Vai para os conteúdos

Passos N.117, Julho 2010

DESTAQUE - EXERCÍCIOS DA FRATERNIDADE

“Pode um homem nascer de novo, sendo velho?”

por padre Aldo Trento

Durante os Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação, realizados em Vargem Grande Paulista (SP), de 28 a 30 de maio, pedimos a padre Aldo, missionário no Paraguai, que nos contasse como tem feito o percurso que padre Carrón está propondo a todos. Lançamos a ele uma pergunta: “Diante da realidade que o senhor vive no Paraguai, com a dificuldade que enfrenta, a relação cotidiana com a morte, como é, para o senhor, fazer o trabalho de nascer todos os dias?”. Nestas páginas, a sua resposta

Eu me sinto muito inadequado por estar aqui diante de vocês que são o sinal mais evidente daquilo que ouvimos ontem e hoje, pois, quem é o homem novo? Quem é o homem sobre o qual o Carrón nos falou hoje? É este povo de pecadores, que somos nós, e que é mais ou menos consciente de que Ele está aqui entre nós. Diante disso, eu gostaria de lhes dizer algumas coisas. Estou passando por provações desde ontem. Vocês sabem que eu tenho 40 crianças, quase todas em guarda, mas algumas também já adotadas. Nesses dias, me chamaram pessoalmente no hospital para me dizer que Cristinita, que é uma das minhas preferidas, porque é uma das que mais sofre, aos 3 anos, estava para morrer. Foi pega, quando tinha meses de idade, no meio do lixo. Por muitas horas chorei ao lado dela e, depois, tive que partir, decidi vir estar aqui com vocês. A mentalidade comum diz “não, você tem que ficar lá”, e também o homem velho que existe em mim, ainda dominado pelo naturalismo, mesmo bom, como uma voz, me diz: “A sua filha está morrendo e você vai deixá-la para ir aos Exercícios?”. Mas, tendo no coração e na minha mente aquela frase que me define – “eu sou Tu que me fazes” –, parti e peguei o avião, perguntando-me: “Quem és Tu, ó Cristo, que me pedes tal coisa?”. Lembrei-me imediatamente dos rostos dos amigos mais queridos que tenho aqui no Brasil e do rosto de Carrón, consciente de que nada é meu, que nem Cristina é minha, e Deus me pede a liberdade de entregá-la a Ele e não assisti-la na morte. Há dez minutos, me chegou a notícia de que ela morreu. Eu só pedi a padre Paolino que ela não fosse sepultada antes que eu chegasse.
Por que eu quis contar a vocês este fato? Porque esta é a realidade da vida. Esta é a minha humanidade. Quando Carrón fala que devemos levar a sério o humano, isto é uma parte do humano, como também é humano lavar os pratos, como é humano a minha casa religiosa que é feita de sacerdotes, que, como eu, também é gente cheia de problemas, essa casa em que recebemos diariamente, para comer conosco, pessoas jovens, deprimidos ou sãos. O momento mais bonito entre nós é o momento do almoço, em que, nesta grande confusão de pessoas mais ou menos normais, vem à tona, de forma potente, o grito que eu tenho dentro de mim; a realidade se apresenta como um sinal evidente do Mistério. Torna-se evidente a unidade entre Cristo e o humano. E o resultado disso é a alegria com a qual nós estamos juntos. O que é o homem velho? É um homem que, por exemplo, não suporta uma realidade assim, é o homem que – como disse Carrón – mantém o braço diante dos olhos, é o homem que não vive a dramaticidade da vida, é o burguês, é o homem que não percebe a beleza daquela árvore florida que está aqui fora.
Mas não é óbvio, para mim, que o homem novo seja a consciência que me define todos os dias. Por isso, vivo mendigando, desde a manhã até a noite, Veni Sancte Spiritus, Veni per Mariam, ou repito até o infinito, mil vezes por dia ou mais, “eu sou Tu que me fazes”... Eu só posso dizer que, hoje, com 63 anos, posso viver, por pura graça, constantemente diante do Mistério porque, pelo uso da razão, até os meus 57 anos, vivi intensamente tudo o que me aconteceu na vida, levei a sério todo o humano, odiando-o, blasfemando contra ele, quando o esgotamento psíquico me tornou um zumbi, tentando inclusive fugir disso. Mas, como me disse o Carrón outro dia, a grande graça que eu tive é que quando este homem velho estava mergulhado na lama, eu nunca saí pelo alto dessa lama – o que seria muito mais fácil –, mas eu fui para baixo, atravessei toda a lama, tornando-me asqueroso, tendo vergonha de mim, odiando-me, mas atravessei toda a lama acompanhado por alguns rostos, e só quando eu saí da lama pelo fundo é que eu encontrei os braços do Mistério que me acolhia. Naquele momento eu tinha 57 anos. Não é desde sempre. Desde sempre, eu vivi cheio de dor e de forma dramática cada instante da vida, mas sempre sustentado por alguém, a quem pedi humildemente ajuda. Lembro aqueles belos anos em que vinha encontrar Dom Filippo,
