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Passos N.116, Junho 2010

IGREJA - FÁTIMA

No santuário da liberdade

por Luca Doninelli

Em maio, Bento XVI visitou o lugar onde, em 1917, Nossa Senhora apareceu a três crianças, para encontrar um povo que nasceu todo do “sim” que elas disseram. Pedimos ao escritor Luca Doninelli que nos relatasse como é a vida nesse lugar hoje

Lisboa é uma cidade linda e trágica: não por acaso sua música chama-se “fado”, que não quer dizer apenas destino, mas destino obscuro, indecifrável. Nessa extrema margem ocidental do Velho Continente concluíam-se os sonhos de todos os povos antigos e de suas intermináveis migrações da longínqua Ásia. Mas ali também recomeçava o sonho e homens de muita coragem enfrentavam o desconhecido oceano em busca de algo mais. Esse algo mais, o eterno, que todos buscamos, sempre.
Lisboa é uma cidade iluminista, com muitos traços que lembram a imponente arquitetura alemã, porque assim quis, depois do terremoto de 1755, um poder fortemente dominado por instâncias maçônicas. As ideologias tornam-se mais intransigentes e obtusas quando exportadas.
A cidade abre-se ao turista em suas cores claras, suas tintas tênues, que, porém, não transmitem alegria e sim uma espécie de anseio por algo que se parece com uma falsa despreocupação. As igrejas são numerosas e belas, repletas de pinturas, mas encontrar alguma informação sobre os pintores é muito difícil; as seções artísticas das livrarias estão cheias de obras sobre o Renascimento italiano ou sobre o Impressionismo francês, mas nada (ou quase) sobre a arte daqui, como se um poder tirânico ou uma obscura vergonha quisessem impedir, a quem vive aqui, de conhecer e amar a própria história.
Estou em Lisboa a caminho de Fátima. É uma época muito chuvosa. As igrejas estão abertas, e dentro há sempre gente. Fico impressionado com o fato de que aqui os frequentadores são de todas as idades, jovens, mães carregando seus filhos, homens de paletó e gravata, talvez fazendo uma pausa entre um trabalho e outro.
É assim, com essa observação aparentemente marginal, que sou atingido pelo acontecimento Fátima. Durante a missa, me parece ter entendido um aspecto desse acontecimento: trata-se, de fato, de algo pessoal, uma coisa que toca a pessoa. Em geral, a religião se manifesta sob a forma de um despertar geral, de uma devoção coletiva. Mas a verdadeira natureza do cristianismo manifesta-se como acontecimento pessoal.

O SOL E A SENHORA. Foi a três crianças, três pastorzinhos, que no dia 13 de maio de 1917 Nossa Senhora apareceu pela primeira vez, numa localidade chamada Cova da Iria (Vale da Paz), onde hoje está a capela, localizada ao lado do santuário onde estão sepultados os protagonistas desse fato. As visões se sucederam até o mês de outubro.
Colocado no centro de uma cidadezinha que cresceu desordenadamente (como em geral acontece), o santuário – precedido por uma imensa praça, hoje fechada, no lado oposto, por uma enorme igreja recentemente construída e que suscitou muita polêmica – tem a típica grandiosidade dos países que conhecem a pobreza, nada a ver com Lourdes, tão sabiamente imersa na bem cuidada natureza francesa.
As três crianças se chamavam Francisco e Jacinta Marto – o primeiro, com quase nove anos; a segunda, com sete – e Lúcia dos Santos, com dez. Enquanto brincavam, viram algo que, à primeira vista, parecia um relâmpago. Lúcia, a mais velha, diz aos irmãos que era melhor parar a brincadeira e voltar para casa. Mas enquanto caminhavam, perto de uma azinheira, eis que brilha outro relâmpago, e no mesmo instante veem, sobre a árvore, uma linda Senhora vestida de branco, com as mãos postas e, pendendo delas, um rosário. A aparição causa surpresa nas crianças, mas não medo. Essa Senhora era “mais brilhante do que o Sol, espalhando uma luz mais clara e intensa do que um copo de cristal cheio de água cristalina atravessado por luminosos raios de Sol” (Irmã Lúcia, Memórias). Apenas Lúcia conversa com a Senhora. Jacinta apenas ouve o que ela diz e Francisco só a vê; as palavras dela lhe são contadas depois.
Há algo familiar nesse método, algo que respeita integralmente o homem e a sua natureza. Aqui o anúncio está ligado à comunicação humana, ao afeto dessas três crianças, à amizade humana delas. As palavras da Senhora são contadas a Francisco por suas amiguinhas. O Mistério se comunica utilizando a nossa pobre humanidade. É assim que o mundo muda. Durante essa primeira aparição, a Senhora abre as mãos e uma grande luz envolve as três crianças, “fazendo-nos ver a nós próprios em Deus, que era aquela luz, mais claramente do que nós nos veríamos no melhor dos espelhos” (ibid.).
Na aparição de junho, a Senhora anuncia que logo Jacinta e Francisco irão para o céu, enquanto Lúcia deverá ficar um longo tempo na terra. Lúcia fica triste, não tanto pela morte dos seus amigos, mas porque ficará sozinha. Por que Deus nos doa essa companhia, esse consolo para a nossa vocação humana, mas por tão pouco tempo? Por que tudo o que é bonito acaba tão rápido? A Senhora participa dessa tristeza, compreende-a, mas promete à menina que sempre estará a seu lado. É a apoteose da liberdade humana: ao homem não basta ter “visto a si próprio em Deus”, se essa que é a razão suprema das coisas não receber o imprevisível socorro da liberdade humana.
As aparições na Cova da Iria acontecem todo dia 13 de cada mês, exceto em agosto. A fama das aparições se espalha e, a partir da segunda vez, um número cada vez maior de pessoas assiste à visão dos pastorzinhos. O assunto preocupa a autoridade civil, tanto que o prefeito, depois de ameaçá-los, manda prendê-los: ele queria obrigá-los a confessar que suas visões eram uma enganação; procura ele próprio enganá-los, dizendo a cada um que os outros dois já haviam confessado. Mas, afinal, no relatório não consegue escrever nada. As três crianças não poderiam negar o que tinham visto. Por isso, a aparição de agosto aconteceu no dia 19, e não no dia 13, como nos outros meses.
Lendo as memórias de irmã Lúcia, fica evidente que as três crianças, da primeira à última aparição, realizam uma importante caminhada em termos de consciência. São crianças como as demais, cada uma com seu temperamento: Lúcia era reflexiva; Jacinta, esperta e um tanto graciosa. Francisco, ingênuo. Três crianças, que continuam sendo tais: pastoreiam as ovelhas, brincam e, às vezes, têm de se confrontar com a persistente incredulidade de alguns colegas de brincadeira.

