Encruzilhada de povos e culturas, o país de Nossa Senhora de Guadalupe reúne tradições indígenas, cristãs e iluministas. As tensões sociais, a liberdade religiosa e de educação, a relação com a América do Norte e a do Sul, a vocação missionária. Colóquio com o Primaz da Igreja no México
“O México é um país católico”. Essa afirmação é um lugar comum ou tem fundamento na realidade? Quais são as luzes e as sombras da Igreja no México?
Creio que essa é uma afirmação que tem fundamento, porque o cristianismo não está só nos indivíduos, mas tem raízes também na cultura do nosso povo, na sua matriz cultural. Todavia, se de um lado esse catolicismo possui aspectos esplêndidos, tais como os valores da vida familiar, da solidariedade, do outro tem também os seus lados obscuros, as suas sombras, porque muitas vezes isso não é manifestado na vida pública, na vida de todos os dias; em todo caso, não há dúvida de que o povo mexicano é católico, é cristão.
Segundo o senhor, qual é o motivo pelo qual isso não se reflete na vida cotidiana, na vida social ou cultural?
Creio que somos herdeiros de uma situação que há quase dois séculos vê o liberalismo penetrando cada vez mais em nosso país. Um liberalismo que procura reduzir a religião à esfera íntima, privada, a algo que se limita ao culto nas igrejas e não uma realidade que abarca todos os aspectos da vida.
O senhor fala de liberalismo; em outras palavras, segundo o que foi dito, o povo tem uma origem ou uma raiz católica, mas em alguns setores está presente também o liberalismo, o positivismo e, às vezes, aparece também uma corrente marxista. Entende-se, pois, que são raízes, culturas e ideologias diferentes. É possível que possam conviver ou é sempre inevitável o conflito?Está se fazendo alguma coisa para aproximar essas partes, para procurar construir um novo tipo de convivência que compreenda a todos?
A nossa religiosidade tem, substancialmente, três raízes. A religiosidade do mundo indígena; descendemos de povos muito religiosos, com grande inclinação para a espiritualidade e a transcendência. Depois veio o anúncio do cristianismo, e creio que esse é o momento do encontro, da verdadeira mistura de raças. Apesar disso, não se deve esquecer que no México a Revolução Francesa, com todos os seus ideais e com todas a sua problemática, fincou profundas raízes por aqui.
No México convivem esses três mundos: o mundo indígena, o católico (a evangelização foi trazida por missionários já há quase cinco séculos) e o mundo iluminista ou liberal.
Às vezes, essas grandes correntes se encontram, causam tensões sociais muito fortes, geram guerras que dilaceraram a nação mexicana, como a guerra cristera, a perseguição religiosa. Atualmente, vivemos também uma forte influência da secularização, que está cada vez mais se globalizando. Todas essas correntes, de qualquer modo, estão presentes na nossa vida religiosa e explicam, às vezes, a contradição ou os desencontros que há dentro de nós, como indivíduos e como sociedade.
A Igreja, os católicos, o que podem fazer frente a essa situação?
Um trabalho que nos espera, como sociedade, como nação, é fazer uma síntese, reconciliar-nos conosco mesmos, reconciliar-nos com nossas raízes indígenas, coloniais, liberais.
Tomar o melhor de cada uma e fazer uma síntese, para poder viver em paz. É um trabalho que podemos fazer no nível social, bem como na vida privada. Porque devemos ter suficiente abertura para dar o justo valor a cada um desses elementos.
Muitos mexicanos são obrigados, por várias razões, a ir trabalhar nos Estados Unidos: é o grande problema da emigração. Estou sabendo que o senhor organizou um seminário para preparar seminaristas de origem hispânica que venham de dioceses dos EUA. Como a Igreja mexicana está acompanhando essa situação? Qual é a sua preocupação?
No nível do Episcopado, no nível de cada Igreja no México, fez-se um esforço (que acho insuficiente) para acompanhar essas comunidades de emigrados. Mais de 24 milhões de mexicanos emigraram para os Estados Unidos; portanto, lá existem verdadeiras comunidades de mexicanos, que convivem também com hispânicos provenientes de outras nações da América Latina e também da Espanha; de qualquer modo, formam-se guetos, formam-se grupos às vezes muito fechados; mas há grupos que se abrem para a comunidade de origem anglo-saxônica. No entanto, temos visto também um esforço extraordinário por parte da Igreja dos EUA.
Os bispos norte-americanos mostraram-se muito sensíveis e muito abertos para acolher essas comunidades, tanto que muitas pessoas provenientes das nossas cidades, que talvez eram pouco praticantes aqui no México, nos Estados Unidos tornaram-se bons praticantes. Porque foi a Igreja que os acolheu, os ajudou a regularizar sua situação de imigrantes, ofereceu-lhes espaços para que pudessem se manter unidos.