no Brasil. Como mendigo, eu vinha com padre Alberto, que era um homem que me sustentava, até o ponto em que Deus me tirou também ele. Fiquei sozinho, desesperado, gritando dia e noite: “Deus, se Tu estás aqui, mostra-Te”. Esse homem foi nascendo devagarzinho.
Nascer de novo, para mim, foi me dar conta do caminho que Carrón, faz três anos, está fazendo conosco, até poder olhar a mim mesmo com os olhos de Cristo. A minha vida mudou quando, há alguns anos, olhando-me no espelho, eu sorri. Eu não era mais aquele monstro neurótico, amarrado, mas me olhava com os olhos de Cristo: eu era o Tu que me faz. Tentem pensar o que isso significou para mim depois de mais de quinze anos de destruição humana, de grito! A amizade com Cleuza e Marcos nasceu disso, do drama da realidade, porque eles também vêm de uma experiência de dor e sacrifício... Tentem imaginar eles que viveram continuamente com os pobres, uma entrega cotidiana na miséria e pobreza, ou a minha situação de pobreza extrema, que era pior ainda, porque nada me interessava, porque eu não me interessava por mim mesmo. A luta entre o homem velho, cansado de viver, e a espera de que acontecesse, finalmente, o homem novo, a consciência de que “eu sou Tu que me fazes”... Daí nasceu a grande amizade com Carrón, porque foi o único em cujos olhos eu revi aquele abraço de Giussani de vinte anos atrás. Não tenho palavras para comentar o que ele disse hoje, porque suas palavras são de uma beleza e de uma simplicidade que me comovem, porque descrevem a minha vida. Pensem em tudo o que ele falou, passando pela exigência de justiça ou a dignidade cultural da fé. Quando o homem nasce de novo? Para mim, significa que é quando eu me dou conta de que eu sou fruto de uma misericórdia infinita. Pensem quando, há poucos anos atrás, eu tomei consciência do que diz o profeta: “Antes que tu te formaste dentro do seio de tua mãe, eu pronunciei o teu nome”. Pensem no que isso significou para mim e para as crianças que eu acolho, que foram violentadas. A minha ontologia não é determinada pelo aspecto fenomenológico do que eu sou, mas a minha ontologia vem antes disso. Nós não somos frutos dos nossos antecedentes biológicos, psicológicos ou físicos, mas somos “Tu que me fazes”. Pensem nessas crianças que foram concebidas como fruto da violência, e elas próprias tendo sido violentadas, e que agora vivem comigo, que tenho a consciência de que sou fruto de um desígnio que me quis desde a eternidade; e esta minha consciência se transmite a elas e, nelas, nasce uma vida nova, até o ponto que eu digo para elas: “Vamos dizer um Glória pelo pai de vocês, que violentou vocês”. Posso dizer a elas: “Não precisamos esquecer nada daquilo que aconteceu na vida de vocês”, e tento ajudá-las a assumir essa violência como possível graça na vida. Essa é a vida nova que todos os dias eu experimento, que é uma grande misericórdia, um grande abraço à realidade.
Nos últimos dias, eu fui me confessar com um padre que está na prisão, acusado de pedofilia, e que não recebeu visitas de ninguém, nem de seus amigos padres, nem do seu bispo, apenas do capelão da prisão. Eu me ajoelhei diante dele e disse: “Padre”. Não disse “pedófilo” e sim “padre”. Fiz isso pensando no artigo de Carrón, da Páscoa: “Feridos, voltamos para Cristo”. Eu lhe disse: “Padre, perdoa-me porque pequei”. E depois de me dar a absolvição, ele me abraçou comovido e me disse: “Você não me olha como um monstro”. Isso é possível porque reconheço que na minha velhice humana de um tempo – quando eu tinha 20 anos e tinha a cabeça perdida pela ideologia, e pela velhice dos anos que se seguiram, até que Deus me deu uma martelada –, fui salvo, regenerado, perdoado pela graça. Vocês conseguem imaginar o que é que