A JANELA E O SACRIFÍCIO. No entanto, o caminho pessoal delas é claro como o sol. Quando, durante as últimas aparições, o caminho delas é assediado por uma enorme quantidade de pobres, doentes, infelizes de todo tipo, mas também de simples curiosos, vejamos quais eram as preocupações e os gestos de irmã Lúcia: “Lá podiam ser vistas todas as misérias da pobre humanidade; alguns gritavam até de cima das árvores e muros, aonde subiam para nos ver passar. Dizendo sim a uns e apertando a mão de outros para ajudá-los a levantar-se do chão, nós avançávamos bem devagar, com a ajuda de alguns senhores que nos abriam uma passagem no meio da multidão. Agora, quando leio no Novo Testamento aquelas cenas encantadoras da passagem de Jesus pela Palestina, me lembro dessas cenas que o Senhor, embora eu fosse tão pequena, me fez passar nas pobres vielas e veredas que levam de Aljustrel a Fátima e à Cova da Iria. E agradeço a Deus, oferecendo-Lhe a fé do nosso bom povo português. E penso: se essa gente se ajoelha diante de três pobres crianças, apenas porque lhes foi oferecida misericordiosamente a graça de falar com a Mãe de Deus, o que não fariam se vissem diante de si o próprio Jesus Cristo?”.
Depois de tantos anos, Lúcia se comove com a expansão de um dom: ela, a vidente, nada mais é que uma “pobre criança”, impressionada com a fé do “bom povo português”, que se prostra diante do que não vê. A dinâmica da razão ligada à fé é quase mais evidente nesse pobre povo do que até nas três crianças.
Mas, antes de falar do Segredo de Fátima, gostaria de falar um pouco mais dessas três crianças. Quem me guiou nos dois memoráveis dias da minha visita a Fátima me levou também às casas dos pastorzinhos: à de Lúcia e à dos irmãos Jacinta e Francisco. Os dois foram atingidos pela febre espanhola em 1919; Francisco morreu nesse mesmo ano, depois de ter recebido a Primeira Comunhão, ao passo que Jacinta se curou, mas uma sequela da doença provocou nela uma dolorosa infecção da pleura; ela chegou a ser levada para se tratar em Lisboa, onde morreu em 1920.
O relato de Lúcia nos fala da doença dos seus priminhos, dos seus quartos sempre cheios de gente – crianças e adultos – que não queriam arredar pé de lá, embora nem percebessem que isso só aumentava os sofrimentos deles (por exemplo, terríveis dores de cabeça). No quarto de Francisco, as pessoas ficavam ali trabalhando (tecendo) e as crianças, brincando aos pés da cama. Quando lhe traziam o leite quente, Francisco sofria muito para beber, mas ele o fazia pensando nos pecadores que aquele seu sacrifício poderia salvar. Observei a janela que Francisco via antes de morrer.

