Publicamos trechos do testemunho de padre Sérgio Massalongo, prior do mosteiro beneditino da Cascinazza, na entrada de Milão, durante os Exercícios Espirituais dos Memores Domini em La Thuile (Itália), no dia 1º de agosto de 2005.
Antes de tudo, gostaria de agradecer pelo convite e pela estima de vocês para conosco. E, sobretudo, agradeço porque vocês existem, pois sois, para nós, o ponto de referência, como experiência de fé, e como primeira oferenda. Como Dom Giussani sempre nos dizia, nós estamos no mosteiro para oferecer a vida pelo Grupo Adulto (Memores Domini). Nossa vida é muito pobre, mas mesmo assim vos relato aquilo que o Senhor doou a mim e a nós durante esses anos. (...) Depois de 30 anos de mosteiro, estou cada vez mais maravilhado com o início, me sinto no início do início. Tudo está lá, inclusive o desenvolvimento futuro: lá estão as razões da minha vida hoje, razões que não são minhas, mas me foram dadas por um outro. Se fosse por mim, tal vida seria uma loucura; de fato, o objetivo último pelo qual estamos no mosteiro é para fazer com que se veja que o Movimento Comunhão e Libertação é capaz de reavivar essa forma beneditina de vida, de reproduzir os traços da beleza humana ao contemplar o Mistério em meio a uma sociedade como esta em que vivemos.
17 de maio de 1971
E isso é uma graça e um desafio incrível, antes de tudo para mim. Essa missão foi indicada claramente, dia 17 de maio de 1971, pelo Dom Giussani, aos primeiros jovens que estavam ingressando na Cascinazza: “Frente ao fato que vocês estão inaugurando, frente à ação da Providência, ficamos tão maravilhados como diante de um milagre. O milagre não está em contradição com a dinâmica dos acontecimentos, com o suceder dos fatos, mas há uma grande convergência de indícios, de eventos, plena de significado e que dá origem a algo que não é obra nossa. Mas o milagre não tem um fim em si mesmo; ele acontece visando a construir uma história, e para ser sinal de que nós estamos na estrada de Deus. É a história que encaminha todas as coisas para o significado de Cristo. O fato que vocês estão iniciando é uma possibilidade de renovação da experiência beneditina. É uma grande coisa, que não podemos pronunciar distraidamente. Mas o retorno à consideração séria dos ideais é uma Ressurreição, e não podemos retornar à Ressurreição a não ser passando pela Cruz. E o primeiro e principal aspecto deste é a obediência até à morte do próprio sentimento. E isso – e aqui diz uma coisa belíssima – que é mortificação, não é uma poda, mas algo que torna a vida maior. E aqui não cabe nem ‘mas’ nem ‘se’. Não pode haver limite, objeção, mesquinharia. Não podemos chegar para o abade e lhe dizer: ‘O senhor não entende nada, não capta a minha genialidade’. Quem é chamado a ingressar no mosteiro, é chamado para a morte, a fim de que viva. Mas se o primeiro fator a levar em conta é a experiência de recuperação dos valores originais, o segundo fator a levar em conta neste milagre é a fidelidade ao Movimento. E isso não significa fidelidade a grupos, pessoas, mas fidelidade ao Movimento quer dizer fidelidade ao fato de Deus na minha vida, segundo o modo como Deus me atraiu. Unidade não é fazermos juntos ou falarmos a mesma coisa; é uma soldagem, que se dá na medida em que nos empenhamos em viver o fato de Deus na nossa vida”.
1971-79 - O fim de uma forma
Pretendo resumir, agora, em quatro breves passagens, esses 30 anos que vivi no mosteiro da Cascinazza.
1. Eram os primeiros anos de mosteiro (1971-79), mas para mim contaram os últimos quatro, porque ingressei em 75 (portanto, 75-79), mas têm uma característica análoga àquela dos primeiros.
Esses anos foram os mais puros da minha vida. Havia uma enorme pobreza – imaginem que não tínhamos nem um mestre de noviços, o abade estava sempre fora, cheio de compromissos, e o trabalho de manhã à noite ocupava quase todo o nosso tempo. Assim, vivíamos uma grande pobreza, uma obediência verdadeiramente cordial ao Mistério, totalmente à mercê da vontade de Deus. Quando penso naqueles anos, vejo que a minha vida poderia ser comparada a um milagre, porque não nascia de nenhuma outra fonte a não ser do abandono total nas mãos de Deus. Portanto, de um lado, aqueles primeiros dez anos foram caracterizados por uma beleza, uma pureza extraordinária, uma graça; do outro, a experiência daqueles anos terminou com uma dolorosa divisão da comunidade. Assim, em uma bela manhã, depois de quatro anos de mosteiro, eu me encontrei – junto com alguns outros – como em uma jangada no meio do mar, sem saber para onde ir; não só isso, mas enfrentando uma enorme tempestade. Pedimos ajuda a todos, mas só o Dom Giussani nos ajudou, e sem o colete salva-vidas que ele nos lançou, não sei se estaria hoje aqui. Devo-lhe, sem dúvida, a minha vida.
