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Passos N.100, Dezembro 2008

DESTAQUE - Trabalho

"A quem serve o meu trabalho?"

por Davide Perillo

Demissões e incertezas. E um modo de conceber a realidade (e a economia) que, imediatamente, revela todos os seus limites. No entanto, no momento duríssimo que estamos vivendo, temos uma grande oportunidade para descobrir outra vez a nós mesmos, enfrentando o esforço de uma tarefa. É o que nos aponta o diálogo entre o especialista em empreendedorismo Giulio Sapelli e Bernhard Scholz, presidente da Companhia das Obra

Já se tinha essa idéia há algum tempo. Para ser mais preciso, antes mesmo que se chegasse ao colapso desses dias. Na Itália, falava-se muito sobre a Alitalia e os fundos mútuos ou subprime (hipotecas americanas de alto risco), mas a palavra “recessão” ainda era dita a meia voz, entre gráficos em baixa e tabelas pessimistas. Claro, aqueles números falavam em cortes. Muitos e dolorosos. Mas a sensação, claríssima, é a de que as pessoas por trás dos números não eram levadas em consideração. Em suma, falava-se sobre economia colocando entre parênteses quem a faz: o homem. Ou melhor, necessidades, perguntas, desejos. Vontade de construir e de se realizar. Como? Trabalhando. A impressão era, então, exatamente essa: a de que o trabalho corria o risco de ser o grande esquecido dos últimos anos. Não tanto – e não apenas – como “cargos” e salários incertos, mas como expressão de si e do próprio relacionamento com o real. Como possibilidade de crescimento. De conhecer e conhecer-se mais, empenhando-se com aquilo que Dom Giussani, uma vez, definiu como “uma energia que muda as coisas segundo um desígnio” e que, para muitos de nós, se tornou apenas um estorvo, um cartão a ser assinado, um parênteses no fim de semana onde “se vive”.
Depois, chegou o tufão. E tornou-se ainda mais claro que a impressão não era equivocada. Se há um dado certo no grande caos destas semanas é exatamente o aflorar do trágico esquecimento que dominou os últimos anos, ruindo os fundamentos – e, portanto, as contas – de empresas e Estados. Viu-se que dinheiro havia, mas faltava o eu; que os mercados cresciam, mas o uso da razão era cada vez mais reduzido (basta olhar a abstração dos modelos propostos por certos economistas e comentaristas para encaixar a realidade em suas explicações); que sistemas perfeitos a ponto de tornar supérfluo o “fator humano” simplesmente não se mantêm de pé. Cedo ou tarde, caem.
Assim, agora que a realidade está começando sua revanche, que os nós são desfeitos e a perspectiva de um mundo mais pobre, infelizmente, não é de maneira alguma irreal, torna-se ainda mais urgente colocar o assunto em discussão. É verdade ou não que entre os motivos da crise há também o enfraquecimento dessa idéia de trabalho como relacionamento saudável consigo e com a realidade? E o que tem que ver – se tem que ver – com o famoso “financiamento” que levou muitos a procurarem future, hedge funds e stock optionsao invés de arregaçarem as mangas e se dedicarem à “economia real”? E mais: uma vez que não se trata de demonizar a situação financeira, o dinheiro e muito menos a empresa de quem o move, a crise não poderia ser uma ocasião para retomar a consciência, para redescobrir o valor do trabalho?
Fizemos estas perguntas a duas pessoas que entendem muito do assunto. Um é Giulio Sapelli, professor de História da Economia da Universidade de Milão, um dos maiores especialistas italianos (e não só) do mundo empresarial. O outro é Bernhard Scholz, presidente da Companhia das Obras, rede de 34 mil empresas (com e sem fins lucrativos) que, no dia 16 de novembro [de 2008], dedicou sua assembléia anual exatamente à questão do trabalho (com a presença de Julián Carrón, responsável de CL). Publicamos um diálogo que parte da crise, do trabalho e da crise do trabalho.

