A dependência entre criatura e criador. A paternidade ligada ao relacionamento com o destino. O binômio educação-liberdade. Somente na verdade é possível tornar-se livre, protagonista da própria vida
Alguns pesquisadores de medicina social afirmam que se levassem em consideração os “alarmes” das diversas associações de medicina especializada, na Itália, por exemplo, o resultado seria que cada italiano é afetado por duas doenças e meia. Ou ainda, alguns estudos ingleses revelam que uma criança entre quatro na Inglaterra é afetada por distúrbios mentais ou tem problemas de adaptação. Dados que não nos deixam nada tranqüilos.
A sociedade de hoje parece viciada no que o sociólogo Ivan Illich chama de “medicalização”, ou seja, uma verdadeira invasão da medicina em problemas que no passado certamente não eram considerados como valores médicos em si (solidão, infelicidade, isolamento social), sobre a esteira da convicção moderna de que o bem seria a saúde.
A evidência é que as preocupações morais da sociedade ocidental tendem a ser cada vez mais expressas em termos médicos e, recentemente, o debate sobre esse tema reacendeu-se nos jornais e no mundo intelectual: as questões que emergem giram em torno de palavras como educação, psicologia e psicologismos.
Foi exatamente esse o tema apresentado pelo Centro Cultural de Milão há alguns meses. Nos cartazes da entrada, lia-se: “Família e pessoa: o problema educativo hoje. A ausência do pai e o interdito da educação”. Para discutir o assunto foram convidados o psicanalista Claudio Risé e o médico Giancarlo Cesana, pedindo-lhes que falassem sobre educação e sobre o valor dos relacionamentos na dinâmica educativa.
Camillo Fornasieri, diretor do Centro Cultural, abriu o encontro convidando os participantes a uma reflexão sobre a consciência nos confrontos da vida e da pessoa que caracteriza a sociedade moderna e sobre as possibilidades que podem existir na educação.
O sofrimento do eu
Risé não se intimidou, sentia-se entre amigos e falou com decisão. “O sofrimento do eu está em um não reconhecimento de si como indivíduo único e irrepetível que se define no seu relacionamento com o destino, que é Deus”, em uma época na qual a cultura coloca a “repetitividade” e a realização de si na posse das coisas. E a psicologia – determinada psicologia – coloca-se como medida de adaptação do indivíduo, demonstrando a negação da sua unicidade. “Na tradição psicológica na qual eu me formei – a psicologia analítica fundada por Carl Gustav Jung – a visão do relacionamento com o destino é muito diferente daquela da psicologia da adaptação que domina o campo psicológico hoje.” Para o psicanalista milanês o relacionamento com o destino é irrenunciável pela definição do eu: o “si” é o relacionamento sem o qual não é possível encontrar o eu.
Aquela menina do colégio que diz: “Não sou ninguém, sou a marca da roupa que uso, somos uma massa disforme” está desesperadamente pedindo ajuda, a sua é uma necessidade educativa. A resposta que lhe é dada pela sociedade afasta a pergunta: você não tem um destino pessoal!
O ser “massa disforme” não é um incidente, mas um instrumento de poder e já nos anos de 1930 qualquer estudioso o enquadrava como instrumento de manobra do Estado totalitário, que destruía os âmbitos de pertença e de educação. E a moderna social-democracia européia também tende a desenvolver massas amorfas por meio da sistemática destruição dos âmbitos nos quais se forma a identidade, primeiramente da instituição familiar.
Para explicar melhor, Risé recorreu a Zygmunt Baumann, sociólogo polonês: o homem é como um líquido. A sua vida necessita de algo que lhe dê forma. A sociedade moderna elimina tudo isso, motivo pelo qual o homem não só perde a forma, mas também a sua capacidade formativa. Por isso é necessário defender a família e a escola.
O primado da ferida
Onde está esta forma, quem a pode dar? Mais uma vez, os estudos de Risé fizeram com que ele introduzisse a figura do pai, cuja “falta desenvolve um papel especial” nesta dinâmica. “Se não sabemos de onde viemos é muito difícil entender para onde devemos ir”: a figura do pai introduz à dependência entre criatura e criador, cuja falta faz prevalecer a idéia de onipotência, e a busca de si está na busca dessa dependência. A paternidade está, então, estreitamente ligada ao relacionamento com o destino, motivo pelo qual a negação do pai traz, necessariamente, sofrimento.