Nesses anos acontece um fato que foi decisivo para eu recomeçar a caminhada; foi um encontro, no final dos anos 70, com Carlo Wolfsgruber. Eu o havia chamado para uma ajuda e nesse encontro me disse uma coisa que eu nunca tinha pensado: para fazer unidade, basta uma pessoa. Porque eu continuava a procurar uma outra pessoa que tivesse as mesmas características que eu, ou seja, que correspondesse à necessidade que eu carregava dentro de mim, mas não a encontrava, e por isso estava sempre insatisfeito. Então, essa afirmação dele caiu como uma bomba em minha vida. Não era a frase de alguém orgulhoso, que diz “Veja como você é brilhante, o melhor”, não! Mas foi a afirmação de um pai que te quer bem. Senti que, dentro do horizonte caótico no qual eu estava, havia lugar também para o meu eu, tão pequeno e frágil. O “sim” que eu disse naquele momento me trouxe de volta o desejo do impossível: que o Movimento nascesse dentro do meu nada.
1980-90 - Nascer da unidade
O segundo ponto foram os anos entre 1980 e 1990. Se no primeiro período assisti ao fim de uma forma tradicional de vida religiosa, na segunda década assisti ao meu próprio fracasso. Esse segundo decênio caracterizou-se por dois grandes fatos. O primeiro: Dom Giussani praticamente nos adotou, e foram muitos os encontros que tivemos com ele naqueles anos. Dom Giussani jamais pensou em fazer um mosteiro beneditino, mas desafiou de tal modo a nossa liberdade, obrigando-nos a ir à fundo daquilo que nos havia acontecido, que favoreceu o florescimento da experiência que, depois, caracterizou também a seqüência da história. Portanto, a primeira característica dessa década foi toda a ajuda que recebemos dele.
Ao mesmo tempo, esse período caracterizou-se por uma grande presunção: pensar que, dado que tínhamos em mãos as chaves da questão, éramos capazes de construir a unidade. Mas a unidade não se constrói, ela nasce. Não é uma idéia, é preciso nascer de uma pessoa. Esse fracasso foi, porém, importante, porque então entendi que podemos construir até uma coisa perfeita, mas quem me salva? Como diz o personagem Brand, de Ibsen: “Não basta toda a vontade de um homem para se construir sequer um fragmento de salvação”. Essa incapacidade me deixou, inicialmente, prostrado, desiludido. Em suma, é como compreender que o Senhor é mais forte, te vence, e não aceitar isso. Mas com o tempo entendi que não podemos permanecer por muito tempo nessa condição, dentro da comunidade. Precisamos nos anular diante do Mistério, como as ofertas que Abraão e o profeta Elias faziam no monte, para que Deus passasse e queimasse toda a oferenda, inclusive o mal. Essa foi a passagem decisiva.
Tudo isso levou-me a me ajoelhar diante do Mistério de Cristo, a me oferecer de novo ao Evento, reconhecendo que Ele venceu; e, portanto, aceitar que Ele me use como quiser. Aceitar que o meu limite seja o lugar onde sou chamado a levar a glória de Deus ao mundo. Nessa rendição a Cristo, fiz a experiência de a vida se tornar minha, aconteceu como conseqüência uma ternura incrível em relação a mim mesmo. Sentir que alguém nasce, renasce, começa a perceber que se tornou capaz de conseguir a coisa que mais deseja e da qual era incapaz: amar, graças à força dAquele que me torna positivo, apesar do meu nada. Essa é uma posição humana tão bela, tão livre, que contagia e nos torna criativos, é uma humanidade que desperta um fascínio, uma curiosidade, uma atração incrível. Tanto é verdade que, no final dos anos 90, eclodiu entre nós essa posição.
1990 a hoje - O tempo da graça
A terceira passagem ocorreu entre os anos 90 e hoje. Esse tempo eu o definiria como o “tempo da Graça”. Diante de uma posição humana disponível, como aquela que acabei de descrever, Deus começa a agir. E a atitude mais verdadeira que percebo dentro de mim é justamente aquela do Salmo 38,10: “Estou em silêncio, não abro a boca, porque és Tu quem ages”. Começo a ver coisas incríveis. Deus faz as coisas melhor do que eu, e é um espetáculo vê-lo em ação. É isso que é pedido de nós: contemplá-lo agindo entre nós, assumir aquilo que Ele faz. E como isso acontece? Para mim, coincidiu com a descoberta do valor da casa, do mosteiro. Percebi que a casa é cada vez mais o lugar da resposta à pergunta que faço. A resposta à pergunta que faço não devo aguardá-la para daqui a três dias, cinco dias, mil dias: é já, é aqui e agora. Essa foi uma descoberta verdadeiramente extraordinária, porque o Mistério coincide com pessoas: o outro se torna o lugar da minha edificação, da minha correção, ele me diz quem eu sou, que pertenço a Cristo.
