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Passos N.63, Julho 2005

A VITÓRIA DE CRISTO É O POVO CRISTÃO - 2

O povo novo diante da experiência do trabalho

por Francisco Borba Ribeiro Neto

“Mas, por que Deus dá valor ao pequeno gesto, ao instante que passa, quando o homem procura exprimir-se? Porque o homem é relação com Ele... Por isso, falar do trabalho é algo verdadeiramente interessante. O trabalho é algo grande, como a pequena realidade do homem que diz: Senhor o que é o homem para que Tu te lembres dele, te recordes dele?” (Giussani, L. O eu, o Poder e as Obras. Cidade Nova, 2001, p. 70; nde). Não há declaração de amor maior do que esta, a de que um Ser eterno e todo-poderoso possa se interessar pelas nossas mazelas, pelos pequenos incidentes que acontecem em nosso cotidiano. O beijo afetuoso ao sair de casa, a briga familiar, o chefe intolerável, aquela cerveja gostosa no final de um duro dia de trabalho... Acreditar que Deus existe não é tão difícil (na verdade, é natural, tanto é que esta intuição permanece no coração do homem apesar de todos os esforços da cultura moderna em negá-la). Mas acreditar que Ele se interessa por mim, que Ele se importa com estas coisas aparentemente insignificantes perdidas na poeira da eternidade! Isto realmente é demais para qualquer um de nós. Contudo, é surpreendente que por aí começa a descoberta do significado do trabalho e, quanto mais a experiência do trabalho se torna desumana, mais precisamos da excepcionalidade deste amor para enfrentar o nosso dia-a-dia.
Quando se olha para a história, temos freqüentemente a impressão de um progresso ininterrupto , como se as coisas sempre estivessem melhores hoje do que no passado. De fato, a mortalidade infantil diminuiu e se vive cada vez mais; o conforto é cada vez maior em nossas casas; as leis promovem a igualdade entre os cidadãos. Contudo, trabalha-se cada vez mais! O progresso não diminuiu nossa carga de trabalho social médio, mas aumentou-o. Ainda que a situação e a carga de trabalho dos operários tenha melhorado muito desde os primórdios da Revolução Industrial, o balanço geral aponta para um aumento da carga de trabalho média do trabalhador ao longo dos séculos. Pior do que isto, antes o trabalho estava inserido dentro de uma organização social comunitária, onde trabalhar era uma continuidade do estar com os amigos e com a família. Depois, o trabalho se separou desta estrutura comunitária, e o mundo profissional passou a ser sinônimo de impessoalidade e alienação. Agora, o sentido do processo se inverteu: não é mais a estrutura comunitária que permeia o trabalho, dando-lhe sentido e gosto, mas é a estrutura impessoal e alienante deste mundo do trabalho que penetra nos espaços comunitários e familiares, contaminando-os com a sua lógica. Levamos o trabalho para casa, como atividades ou como preocupação, e uma lógica de desumanidade vai se apoderando de nossas vidas.
Em meio a este processo, um grupo de pessoas “vive no mundo, sem ser do mundo”, fazem tudo de modo similar a todos, mas ao mesmo tempo diverso, como lembra a Carta a Diogneto. São o povo cristão, somos nós, em nosso cotidiano atribulado. Vivemos e trabalhamos de um modo diverso e freqüentemente não nos damos conta disto. Vivemos como que “sob as asas” de um Amor infinito, que se interessa por cada pequeno momento de nossa vida – e nos esquecemos disto. Como um exercício de memória, procuremos conhecer as experiências de alguns de nossos amigos, e reconhecer como este Amor atua nas vidas deles e na nossa.

Uma amizade que dá sentido ao trabalho
Este povo novo não aparece, em primeiro lugar, como uma grande manifestação de massa, mas como uma pequena amizade que vai moldado nossa vida. Ulisses é empresário em São Paulo, trabalha no ramo de importação. É ele quem explica: “Mas o que torna possível, para mim, afirmar a verdade - um relacionamento fundado na experiência do verdadeiro - ao longo do tempo? O que me faz ser possível apostar a cada dia que, mesmo que aparentemente a maioria faça diferente, eu posso fazer de forma a afirmar o que é justo? Com certeza não é um esforço para ser coerente com uma regra ou uma norma. Olho para o caminho que fiz e não acredito que não devo nada pra ninguém e que nunca paguei propina. Ocasião eu poderia ter arrumado, e vendas deixei de fazer, mas a escolha pode sempre ser outra. E por que? Olhando outros que vivem nesta profissão, vejo que o meu diferencial é o fato de ter uma história, uma companhia que continuamente me ajuda a afirmar uma postura de certeza na verdade, na certeza que Deus aposta na verdade junto comigo. Pode perder um aparente bom negócio hoje, outro amanhã... mas no final, o tempo demonstra que Ele te garante o pão e a paz”.
Se Deus fosse uma abstração, se dependêssemos da nossa coerência individual, não haveria nem povo cristão, nem possibilidade real de vencer a desumanização do trabalho em nossa sociedade. Isto só se torna possível por causa de uma amizade, de uma companhia de pessoas – que mostram concretamente que “Deus aposta na verdade junto comigo”.
Sem dúvida, o ponto mais desejado por todos nós é quando esta amizade se transforma em um grupo de amigos no próprio ambiente de trabalho... Elizangela trabalha, com suas amigas Cláudia, Jandira e Nazaré, na área administrativa da Eletronorte, em Macapá. Começaram a se reunir no local de trabalho para fazer Escola de Comunidade devido à dificuldade que algumas tinham de participar das reuniões à noite junto com os outros. Ela conta que: “Durante todo este tempo tenho percebido o quanto Cristo realmente me ama, como se manifesta concretamente no meu trabalho, nas coisa que faço, e o mais importante para mim é que se torna evidente que isto acontece através dos rostos da minhas amigas acima citadas, com as quais faço uma experiência de amizade verdadeira através dos nossos encontros todas as quartas-feiras, de onde tiro um juízo para a vida“.

Na oração, na oferta e na memória
Mas nem sempre temos a graça de termos nossos amigos próximos fisicamente no ambiente de trabalho. Este é o espaço da oração, oferta e da memória. Por isso Elder, que trabalha num grande banco de São Paulo, diz que esta companhia se manifesta, em seu dia-a-dia, “No pedido que o Senhor ‘venha’ e na oferta a Ele daquilo que estou fazendo”.
Através da oração, enquanto pedido para que Ele se manifeste, as coisas acontecem – porque a postura mais humana é aquela de ser mendicante da graça. Mas a Igreja não nos deixa sozinhos, mas nos ensina, através de sua tradição, várias formas de oração – além da espontânea – que nos ajudam a ter esta Presença mais evidente para nós. Neste sentido compreendemos a importância da Oração das Horas (orações que vêm da experiência monástica, que são justamente intercaladas entre as horas de trabalho do dia), o Angelus ao meio-dia, o pedido Veni Sancte Spiritus, Veni per Mariam (Vem Espírito Santo, Vem por Maria), antes de iniciar uma reunião, num momento de dificuldade ou gratidão...
A própria prática da oração se torna ocasião de memória e de Presença de uma companhia. Os primeiros do Movimento de Comunhão e Libertação, aqueles que viveram uma proximidade física com padre Giussani, falam de uma outra forma de viver a memória no ambiente de trabalho. Contam que se perguntavam, diante de uma ocasião particularmente complicada, “o que don Giuss me aconselharia se estivesse aqui?”. Com o tempo, esta fórmula se ampliou, e muitos no Movimento aprenderam a se perguntar “o que a companhia me aconselharia se estivesse aqui?”. E isto nos ajuda a compreender melhor que a importância dos amigos não reside no fato numa relação emotiva, numa possibilidade de não estarmos sós (inclusive porque diante de Deus e da nossa responsabilidade no mundo a resposta é sempre pessoal). A importância destes amigos é que através deles chega até nós o carisma, isto é, aquela modalidade concreta e histórica através da qual Cristo nos atingiu e continua a nos ajudar a crescer e caminhar na vida.

A Escola de Comunidade e o trabalho
Por isto, Ulisses lembra que “A Escola de Comunidade é o instrumento principal desta amizade. Ela é o trabalho simples que 'cimenta' este estar juntos, mesmo que não perceba isto sempre (porém, percebo isto mais facilmente quando imagino minha vida sem isto). Comparar a Escola de Comunidade com o mundo não é fazer uma comparação entre conceitos ditados por alguém e o que se encontra no trabalho, mas um amalgamar-se com uma amizade que julga o mundo, que forma uma cultura, que me coloca diante de tudo tendo o foco no horizonte que está além da aparência”.
Elder explica um pouco mais a importância da relação entre trabalho, amizade e Escola de Comunidade: “Ela ajuda a partir da experiência [do encontro] e não de uma imagem de profissional [ditada pelo ambiente]. Porém percebo que só posso viver essa novidade no encontro com alguém que a vive, se não passa por um olhar humano a Escola de Comunidade fica parecendo um encontro de auto-ajuda. Através da verificação da correspondência destes critérios com as minhas exigências de verdade e felicidade. Ir à fundo nesta verificação me ajuda a limpar certos moralismos e tornar minha adesão à proposta cristã mais cheia de razão”.
Mas a Escola de Comunidade, apesar de ser o principal, não é tudo. “A caritativa [trabalho gratuito em uma obra de ajuda a outros] têm se mostrado para mim uma necessidade tal qual a Escola de Comunidade”, diz Elder. “Parece que quando falamos de caridade como dimensão, existe uma tendência a reduzir a um particular e a considerá-la secundária. Para mim é o momento privilegiado da minha educação à disponibilidade e a oferta, me faz pensar na questão do trabalho e da utilidade da minha vida com uma perspectiva muito mais ampla”.
Elder sintetiza todas estas dimensões da seguinte forma: “A Escola de Comunidade e a caritativa ajudam a perceber que a presença de Cristo invada o cotidiano do trabalho que normalmente vivemos de forma autônoma, desconectada do resto da vida. A comparação com uma autoridade [aquela pessoa na Igreja através da qual o carisma se manifesta e nos ajuda a crescer] também é fundamental para fazer experiência da invasão de um critério que é maior que o seu”.

O anúncio
A consciência de sermos seres humanos tocados por Cristo, de formarmos um povo novo, passa também pela experiência do anúncio. De fato, quando comunicamos aos outros aquilo que dá sentido a nossa vida ganhamos nós também consciência maior daquelas coisas. A comunidade de Londrina – como muitas outras – fizeram belas experiências nos eventos de lançamento dos livros de padre Giussani no Brasil. Num dos lançamentos, deram uma entrevista na TV local e naquele dia também saiu uma entrevista de meia página no principal jornal da cidade. A repercussão desses acontecimentos no local de trabalho de Rose, uma das integrantes da equipe de organização do lançamento, foi grande: “Muitas pessoas vieram falar comigo pra tentar entender o que eu, analista de sistemas do Hospital Universitário, estava falando sobre Igreja, religião, pretensão cristã. O interessante é que foi muito mais provocante pra mim falar ou explicar sobre estas coisas no meu ambiente de trabalho, do que dar entrevistas pro jornal e TV. Eu estava olhando no rosto das pessoas que eu conhecia a mais de 10 anos e falando sobre minha experiência. Em muitos casos conversando com pessoas que eu nunca tinha dito que era católica e o que isso significava pra mim. Isso me ajudou a entender a frase ‘A vitória de Cristo é o povo cristão’. Falando sobre Ele publicamente ou no meu ambiente de trabalho, me senti parte do povo cristão”. Os gestos de anúncio público não são apenas para os outros. Talvez, em alguns contextos, eles sejam mais para nós mesmos, para que nós nos demos conta de quem somos, do que dá sentido a nossa vida!
Mas, novamente, cada caso é um caso e não se pode querer generalizar as situações. As formas do anúncio dependem das possibilidades concretas e das situações em cada realidade. Porém, Ulisses lembra que: “Se experimento que isto é verdadeiro - e portanto bom para mim - e se o encontro com as pessoas contém esta verdade, desejo que todos possam experimentar o mesmo. É impressionante como toda vez que tenho oportunidade de conversar mais tempo com alguém, a conversa sempre tende a não ser banal. E acabo fazendo amigos que nem imaginava”. O anúncio e a memória não são fruto de um esforço moralista, mas a conseqüência natural de se olhar para uma coisa bela que se vive.

Um gosto e um sentido para toda a vida
Neste caminho, as dificuldades e as durezas da vida não dão mais a última palavra. Mais uma vez, é Ulisses quem dá o testemunho: “E que até quando a 'vaca tá indo pro brejo', tem sempre alguém pra te socorrer.Quando resolvi montar uma fábrica de frascos e fui mal sucedido, sair do empreendimento com o mínimo de dano (apenas financeiro e sem comprometer o futuro) foi possível somente porque tinha a companhia de amigos que se colocaram ao meu lado para me sustentar. E mesmo no meio do turbilhão de um negócio falindo, não faltou pão nem paz.E mais que isso. Não jogaria fora nada do que vivi. Tudo foi de uma grande riqueza, certamente pela dureza da circunstância, que me obrigava a olhar o que tem valor e a apostar no que me era indicado pelos amigos. Afinal, é na dureza que aprendemos. Sempre foi assim, mesmo que prefiramos que fosse diferente”.
Muitas vezes temos a tentação de sermos iguais a todo mundo.”, diz Elizangela. “Não que tenhamos que ser melhores, mas só o fato de encarar o meu trabalho não como um fardo, mas como o meio com o qual Cristo quis me encontrar todos o dias, faz com eu viva a experiência do movimento com uma enorme paixão pela vida e por Cristo”. Não somos melhores que os outros, mas somos diversos – como dizia a Carta a Diogneto: vivemos a possibilidade de uma paixão pelo homem e pelo mundo que não vem de nós e que tem o poder de dar gosto e sentido a toda a vida.
Toninho é assistente social, trabalha com a dura realidade de recuperação de menores delinqüentes. Não podemos deixar de perceber a correspondência entre as suas palavras e o desejo maior do nosso coração: “Não importa tanto o êxito de iniciativas que tornem o ambiente mais justo e as pessoas mais felizes , mas, sobretudo, oferecer o trabalho de cada dia, quão árduo, cansativo e sub-valorizado possa ser, para a realização da glória de Deus, identificada com o homem que vive na verdade.Fazer a tarefa mais simples com a consciência de colaborar para transformar a Criação segundo o desígnio amoroso Daquele que conduz tudo ao seu destino, investe de dignidade o artesão e sua obra.Trabalhando com meninos presos que infringiram regras de convivência social, quero ajuda-los a não banalizarem o mal que praticaram, mas sobretudo a reconhecerem o amor maior que todo mal no olhar de Jesus que passa e olha para eles, como para Pedro depois da terceira negação”.

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“Primeiro de tudo a unidade; em segundo lugar, se nesta unidade todos são meus membros [como diz São Paulo (Rm 12, 5; Ef 4, 25) somos todos um só corpo em Cristo], eu sou grande e potente segundo a totalidade, a riqueza desta unidade. Como esta unidade começou a dois mil anos atrás e segue pela eternidade, eu sou feito do passado, do presente e do eterno, que se chama comunhão dos santos, a comunhão dos santos é uma definição completa da minha pessoa. Mas, nesta capacidade de englobar, de assimilar, que vem daquela potência que nos torna uma coisa só (Cristo), se somos em vinte, vivemos esta assimilação com vinte pessoas; se formos em trezentos ou em 15.400, existe apenas – como dizer? – a fragilidade, a fraqueza e a brevidade da nossa capacidade de entendimento, de consciência e de afeição. Contudo, se alguém se percebe entre 15.400 pessoas que se governam de um certo modo, que fazem uma certa ação, tem uma percepção de si mesmo que o exalta de forma incomparável.... Esta capacidade de assimilação não é só das pessoas... mas também das coisas. Assimila as horas da manhã – e rezamos as Laudes. Assimila o pão e o vinho, o ágape – e a ceia se torna sacramento. Quer dizer, a expressão desta unidade que tudo assimila se chama – como expressão unitária e sem mancha, sem erro – liturgia. Assim, a liturgia se torna ação. A ação é a expressão do eu: se chama ação a expressão com a qual o eu afirma a si mesmo...”

(Luigi Giussani)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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