Diante da misteriosa e aparentemente incompreensível mão implacável de Deus que, enquanto cura um menino cego a outra pessoa permite a morte depois de cair acidentalmente no vão de um elevador, o poeta argumenta: que hás de fazer, Senhor, comigo um dia?
Ao Divino Assassino
Litania concebida ante o Sagrado Coração, à época do acidente fatal de Anecy Rocha
Senhor, Senhor, o Teu anjo terrível
é sempre assim? Não tens um refratário
à hora do massacre – um mais sensível
que atrasasse o relógio, o calendário?
Ao que parece a todos tanto faz
por quem o sino dói no campanário.
Começa a amanhecer e uma vez mais
rebelo-me, mas sei que a minha vida
não tem como ou por que voltar atrás.
Aceito que a mais dura despedida
é em mais que metáfora do nada
a que se inclina o chão; que uma ferida
e a papoula sangrenta da alvorada
pertencem ao mundo sobrenatural
tanto quanto uma lágrima enxugada
à beira de um caixão. Mas afinal,
Senhor, amas ou não a humanidade?
Não fui ao escandaloso funeral
e imaginá-la em Tua eternidade
dói demais! Vou passar mais este teste,
sim, mas protesto contra a insanidade
com que arrancas a muque o que nos deste!
Tu sabes que a soberba da família
era maior que a dela e eu tinha a peste –
pai e mãe apartavam-me da filha
e o irmãozão nem falar... E hoje, coitados,
como hão de estar? Aqui é a maravilha,
as genuflexões... Os potentados
e os humildes, a nata da esperança,
todos chegam por cá meio esfolados,
sangrando como a luz. Não só da França,
toda a Europa rasteja até aqui
esfolando os joelhos, não se cansa
de ensangüentar-se até chegar a Ti,
e ao menos a um pixote do Além Tejo
restituíste a vista; eu quando o vi
solucei – mas que o cego e o paraplégico
saiam aos pinotes, que o Teu coração
se escancare e esparrame um privilégio
aqui e outro acolá na multidão,
só me faz perguntar: E ela? E ela...?
Não consigo entender que a um aleijão
concedas tanto enquanto a uma camélia
Tu deixas despencar... Por quê, Senhor?
Olho tudo do vão de uma janela,
mas vejo a porta de um elevador
escancarar-se sobre um outro vão,
um vão sem chão. E a seja lá quem for
aqui absurdamente dás a mão!
Me pões trêmulo, gago, estupefato,
pasmo, Senhor – mas consolado não.
A mesma mão que fez gato e sapato
da minha doce Musa, cura e guia,
cancela as entrelinhas do contrato,
Dominus dixit... Mas quem merecia
mais do que uma açucena matinal
um manso desfolhar-se ao fim do dia,
quem mais do que uma flor, Senhor? Igual
nunca se viu nem mesmo entre os crisântemos,
tinha direito a um fim mais natural,
à morte numa cama, em casa ao menos...
Mas não – tinha que ser total o escândalo!
Por que, se nem nos circos mais extremos
Teus mártires andaram despencando
sobre os leões, se nem o lixo cai
de oito andares aos trancos, Santo Vândalo?!
Não vim denunciar o Filho ao Pai
ou o Pai ao Filho, não vim dar razão
aos que recusam e usam cada ai
contra a humildade; vim porque a Paixão
me chamou pelo nome e a alma obedece
e aceita suar sangue – como não?
Mas não sei mais unir o rogo à prece
do que a elegia ao hino de louvor,
não sei amar-Te assim. Caso o soubesse
teria que ficar aqui, Senhor,
aqui, arrebentando-me os joelhos,
esfolando-me todo ante um amor
que vai tornando sempre mais vermelhos,
mais duros os degraus do Teu altar.
Tu, que tudo consertas, dos arte lhos
que desentortas e repões a andar
até às pupilas mortas de um garoto,
do cachoupinho que me fez chorar;
Tu, que a este lhe dás a flor no broto
e àquele o lírio pútrido do pus;
Tu, que passas por um de quatro e a um outro
pegas no colo e entregas a Jesus;
Tu que fazes jorrar da rocha fria;
Tu que metaforizas Tua luz
ao ponto de fazer de uma agonia
um puro horror ou a morna mansuetude –
que hás de fazer, Senhor, comigo um dia?
Quando eu agonizar, boiar no açude
das lágrimas sem fundo... Quando a fonte
cessar de soluçar e uma altitude
imerecida me enxugar a fronte...
Como há de ser, Senhor? Oxalá queiras
que a mim me embale a barca de Caronte,
como o fazia a velha Cantareira,
o azul da travessia... A Irrecorrível
arrasta a cada um de uma maneira
e a quem quer que se abeire ao invisível
recordas a promessa: aquele a escuta
e este a recusa porque a dor é horrível,
mas, se a todos a última permuta
terá sempre o sabor da anulação,
o travo lacrimoso da cicuta,
a ela Tu negaste o próprio chão,
deixaste-a abrir a porta sem querer!
Nunca falou na morte, e com razão,
intuía, quem sabe, o que ia ver...
Sentença Tua? Em nome da promessa
não há negar Teu duro amanhecer –
mas quando arrancas mais uma cabeça
como saber que és Tu, que não mentia
O que ressuscitou? Talvez na pressa,
no pânico de Pedro, eu negue um dia
e trate de escapar, mas hoje não;
hoje sofro com fé e, sem poesia,
metrifico uma dor sem solução,
mas não vim negar nada! Faz efeito
essa dor: faz sangrar, mas faz questão
de defender-me como um parapeito
contra a queda e a revolta. Um Botticelli
despedaçou-se todo, mas que jeito,
se por Lear enforcam uma Cordélia
e encarceram a Ariel por Calibã...?
Alvorece, a manhã beata velha
enfia agulhas no Teu céu de lã,
antenas às Tuas cenas de TV,
e eu penso: ela morreu... Hoje, amanhã,
enquanto Te aprouver e até que dê
a palma ao prego e o último verso à traça,
vai doer – mas Amém! Não há porque
amar a morte, mas que venha a Taça,
aceito suar sangue até o final,
como não... Tudo dói, menos a graça,
mata, Senhor, que a morte não faz mal!
Bruno Tolentino, Paray-le-Maunial, 1979
(in: O mundo como Idéia, p. 244-249)
O mundo como Idéia
Bruno Tolentino
Ed. Globo
Rio de Janeiro, 2002
pp. 443 - R$ 50,00
Credits /
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