O pai é também a testemunha da ferida, pois ele “é a figura que passa ao filho a sabedoria de transformar a experiência das feridas, das perdas que seguramente a vida nos inflige, em momentos construtivos da personalidade”. Aliás, o próprio pai emerge como operador da ferida: “É aquele terceiro que rompe deliberadamente a simbiose entre mãe e filho, iniciada antes do nascimento e que continua por muitos anos”. Essa ferida é o que abre ao caminho educativo.
A sociedade secularizada tende a tornar impossível essa experiência. “Esta negação oposta à pergunta educativa cria no indivíduo um sofrimento, uma desvalorização de si contra a qual, hoje, o homem se rebela, pedindo ajuda como pode.” O poder, de fato, é oposto ao amor e à riqueza afetiva. Além do mais, é materialista, enquanto o âmbito educativo vai muito além deste nível.
Superficialidade do desejo
“Educar quer dizer fazer o outro emergir como ‘eu’, como protagonista no mundo, como expressão de liberdade.” Cesana começou assim a sua colocação. O que permite isso? “Uma verdade que deve ser comunicada”: sem isso não há educação. Existe um problema de superficialidade do desejo: “Não sabemos o que queremos, queremos coisas que não podemos ter e não somos capazes de aceitar aquilo que nos é dado”. E, retomando o fascinante binômio educação-liberdade, explicou a educação como introdução à realidade total, como introdução, por meio do particular, do detalhe, ao sentido de todas as coisas. “Somente na verdade pode-se fazer uma experiência de realização, ou seja, é possível tornar-se livre, é possível tornar-se protagonista: alguém começa a se tornar livre quando se sente protagonista da realidade. A educação é fazer emergir homens que façam uma experiência deste gênero. Depois, falando de si, disse: “Eu entendi essas coisas que estou lhes dizendo convivendo com padre Giussani. Era um provocador: estando com ele tudo adquiria valor, tudo se tornava ocasião de liberdade, quer dizer, ocasião para realizar a si mesmo.”
O método é colocar a pessoa diante da verdade e não uma técnica psicológica: a verdade é aquilo para o qual somos feitos e o perguntar-se “para o quê fui feito, o que me constitui”, continuou Cesana, é a questão central para quem se prepara para educar.
Tradição, não repetição
“Onde está a verdade?” Na tradição, no passado, nos mortos que nos precederam. E se tradição aborrece, acrescentou Cesana, podemos usar a palavra “pertencer”: “De quê sou feito?”. Novamente falou de si, de ser pai e de ser filho. A educação é a comunicação de uma verdade que é história e que para os cristãos é objetivamente carne. “Qualquer que seja a posição de uma pessoa, o importante é que comunique o verdadeiro que percebe para a própria vida, aquilo que sente que a própria vida depende.” Mas isso não basta. A tradição não pode ser uma repetição. Se fosse assim não interessaria a ninguém. “Para não morrer, uma tradição deve ser refeita: devemos refazer aquilo que nos foi consignado a partir da nossa descoberta.” A tradição é o oposto da “repetitividade”: é uma custódia viva.
E concluiu respondendo a uma das perguntas feitas: “A educação é preparar o caminho para o milagre da liberdade que se exprime. Ao reconhecer isso, se entende que aquele que é menor que você e que lhe foi dado, está ali para você. E os pais tornam-se discípulos dos filhos”.
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Claudio Risé nasceu em Milão no dia 19 de novembro de 1939. Formou-se em Ciências Políticas na Universidade de Genebra (Suíça). Casado, pai de dois filhos, é professor de Sociologia dos Processos Culturais e de Comunicação no Faculdade de Comunicação da Universidade de Varese (Itália). Desde 1976 está envolvido com a Psicologia Analítica. É psicoterapeuta, membro do Conselho de Psicologia da região Lombardia. Jornalista profissional, atualmente colabora com alguns jornais italianos como Il Giornale, Liberal e Corriere della Sera. É autor de diversos livros. Em português está disponível: "A inaceitável ausência do pai", publicado pela Cidade Nova.
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