Esse problema nos remete à exortação Ecclesiam in America. O México, na América, encontra-se num ponto crucial: entre o Norte, anglo-saxão e francófono, Estados Unidos e Canadá, e a América do Sul, de origem indígena e latina. Qual poderia ser o papel da Igreja mexicana para se chegar a uma só América e não a tantas Américas?
Volto à pergunta anterior. A idéia do Seminário Hispânico, aqui na arquidiocese, nasceu em mim porque a Ecclesia in America nos pediu para criar fatos concretos de comunhão com as outras Igrejas.
Não me pareceu justo que a gente se limitasse a emprestar sacerdotes para acompanhar as comunidades hispânicas nos Estados Unidos, era preciso oferecer a possibilidade de um seminário para formar para o sacerdócio jovens cujas vocações nasceram nas comunidades hispânicas dos EUA; desse modo, a Igreja mexicana ajuda os pastores que acompanharão com maior compreensão essas comunidades.
Em relação ao papel da Igreja mexicana, é aqui que vejo a grande vocação e o grande desafio que temos como país católico: ser missionários. Ser missionários em relação ao Norte e em relação ao resto do continente.
Devemos mostrar o nosso reconhecimento à Europa, que nos trouxe o Evangelho. E o melhor agradecimento é que comecemos a despertar em cada Igreja o espírito missionário.
De fato, nos Estados Unidos, a Igreja católica até pouco tempo atrás era uma Igreja minoritária; agora é a Igreja mais difundida nos EUA, graças ao nosso povo, que traz dentro de si valores, tradições, costumes que refletem a cultura cristã, católica.
Creio que isso não se deve só à imigração; devemos fazer um esforço para formar esse povo, para que sejam realmente testemunhas de Cristo nessa comunidade, que agora não se apresenta só como protestante, mas tem uma parte que é também indiferente aos valores cristãos.
E para o resto da América Latina, creio que o México esteja em melhor condição para promover, junto com as outras nações (sobretudo no nível Celam, Conferência episcopal latino-americana), esse espírito missionário, a fim de que não só o México, mas toda a América se converta num continente missionário.
Anacleto González (líder católico nos tempos da perseguição religiosa, que será beatificado proximamente; nde) cita em seu livro La cuestión religiosa em Jalisco a declaração de um liberal no início do século vinte que dizia: “Aos sacerdotes, podemos deixar-lhes a liberdade de pregar nas igrejas, mas devemos privá-los da possibilidade de educar e ensinar”. Essa realidade instaurou-se lentamente no México. A Igreja foi excluída da educação? Como é a situação atual?
É preciso lembrar que essa é precisamente uma das palavras de ordem do liberalismo: apropriar-se da esfera educacional para poder influir, a partir daí, sobre o futuro da nação. Por esse motivo, no México permanece até hoje a luta pela liberdade religiosa e não só pela liberdade de culto.
Isso significa que a liberdade religiosa deve influir também no campo educativo, além de em outros campos, como os meios de comunicação.
Por isso a Igreja sempre lutou por mudanças, não só nas leis, mas também na mentalidade; para que exista uma verdadeira liberdade, para que os pais possam escolher a educação que preferem para os seus filhos, que esteja mais de acordo com os seus princípios. Creio que nos últimos dez anos houve uma mudança significativa na lei, mas na mentalidade, muitas vezes, essa mudança não aconteceu; de fato, a liberdade religiosa e de educação é reservada somente às famílias que têm condição financeira, que podem escolher uma escola particular para que seus filhos tenham uma educação de acordo com os seus princípios; no momento, a maioria do povo mexicano não tem a possibilidade econômica de ter acesso a essa educação.
Por isso, creio que as leis, tais como são atualmente, continuam a ser discriminatórias: continuam a privilegiar só aqueles que têm condição financeira.
Eminência, o senhor acabou de apresentar o livro de Luigi Giussani, Por que a Igreja na Cidade do México; quais partes desse livro o senhor considera as mais importantes para a Igreja de hoje, para o católico de hoje, para a fé de hoje?
Tive o privilégio de ensinar Eclesiologia, durante vinte anos, tanto no Seminário de Durango quanto na Pontifícia Universidade do México. Para mim, é um livro muito significativo, porque nos leva à essência da missão da Igreja, isto é, tornar Cristo presente, fazer de modo com que o povo não encontre uma estrutura, nem uma instituição, nem uma doutrina, mas a pessoa de Cristo. Creio que a insistência com a qual padre Luigi Giussani sublinha repetidamente que a Igreja é presença de Cristo é uma grande contribuição. A Igreja é o lugar privilegiado para se encontrar a pessoa de Cristo. Mas há mais: é Cristo mesmo quem continua a chamar a Si, quem reúne a comunidade; conseqüentemente, a comunidade tem a grande missão de refletir o rosto de Cristo.
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