando decidi permanecer na universidade, de quando escolhi uma matéria e não outra, baseado não tanto na especificidade técnica de um setor, e sim na perspectiva que me era colocada. Percebia que a tensão do professor com quem eu me relacionava era para um conhecimento amplo, visando o todo, que passava também por aquela matéria específica. A educação é um problema também na minha idade. Estou sempre à procura de um mestre. É uma coisa que me aproxima dos estudantes.
Botturi: A transmissão do saber não é só transmissão de informações. Qual é a diferença entre saber e ter informações? O saber é criativo, também contém uma regra para organizar a informação, de modo que você entenda o seu sentido. Mestre é aquele que transmite saber, não apenas dá a informação. Neste sentido, é quem dá uma direção à inteligência, e não oferece só conteúdo.
O mestre é aquele que o ajuda a colocar-se perguntas, ajuda a ter uma consciência do método, aquele que avalia os resultados e assume a responsabilidade disso. Enfim, é aquele que lhe faz companhia na correção. Quem faz isso é mestre. A carga burocrático-administrativa que nos é imposta tira o espaço para essas relações. A universidade assumiu cada vez mais um estilo empresarial porque não nasce de relacionamentos, mas nasce de um conjunto de funções e se concebe feita para vender serviços.
Giorgi: O guia é alguém que indica; mas depois, fazer o caminho, ir na direção indicada é algo que cada um deve fazer pessoalmente. E é o que peço aos meus alunos.
E com o meu filho é a mesma coisa; todo relacionamento educativo é assim.
De fato, a educação comporta o fator “risco”, porque o “discípulo” tem a liberdade de ir para onde quiser...
Giorgi: Exato. A tentação, mesmo com os nosso filhos, é ser coercitivo, mas esse não é o modo correto. Um dos maiores riscos, numa relação educativa no meu trabalho, é a avaliação. Eu assumo esse risco, que, eu sei, é desproporcional: como dizer para alguém que ele fez bem, que fez mal, ou dizer-lhe para parar? No entanto, isso faz parte da responsabilidade que me é dada, do bem que desejo para eles.
Botturi: Eu sou o que sou diz uma mensagem publicitária que vi recentemente e que descreve muito bem o estilo de vida pós-moderno: eu sou aquilo que sou, não preciso de uma relação para me fazer crescer, sou aquilo que sou no meu instante sem história. É negada uma premissa que é o contrário do “você é aquilo que é”: “você pode se tornar aquilo que é”, onde, o mestre, exerce um papel fundamental. O jogo se define justamente aí, nessa premissa. Sou o que sou: é como o animal, que, como diz Nietzsche, está amarrado à pilastra do instante. Isso entristece a vida de um modo infinito. Antes era preciso discutir a dinâmica do crescimento da pessoa; hoje, trata-se de suscitá-la; demos um passo para trás: que seja o início de um processo, e não são necessários discursos (agora lhes digo qual é a estrutura original), mas alguém que viva esse desejo de crescer, e isso constrói uma possibilidade também para os outros.
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Uma companhia essencial
Há alguns dias encontrei uma moça quando trabalhava na banca de inscrições para a universidade. Perguntei-lhe para qual curso era a inscrição e ela respondeu que não sabia o que escolher. Os seus pais haviam dito que se naquele dia ela fosse se candidatar, poderia começar a se sustentar sozinha. Conversando descobri que ela havia mudado de escola várias vezes e sempre tinha ficado insatisfeita. Não sabia nem me responder o que lhe interessava. Levei-a até a secretaria e lhe mostrei todos os panfletos com informações sobre os diversos cursos. Ficamos juntas por meia hora lendo a programação e as matérias de cada faculdade, mas ela continuou demonstrando pouco interesse. Depois nos despedimos e ela pediu para anotar o meu número de telefone dizendo: “Quando eu escolher o curso posso te ligar?”. Pouco depois disso eu participei da Jornada de Início de Ano promovida pelo Movimento e o convite dizia: “O que você procura? Quais são os teus desejos?”. Eram as mesmas perguntas que eu havia feito àquela moça, e que agora estavam sendo feitas a mim. Eu preciso de amigos que me perguntem o que me interessa, até que ponto estou disposta a investir, porque sozinha eu me esqueço até das coisas que são mais importantes.
Teresa, da Universidade Católica de Milão
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