Como esses fatores se interligam?
Sapelli.
A crise tem suas razões, intrínsecas à globalização. Porém, certamente, nos últimos vinte anos houve uma colossal transferência de riqueza do lucro para a renda. Do capital que é investido ao que produz capital. O lucro das empresas subiu muito, os salários dos trabalhadores caíram. Mas, sobretudo, houve o silêncio do trabalho, inclusive como objeto de estudo: não foi editado mais nenhum livro sério sobre o assunto. Houve um tempo em que o trabalho era uma metafísica. Havia uma ontologia, uma antropologia fundada sobre ele... Nos últimos anos, isso desapareceu.

Por que, segundo vocês?
Sapelli.
Nesta espiral niilista, dar um sentido ao trabalho é dar um sentido ao sujeito. Por isso, não se fala mais sobre isso. Porém, seria necessário voltar a estudá-lo e respeitá-lo. Quando uma família se envergonha por ter um filho operário, quer dizer que realmente estamos indo mal...
Scholz.É verdade, o desprezo pelo trabalho manual é um sintoma grave. O trabalho não é mais considerado como um valor em si, mas apenas como algo que serve para ter sucesso e renda, normalmente de maneira rápida. Com duas conseqüências: ou é suportado como um preço a pagar, ou se torna uma droga. Pensem nos jovens: entre aqueles que procuram trabalho, hoje, podemos observar uma constante busca de estímulos. É como se a pessoa tivesse reduzido o trabalho a um carregador de emoções contínuas, em vez de se dar conta de que somente na continuidade, na dedicação, na construção a longo prazo o homem cresce e amadurece. É preciso voltar a fazer experiência do trabalho como um processo de conhecimento. Mesmo quando é repetitivo. Ninguém pode me dizer que uma dona de casa que, durante a vida, lava os pratos milhares de vezes não amadureça. Hoje, procura-se evitar o esforço, mas o esforço é condição de crescimento.
Sapelli.Sempre lembro aos meus alunos: quando comecei a fazer estágio no Escritório Olivetti, tinha 19 anos. Nos primeiros seis meses, trabalhei na fábrica: entrava às 6h15. Mas, como eu, todos os formados também faziam isso. Bem: esses seis meses foram um dos mais interessantes da minha vida. Entendi que antes do conhecimento vem a experiência. Melhor: que experiência e conhecimento estão ligados. Ninguém disse que o fato de alguém fazer um trabalho repetitivo faz com que ele não seja livre em sua consciência.

De acordo, mas de onde nasce essa liberdade?
Scholz.
A questão é quem é o sujeito que trabalha. Quem sou eu. O cristianismo sempre disse que o trabalho é a expressão do relacionamento com o Mistério. Acredito que este seja o ponto-chave.
Sapelli. Entendi tarde essa idéia de santificação do trabalho. Entendia a centralidade do sujeito, mas não conseguia alcançar como isso era revolucionário em relação à concepção de hoje. Você aceita a realidade, mas não se deixa condicionar. Exatamente porque há essa obrigação com esse alguém maior do que você. Realmente, é um aspecto fundamental a ser recuperado. Mas eu não sou pessimista. Vejo muito sofrimento nas empresas, quase um sentimento de angústia. Como se se tivesse perdido o sentido daquilo que se faz. E o fato de se trabalhar apenas pelo dinheiro tornou-se um paradigma, como vimos com a degeneração das stock options. Porém, o sofrimento também pode lhe tornar consciente. Depois, tenho confiança naquilo que brota na juventude. Vejo que há, novamente, a vontade de fazer coisas não apenas para si mesmos. Vejo jovens diretores que deixam a administração e querem voltar a trabalhar na produção. Pessoas que buscam uma qualidade de vida melhor. São sinais fracos, mas fazem entender que algo está mudando...
Scholz.Nesse sentido, a crise atual também é uma oportunidade. Uma ocasião para refletir sobre o significado do trabalho em si. E um momento no qual poderemos entender o fato de que, se fazemos algo com um mínimo de ideal, construímos. Concordo que é um momento bom. Um sofrimento que leva à conversão, a olhar além.