Aceno só para alguns fatos desse período, totalmente gratuitos e, portanto, impensáveis, que a Graça de Deus nos doou e que foram, cada um deles, uma passagem educativa e de edificação da comunhão entre nós. Antes de tudo, o reconhecimento da Santa Sé, que, depois de examinar as nossas Constituições, deu o consentimento e autorizou o cardeal Carlo M. Martini a erigir a nossa comunidade como Priorado sui iuris de Direito Diocesano. Foi esse o primeiro caso do mundo, depois da publicação do novo Código de Direito Canônico (1983). Depois, o fato de o Dom Giussani ter me chamado para o Studium Christi, a chegada das vocações, a dupla ampliação do mosteiro, graças à ajuda de Dom Giussani e do Vittadini. Assim, eu me vejo a caminhar dentro da minha casa quase que humilhado pelo fato de que ali nada é meu. Tudo ali é dom, graça, e eu estou ali para servir a essa história de graça. E depois, há dois anos, a mostra sobre São Bento no Meeting de Rímini, que nos foi pedida de modo imprevisto e se revelou uma passagem decisiva para a nossa comunidade: o desenvolvimento das razões do carisma foi a ocasião para um aprofundamento do nível de decisão por Cristo, que é o nível definitivo da vocação. Isto é, se também não nos tornamos racionais a respeito do próprio carisma, dos seus motivos, a decisão por Cristo não é poderosa.
A morte de Dom Giussani
Concluo com o último ponto, que para mim foi a morte de Dom Giussani. Para mim, esse fato, para além da dor e da glória do fato em si, é um algo novo. Sinto que foi uma revolução, deve ser uma revolução para a minha vida. (...)
Sinto que sou chamado verdadeiramente a um novo passo. De fato, Jesus disse aos apóstolos: “O Espírito Santo vos ensinará todas as coisas”. Agora, o Espírito Santo nos faz compreender novamente toda a história de um modo mais profundo e novo; isto é, Ele nos doa de novo tudo aquilo que a gente viveu, mas de um modo mais profundo e novo. Dom Giussani nos induz a dar um passo além. É a possibilidade de um amor total, radical. Existe um homem que olhou a minha vida com verdade, pelo seu Destino, tal como sou, e aí está o ponto de verdade que vence a mentira, que não engana, e esse ponto me é dado, torna-se meu na liberdade de pedi-lo continuamente. Esse é o meu desafio: a iniciativa de pedi-lo incessantemente, não como fato passado, mas como companhia presente, agora. Estar diante de Dom Giussani, agora, é como estar diante de Deus. E assim já era quando ele estava vivo, mas agora o é definitivamente. Todas as coisas – comer e beber, trabalhar ou rezar – tornam-se verdadeiras, completas, eficazes, tal como o Dom Giussani as viveu e que eu também desejo viver. Só permanecendo dentro da Graça desse carisma é que é possível intuir e – se Deus quiser – redescobrir a beleza e a atualidade da Tradição da Igreja.
Termino dizendo que o lugar onde todas essas coisas, como uma gestação, dão à luz o homem novo, é a casa. A casa é o lugar onde Cristo me cria à Sua imagem. Eu não sei quem sou, mas sei a cada dia como a casa me cria, e essa admiração me faz levantar todas as manhãs com curiosidade e desejo. Compreendi que a casa não é a casa, mas a memória de um acontecimento. É a presença de Cristo entre nós; e o único motivo pelo qual vivemos e estamos no mosteiro é ajudar-nos mutuamente a sermos indicadores dessa Presença, onde continuamente nos recuperamos. Um monge beneditino que publicou vários escritos sobre a Regra de São Bento, A. de Vogué, em seu último comentário escreveu: “O mosteiro não é um círculo fechado de homens de eleição, mas uma enfermaria onde Deus se inclina sobre os feridos”; isto é, um lugar de misericórdia. Cristo também passa através do escândalo do outro, das minhas feridas e das feridas dos outros. Aliás, é justamente quando se assume o humano até esse ponto que uma casa se torna um lugar de oração.
Encerro com esta passagem de Dom Giussani: “A consciência da sacralidade desse lugar, que é a casa, acende a súplica do homem, acende a nossa tocha, que de opaca e feita de cera, transforma-se em uma tocha de súplicas”.
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón