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Passos N.63, Julho 2005

DESTAQUE / A FLOR DA ESPERANÇA

Com simpatia indescritível
o desafio a ser judia

por Paola Bergamini

Há 40 anos, o diálogo com padre Giussani, durante uma inesperada aula de religião. Hoje, a ex-aluna do Berchet lembra-se daquele encontro. A descoberta da própria tradição

Milão, novembro de 1963. O som da campainha soa nos corredores. Manuela pensa: “Ok, esta já terminou!”. Olha os seus novos colegas de classe, tão diferentes daqueles do ano anterior! Depois, por uma série de circunstâncias, os seus pais decidiram que ela terminaria os últimos dois anos do ensino médio no Liceu Berchet de Milão, onde conheciam o presidente Yoseph Colombo e alguns professores. Recolhe os livros e se prepara para sair junto com duas colegas – isentas, como ela, da aula de religião. Não deu tempo, o professor acaba de entrar na classe. Um padrezinho muito magro, que depois de alguns minutos, já sentado, grita: “A verdade é una!”. Silêncio. Manuela levanta a mão: “Desculpe, mas não concordo. O senhor tem a sua, eu tenho a minha. Uma para cada um”. Silêncio, ninguém fala nada. O padre vai para frente, fala, procura remover o verniz da indiferença que parece envolver os rapazes que tem diante de si. Manuela está inconformada com o silêncio da classe, com a indiferença de todos. Bem diferente era o clima que respirava na escola judaica, onde etnias e línguas diferentes, mesmo do ponto de vista religioso, conviviam entre si: eram rapazes muito observadores, que rezavam num oratório da rua Cellini; ao contrário, para estes aqui tal como ela, típicos representantes da burguesia milanesa, a cultura era tudo; a religião... zero. Em casa, respirava o mesmo ar: os seus haviam entregue à escola judaica a missão de instruí-la do ponto de vista religioso, como algo devido, justo, “para não perder a tradição, mas não como regra sobre a qual construir a própria vida de judeus”. Nada mais. E, agora, na escola, aquele padrezinho diz que a verdade é una! Pela qual vale a pena viver, sofrer, alegrar-se. Aquele sacerdote era o padre Luigi Giussani: dez anos antes, justamente nas classes do Berchet, ele dera início ao Movimento Juventude Estudantil (primeiro nome de Comunhão e Libertação; nde), revolucionando a idéia de cristianismo que era comum na Itália dos anos de 1950.

Comprovação ou confronto?
Algumas semanas depois, durante uma aula, padre Giussani pergunta: “Se eu discuto com o credo de uma outra pessoa, o que estou fazendo?”. E Manuela: “Um confronto”. E ele, categórico: “Não, uma comprovação”. Comprovação? A respeito do quê? Terminada a aula, persegue-o no corredor, para continuar a discussão. Assim foi durante todo o aquele ano escolástico. Nem sempre permanecia durante a aula de religião, mas aquele padre tinha algo de fascinante, que não deixava as pessoas tranqüilas, além do fato de que “era de uma simpatia indescritível”, recorda hoje Manuela Camerini Cantoni. Que fomos encontrar em sua casa em Milão..., poucos meses após a morte do padre Giussani. “Eu também estava na Catedral. Chorando pelo seu falecimento. Há tempo eu gostaria de encontrá-lo, para lhe contar o que aconteceu comigo naqueles anos. E para lhe agradecer...”.
Natal de 1964. No átrio da escola, um cartaz propunha um passeio à Sicília, organizado pela Juventude Estudantil. Manuela decide participar, se não por outro motivo, ao menos para escapar de ter que ir com a família “passar frio” em Livigno. Não conhece ninguém da JE. Só tinha ouvido falar alguma coisa do movimento. No dia 27 de dezembro, a partida de trem. São 25 pessoas: um casal, uma menina escoteira, alguns alunos do Berchet e César, um universitário de Ciências Políticas. Com ele estabelece logo uma amizade que durará anos. Coordena o passeio o padre Emmanuel, ligado ao padre Giussani desde os primeiríssimos anos de JE. “Depois, fiquei sabendo que o padre Giussani lhe pedira que tomasse cuidado com o que falava, porque no meio da turma havia uma judia. No momento, não entendi direito: me parecia uma censura; depois, compreendi o que pretendia dizer: tome cuidado para não feri-la, é preciso um mínimo de autocontrole em respeito ao outro”.