A fazer florescer uma pergunta...
Scholz.
E, sobretudo nos jovens, há uma pergunta. Talvez sejam um pouco mais frágeis, mas olham, escutam. Não estão mais entrincheirados atrás de barreiras ideológicas. Estão mais nus, mais vulneráveis. Mas têm uma pergunta dentro de si.
Sapelli. Talvez mais do que um tempo de crise, este seja um tempo de espera. Porém, é preciso ser capaz de responder. Senão, o risco é de que voltem as velhas posturas ideológicas: o trabalho ligado a um renascimento social, em reações violentas ou como estatalismo...

Porém, em contrapartida, há exemplos contrários. Penso na própria Companhia das Obras (CdO)...
Sapelli.
Sim, mas junto com os exemplos, é preciso uma metafísica, objetivamente. Um pensamento forte. É preciso fazer um grande investimento cultural: ler, estudar... Quando eu vir circulando mais romances dedicados ao mundo do trabalho, ou teses, ou livros sobre o tema, então poderei dizer que se voltou a fazer uma metafísica. No fundo, o que a CdO fez nesses anos? Resistiu. Resistiu a essa onda de niilismo. O simples fato de ela existir já é um acontecimento cultural. Porém, o que está em curso é uma batalha antropológica. É preciso se aparelhar.
Scholz.Eu a chamaria uma exigente reconstrução de novas formas de vida. Quer dizer, sem muito apoio dos intelectuais, colocar-se em ação, arregaçar as mangas e construir tijolo por tijolo, seguindo o próprio desejo de modo autêntico e respondendo à realidade que tem na sua frente, abraçando o significado de tudo. Acredito que este seja o único caminho possível, o caminho que nos ensinou Dom Giussani. Aquele que permite voltar a entender o trabalho não como uma série de teorias, mas como uma descoberta contínua. O próprio trabalho, vivido bem, leva a descobrir os próprios talentos. Chama a uma responsabilidade, a estar diante da realidade por aquilo que é. Isso nos torna nós mesmos: colocando-nos em jogo, arriscando, fazendo sacrifícios, entendemos que é mais benéfico para nós, é mais conveniente.

E para “viver bem” o trabalho, para recuperar essa percepção de uma utilidade para si, o que é preciso?
Sapelli.
É preciso um longo período educativo no velho estilo. Fundado sobre o exemplo, as boas práticas. E bons livros: o estudo, a elaboração... É um caminho de testemunho.
Scholz. É verdade. De fato, onde o empresário demonstra um real interesse pela pessoa, até o jovem trabalhador mais desleixado começa a reencontrar interesse por si, a trabalhar com gosto.

Volta-se sempre ao mesmo ponto: é um problema educativo, portanto.
Sapelli.
Sim. Está em pauta a construção da pessoa, o que – como dizia Jung, não por acaso cristão – é um desafio que nos acompanha durante toda a vida. Você pode ser o porteiro ou o proprietário da casa. No trabalho, é possível ver isso. Você constrói a sua pessoa com o trabalho, sempre. Porém, é preciso refletir sobre si mesmo. O que, no final das contas, é o velho exame de consciência, nada mais... Se essas coisas começarem a ser ditas nas empresas, ou melhor, praticadas, é possível reconstruir. É um trabalho “micro”, que não se faz fundando partidos ou organizações sindicais. Porém, é uma terra de missão.
Scholz. A educação é decisiva. Depois, é preciso levar em consideração um fator que eu estou descobrindo cada vez mais, quando me ocupo do trabalho: o tempo. No frenesi em que vivemos, não o temos mais como um amigo, algo que ajuda o crescimento. Porque, se é verdade que a vida é dada para construir algo, e que a vida inteira é uma descoberta, precisamos de tempo para descobrir. Porém, a idéia mais difundida hoje é a de “tudo imediatamente”. Assim, você se consome. Não cresce. E não exprime a si próprio: exprime um mecanismo. Então, para redescobrir o gosto do trabalho é preciso se reaproximar também do tempo como condição favorável, não como limite a ser superado.