significou, para mim, o artigo que o Carrón escreveu na Páscoa, ou o panfleto sobre os crucifixos nos lugares públicos da Europa, ou então o panfleto de Eluana, todos estes juízos com os quais Carrón está nos educando para que a fé se torne estrutura do eu? Tudo isso me permite olhar, com uma humanidade impressionante, qualquer homem que eu encontre, vendo nele a novidade do Mistério presente. Por isso, eu agradeço a Deus também esse efeito que eu tenho, essa enorme dificuldade ao falar, pois são como pontadas ao falar que me ferem, que não são reais, é mais psíquico, porque faz com que a minha liberdade se mova e, todas as vezes que abro a boca, isso permite que eu diga “sim” a Deus. A coisa mais bonita da vida não é recuperar a saúde ou que me passe esse efeito. Recentemente, me consultei em Roma e o médico me disse: “Padre, o senhor deveria deixar o lugar onde vive e se mudar para um lugar tranquilo e cuidar das próprias coisas”. Seria como Cristo dizendo ao Pai: “Afasta de mim este cálice”. Ele o disse como eu disse muitas vezes, mas a realidade é a realidade, o humano é o humano. A minha razão me diz que aderir a Cristo e a Deus é a realização da minha felicidade, então a vida se torna um grande pedido. Como Carrón terminava a lição hoje: com uma grande súplica. Imaginem que bonito tem sido o percurso destes últimos três anos: primeiro, o percurso do conhecimento, até chegar ao homem novo. Quem já foi me visitar sabe que eu – ali, não tem nada de belo –vivo nas sujeiras do mundo. Hoje, eu perdi três filhos. As pessoas podem pensar: “mas não são seus filhos de carne e de sangue”. É verdade, mas são mais filhos ainda por causa disso, me fazem sofrer mais porque não são filhos desejados, são filhos doados. Quem se casa busca filhos. A mim, Deus os doou: “Eis um filho meu, eu o dou a ti”. Há poucos dias, chegou uma menino na minha casa recolhido num saco, num lixão. A minha realidade começa na casa em que vivo com os outros padres, que não somos campeões de normalidade, e na mesa, além de nós, tem uma pessoa que saiu do manicômio, uma anoréxica, uma bulimica, pensem que circo! Quando encontro uma pessoa que está deprimida, o que posso fazer? Quando eu posso, digo: “vem comigo”. Obviamente isso é ir contra qualquer sistema burguês. Mas eu sou amado e acolhido desde a eternidade pelo Mistério dessa forma. Como por Giussani, Carrón, Cleuza e Marcos.
No outro dia, diante da minha menina que morria, eu pensava que, se não fosse por esses amigos, eu não teria partido para vir aos Exercícios. Mas, naquele momento, eu pensei que precisava ver a clareza do carisma que é o dom que me faz continuamente renascer para a vida nova. Eu precisava ver Marcos e Cleuza, porque, no rosto deles, eu vejo a dor dos meus filhos, a minha dor e a dor de todos. Porque ter acompanhado, nesses anos, mais de 700 pessoas à morte, viver com os velhos apanhados nas ruas e com todas essas crianças que me veem como pai delas, eu garanto a vocês que, se você não pertence com todo o coração a rostos, se desesperaria. Mas é uma graça vir encontrar Marcos e Cleuza. Eu agradeço vocês. Ter vindo encontrar esses amigos me fez sentir bem, porque a amizade deles, hoje que carrego esta dor, me faz sentir que a minha menina está aqui comigo, que ela não me foi roubada, mas que ela está me esperando ali onde meu coração tanto anseia chegar. Por isso, pedi que cantassem, antes, a música que diz “não é difícil ser como eles”. Na vida, ser como eles é muito fácil se Deus não tiver piedade de mim, se eu não estiver diante de amigos que me sustentam e me acompanham. Para mim, o Movimento nada mais é do que esta ternura que me acompanha. É poder ligar para Marcos e Cleuza e dizer: “Estou com vontade de ver vocês”. Não importa se estou na Itália, como estava nestes dias, ou aqui, porque, para mim, o Movimento é um homem, uma amizade, dois rostos que me ajudam a dizer: “Tu, ó meu Cristo”. Eu digo isso de todo o coração, porque o homem novo é isso que Carrón ensina, é o homem que está continuamente diante do rosto de Cristo. Para mim, a graça de tanta dor e a graça de uma grande amizade é o que me permite estar sempre diante do Mistério.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página