O retiro em Assis
Depois daquele passeio, para Manuela começa um período de confusão. Nada mais é como antes. Na escola, vai mal, não lhe importa nada. Seu interesse está alhures. Mas como fazer o coração se acalmar? Onde encontrar as respostas? Quase todo dia conversa com César. De vez em quando, no domingo de manhã, vai à igreja de Santo Estêvão ouvir os cantos da Juventude Estudantil. Na Páscoa, participa de um retiro em Assis, com outras 250 pessoas. Padre Giussani a apresenta com estas palavras: “Esta menina é judia. Devemos ser muito gratos aos seus pais pela sua generosidade”. Manuela confessa: “Eu não entendia de que generosidade ele falava. Não via nada de extraordinário”. Mas sua mensagem era clara: era como um pergaminho, sem uma identidade, sem pontos de referência. Participa de uma realidade como essa, onde o fascínio é forte; poderia até decidir permanecer. E, no entanto, os seus pais tiveram uma abertura mental notável ao dizer: “Pode ir”. Giussani, tendo sabido da sua bela voz, pede-lhe inclusive que ensine a todos a cantar a canção hebraica Ine ma tof (uma versão cantada do Salmo 132). Foram cinco dias intensíssimos, as perguntas se atropelam no coração de Manuela. Pela primeira vez, confronta-se seriamente com a prece. Padre Giussani não lhe diz mais nada, “me deixava brigando com meus dilemas”. Várias vezes o persegui nos corredores da escola para colocar perguntas, entabular discussões, até que um dia ele, de cara, lhe diz: “Você não entende nada de judaísmo! A gente não pode ser judeu só porque nossos pais o são. Estude. Examine-se”. Manuela fica pálida. Com poucas palavras, Giussani lhe havia indicado um caminho. “o” caminho. “Ele era assim. Uma minha amiga católica, um dia, me contou esta frase que um padre lhe havia dito: ‘Se passar uma mulher, não pare’”.

Um moto contínuo
Giussani agia assim. Advertia, jogava a frase que subvertia todas as certezas da pessoa e... ia embora. No sentido de que não ficava insistindo, tentando convencer o interlocutor. Mas estava ali com a gente, de um modo muito simpático. As tiradas, as piadas, a contínua dialética tornavam-no fascinante. Era um moto contínuo”.
Naquele ano escolástico, Manuela não foi bem; acabou reprovada. Mas o trabalho interior havia começado. Volta a se matricular na escola judaica. “Durante os dois anos passados no Berchet, me senti desligada de qualquer comunidade, aliança ou estrutura. E eu precisava disso para recomeçar. Ou melhor, para começar de verdade. Na escola judaica, encontrei um ponto de referência de onde partir. Mas isso, graças à abertura, ao exame que Giussani me propôs”.
Aquele foi só o início. No verão seguinte, ela vai para um kibbutz, onde um rabino a ajuda a estudar. Vai sempre às profundezas das suas raízes. Uma caminhada longa, às vezes tortuosa, onde foi fundamental o encontro do futuro marido, um judeu praticante. Depois do casamento, a transferência para Jerusalém. “Foram anos difíceis e mesmo naquela situação foi um padre que me ajudou. Eu estava sufocada naquele ambiente tão religioso. Voltei para a Itália e fui falar com o padre Castelli, que me disse: ‘Se todos os judeus fossem como você, não existiriam há muito tempo. Você é que deve se adequar ao seu marido; a sua é uma leitura exata da realidade’. Confiei e acreditei nisso. Até aquele momento, a minha observância fora, podemos dizer, de prazer: por que negar-me o prazer das minhas tradições? Agora, estava em jogo muito mais. Era algo que havia dentro de mim e que eu devia aprofundar, estudar. E assim foi. E isso eu quis também para minhas filhas, que são muito praticantes. Tudo a partir daquele encontro no Berchet. Por isso, por tudo o que devo ao padre Giussani, no seu funeral eu gostaria de ter cantado de novo Ine ma tof, mas talvez as lágrimas não me permitiriam fazê-lo”.

Ine ma tof
(canto judeu, refrão a duas vozes)

Ine ma tof umanaim
scevetaim gamiata.
Inematof…

Ine ma tof
scevetaim gamiata.
Ine ma tof…

Ine ma tof umanaim…

Tradução:
Eis a coisa mais bela

Eis a coisa mais bela:
amar-se como irmãos;
não há nada mais doce
que amar-se como irmãos.

Onde reina o
amor entre os irmãos,
os seus dons
Deus concede sempre.

Eis a coisa mais bela...

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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