O DOM DE UM OUTRO. Irmã Lúcia fala bastante também de Jacinta. Até O seu leito em Lisboa era meta de peregrinações. A menina respondia educadamente a todas as perguntas que lhe faziam, e apesar dos enormes sofrimentos, manteve-se sempre serena. Por suas palavras, ficamos com a impressão de que ela percebia o próprio corpo como dom de Alguém, e que agora esse Alguém estava para tomá-lo de volta.
Hoje conhecemos as três partes do Segredo de Fátima. A primeira, após a visão das almas no inferno, contém a previsão da Segunda Guerra Mundial e a exortação de Maria para que a prece e a penitência incessantes impeçam que outras almas acabem lançadas nos sofrimentos eternos. A segunda é relativa à Rússia e ao seu erro, que irá se propagar funestamente por toda a terra (suas palavras foram pronunciadas antes da Revolução de Outubro), até que a Rússia se converta e seja consagrada – pelo Papa, junto com todos os Bispos – ao Seu Coração Imaculado. A terceira – correspondente à visão do Homem vestido de branco que sobe uma montanha, ajoelha-se diante da cruz e ali é morto, junto com todos os bispos, enquanto dois anjos recolhem o sangue desse martírio e o borrifam sobre os fiéis – foi revelada em 1944 através de uma carta de irmã Lúcia, que até aquele momento decidira se calar, e comunicada ao mundo apenas em 2000, por João Paulo II.

O SIGILO DE UM ENCONTRO. Sobre a interpretação do Segredo valem para sempre as palavras escritas pelo então Cardeal Ratzinger, com a célebre conclusão: “A fé cristã não quer e não pode ser matéria para nossa curiosidade. O que permanece, já o vimos logo no início das nossas reflexões sobre o texto do Segredo, é a exortação à prece como via para a salvação das almas e, no mesmo sentido, o apelo à penitência e à conversão”.
Sobre o significado das palavras “penitência” e “sacrifício”, socorre-nos a visão do anjo, que os pastorzinhos tiveram várias vezes em 1916, antes das visões da Cova da Iria. O anjo recomenda às três crianças que ofereçam “constantemente ao Altíssimo orações e sacrifícios”. Lúcia, então, lhe pergunta de que modo deveriam se sacrificar. A resposta do anjo: “De todas as formas que puderem, ofereçam um sacrifício como reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e como súplica pela conversão dos pecadores”.
De todas as formas que puderem, ou seja: em todos os momentos do dia podem ser oferecidos, pois nada é estranho à salvação do mundo (“até os cabelos da vossa cabeça são contados”). Viver as nossas jornadas na memória comovida do Mistério que se fez carne é a primeira salvação do mundo e cabe a cada um de nós, pessoalmente, mesmo que estejamos no leito de morte.
A devoção a Fátima não é obrigatória para um cristão: no entanto, a Igreja toda, a começar pelos Papas do século XX, se apoia – para a leitura do próprio mistério e da própria missão – nas palavras da pastorinha, que depois se tornou a irmã carmelita Lúcia dos Santos. Veem à minha mente as palavras do escritor Giovanni Testori, pouco antes de morrer: “Para Cristo, o destino não é o que é obrigatório ou inevitável, mas o que a liberdade humana opta por não evitar (embora podendo fazê-lo), por amor ao Pai”.
Assim foi para a Igreja frente ao mistério de Fátima, e assim é para mim, o último dos escrevinhadores que, vindo a Fátima, não viu nada de mágico, e sim a confirmação de um encontro – como aquele de João e André com Jesus, e o meu encontro com Dom Giussani e seus filhos – que mudou para sempre o mundo, permitindo ao homem um olhar novo sobre todas as coisas.

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HISTÓRIA DE UMA PRESENÇA

13 de maio de 1917. Nossa Senhora aparece a três crianças: Lúcia, Francisco e Jacinta. Elas estavam pastoreando ovelhas perto de Fátima, junto à Cova da Iria, quando, precedida de dois relâmpagos, veem uma “Senhora mais brilhante do que o sol”: ela os convida a voltarem ali pelos próximos cinco meses, sempre no dia 13, à mesma hora. Nos meses seguintes, as crianças voltam, e a notícia das aparições espalha-se rapidamente por todo o país.

13 de agosto de 1917. Os pastorzinhos são presos pelo prefeito da cidade e levados para Vila Nova de Ourém. No dia seguinte são soltos: a quarta aparição ocorre, pois, com alguns dias de atraso (dia 19), e num lugar diferente.

13 de outubro de 1917. Última aparição de Nossa Senhora aos três pastores. Mais de setenta mil pessoas estão presentes na Cova da Iria: ela se identifica como Nossa Senhora do Rosário e pede que Lhe seja construída ali uma capela. Acontece, em seguida, o “milagre do sol”: em meio ao assombro do povo, o disco solar começa a girar sobre si mesmo, tornando-se enorme, como se estivesse para cair sobre a terra.

4 de abril de 1919. Morre um dos pastorzinhos, Francisco, atingido pela gripe espanhola. Alguns meses mais tarde, em fevereiro de 1920, morre também Jacinta.

Outubro de 1930. A Igreja declara as aparições “dignas de crença”, e permite oficialmente o culto a Nossa Senhora de Fátima.

3 de outubro de 1934. Lúcia professa os votos perpétuos, ingressando na Ordem da carmelitas descalças. Suas confissões revelarão, em diversos momentos, os segredos que lhe foram confiados por Nossa Senhora.

13 de maio de 2000. João Paulo II beatifica, em Fátima, Francisco e Jacinta. É revelado o terceiro segredo.

13 de fevereiro de 2005. Morre também Lúcia. Apenas três anos depois é aberto o processo de sua beatificação.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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