Há um outro fator desconsiderado nos últimos anos. No fundo, a verdadeira usura é esta, mais do que a dos impostos: uma comercialização desumana do tempo, como se fosse um problema apenas nosso. Tem que ver com o salário, com a pressa em ter lucros na Bolsa, com a cobiça de certos empresários...
Scholz. Normalmente, somos impacientes conosco porque não pensamos que o próprio Deus pensa em nós dando-nos o tempo. O tempo é a condição para fazer emergir o eu. Sem tempo, não posso emergir. Um robô não precisa de tempo, uma pessoa sim. Mas isso também é algo que se descobre exatamente no tempo... E, aqui, voltamos ao coração do cristianismo. Que, paradoxalmente, nos dá tudo imediatamente, mas como uma promessa que já preenche, hoje, a realidade. Agora, você tem a certeza de que terá tudo, porque você já está em relacionamento com o Tudo.

O Papa Bento, em seu discurso no Collège des Bernardins, na França, falando sobre o trabalho, partia exatamente dos longos tempos dos monges e, sobretudo do “Quaerere Deum”, do relacionamento com o Tudo. Que reação vocês tiveram?
Sapelli.
Olha, para mim, a chegada de Bento XVI foi motivo de grande satisfação. É a inteligência unida à prática pastoral. Vejo que vem de longe. Vejo seus mestres. E concordo muito com aquilo que diz. Está colocando no centro a necessidade de um pensamento forte, que una. Sem um pensamento forte, não é possível construir.
Scholz.O que o Papa disse em Paris me tocou muito. É a idéia de que o trabalho nasceu sem colocar no centro a si mesmo, mas a busca de Deus, que é idêntica à busca da verdade de si. Realmente, uma questão metafísica. O objetivo do trabalho é o homem. O trabalho tem um sentido na realização da sua pessoa e essa realização não pode prescindir, em nenhum momento da vida, do relacionamento com o Mistério. Senão, não existe. O trabalho torna-se uma instrumentalização do homem, se não há algo que vá além.

Para vocês, o que dá gosto ao trabalho?
Sapelli.
A minha história. A minha educação. E o exemplo do meu pai, que era muito religioso, embora sendo de esquerda: unia trabalho e liberdade. Eu sou filho de operário. Meu pai foi despedido pela represália sindical. Dois anos desempregado. Precisei deixar a escola, o Instituto Técnico, e fui trabalhar, antes de retomar os estudos. Mas, na minha família, havia uma tal dignidade que não me lembro daqueles anos como sendo duros. Foram bonitos. Para mim, o trabalho é uma condição de vida.
Scholz. Para mim, meu pai também foi decisivo. Era juiz. Transmitiu-me um grande senso de responsabilidade, mas também um grande apreço por aquilo a que chamamos recreação, o tempo livre. O tempo para re-criar a si mesmo. Depois, foi importante o trabalho nas férias de verão: no ensino médio, a feitoria do meu tio; durante a universidade, trabalhava como eletricista. Momentos importantíssimos. Ensinaram-me o valor do trabalho manual, que é fundamental: faz perceber que o homem é uno, espírito e corpo, e se exprime inteiro. Depois, o encontro com Dom Giussani completou tudo isso.
Sapelli.Eu também tive uma grande sorte na vida: sempre encontrei pessoas que me queriam bem. Fizeram-me entender que é possível trabalhar com grandes diferenças de hierarquia e conhecimento, mas bem. Levanto-me todas as manhãs e, com uma oração, agradeço.

O que, talvez, seja o grande antídoto contra o niilismo...
Sapelli.
A gratidão? Em um certo sentido, sim. Não tinha pensado nisso.
Scholz.E, de fato, dá uma energia impressionante. Mesmo em tempos difíceis.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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