Falta tudo para a reconstrução, inclusive a ideia de como fazê-la. Enquanto isso, um milhão de desabrigados vive ainda em acampamentos precários. O que tem acontecido na ilha caribenha, seis meses após o terremoto? Fizemos essa pergunta a pessoas que continuam por lá, vivendo dia após dia ao lado desse povo que está em permanente “vigília”
A casa desmoronou. “Não morri telefonar 39079920 para imprimir camisetas”. Atis escreveu esse aviso numa grande pedra, em meio às ruínas. Informa que está vivo e pronto para o trabalho. O terremoto cobriu de poeira e de sangue a sua vida. Ele luta como pode. Vejamos quem vai vencer. Atis trabalha imprimindo camisetas, debaixo de um dos milhares de galpões de plástico que sufocam cada centímetro da cidade.
Os acampamentos estão espalhados por toda a cidade. Ocultam aquele mínimo de fisionomia que restava à capital do Haiti, que ruiu com o abalo de 12 de janeiro. É um caos. Pouco mais de seis meses após o terremoto, a única coisa pontual no país é a estação das chuvas. O peso da água não poupa a colmeia de lonas de plástico que se insinuaram na miséria de antes. A cadeia de montanhas, pelo menos, protege a cidade dos furacões. Mas não apaga sua história. O passado e o presente do Haiti se acumulam como o lixo na lama, onde as mulheres preparam frituras como alimento para revendê-las e onde o barbeiro continua a exercer o seu ofício. Tudo à luz do sol. Os rapazes oferecem saquinhos de água para os motoristas, no tráfego sem ruas da capital. Os mais fortes conseguem algum dinheiro recolhendo o lixo da cidade.
Os que passam pelo Haiti dizem uma coisa inesperada: “É como se não tivesse acontecido nada. Eu me refiro ao rosto das pessoas. Só as ruínas falam do terremoto”. Vito Schimera é um dos muitos médicos que, desde janeiro, em rodízio usam as férias para dar uma ajuda à Fundação Avsi, em Porto Príncipe. Quando o dia amanhece, partem para os campos, levando os remédios a bordo da picape. “Montam o ambulatório e à noite desmontam tudo, para refazê-lo no dia seguinte”, conta Fiammetta Cappellini, responsável pela Avsi na ilha, que através da internet anunciou para o mundo o desastre, desde as primeiras horas em que a sua missão teve uma aceleração cruel. Apesar disso, nunca pensou em ir embora. Ficou ali, lugar em que antes das 19 horas o sol se apaga como uma vela. Black-out e toque de recolher.
O rosto de Darline. “Muitos parecem que não ligam mais para o terremoto”, continua Vito. A divindade, no vodu, é desinteressada, mas explica tudo. E tudo, depois de receber uma justificativa, é posto de lado. Estão à beira de um abismo. Pessoas como Darline, imóvel num canto da tenda. Nem olha seu filho de nove meses, que está ali perto, sujo e sozinho. É preciso ter visto seu rosto petrificado para entender o trabalho de conscientização sobre o aleitamento materno feito pela Avsi. “Ensinamos como fazê-lo e o prolongamos o máximo possível”, explica Fiammetta. É um dos instrumentos para educar essas mães, que perdem de vista os filhos e a si próprias. “Aos poucos vamos notando uma mudança”. Bastou uma palavra a outras mães, que começaram a cuidar do filho de Darline, para que ela finalmente levantasse a cabeça: “Obrigada por vocês fazerem isso. Amanhã eu estarei melhor”.
Jolette, que ajuda a Avsi como intérprete, diz a Vito no final da jornada: “Hoje entendi que vocês não estão aqui só para curar as doenças das pessoas. O que interessa é que mudem o jeito de se olhar”.
Esmagados pela necessidade contínua, os relacionamentos se achatariam na resposta imediata: a água, o remédio, ou deter a mãozinha que furtivamente entra no seu bolso à procura de um dólar. “Essa é a dificuldade maior: mudar a mentalidade. Criar o tecido social”, diz Vito. “Isso só uma presença humana verdadeira pode fazer”. Alguém de espírito aberto que permita que as coisas, com o tempo, tomem outra direção.
Ser estrangeiro, cristão, cheio de boa-vontade, isso conta pouco. “A chave é a ligação que se cria com as pessoas que trabalham conosco. As relações mais próximas é que são capazes de criar alguma coisa; que só Deus sabe qual é”. Até tocar os espíritos mais espinhosos, como os rostos nervosos de um grupo de rapazes que se apresentam na base da Avsi. Querem produtos, dinheiro. Acusam os agentes de embolsar a ajuda que chega de fora. “Estamos aqui para trabalhar, não para roubar”, é a resposta que ouvem. Mas não acreditam. Aí alguém lhes propõe: “Venham trabalhar um dia conosco”. E eles topam. Desde então, se ofereceram para ajudar. “Demos-lhes as ferramentas. E eles continuam firmes há algumas semanas”, conta Fiammetta. “Se eu própria não estivesse vendo, não acreditaria”.
Pedem um trabalho, mas no fundo estão querendo uma vida digna, que seja deles. Para enfrentar a reconstrução, Fiammetta convoca as pessoas por bairro, para que sejam elas a tomar as decisões. “A primeira reação é: não, não sei aonde vou estar daqui a dois meses. Mas quando digo que estarei com eles nos próximos dois meses, as portas se abrem”. O fato de alguns permanecerem dá esperança. “Ver que há pessoas que estão com eles antes, durante e depois do terremoto leva-os a dizer: vamos conseguir”, diz Giovanni Galli, psiquiatra e presidente da associação Resilience. E isso rompe a barreira de uma vida esmagada pelo presente. Volta a esperança. Deus aparece em cada frase que dizem. “É um povo em vigília. Está à espera de que alguma coisa aconteça”, diz Maddalena Boschetti, sob o barulho da chuva que bate forte no teto de folhas de zinco.
“Não sou eu quem cura”. Ela é missionária na zona noroeste de uma província do Haiti. Com um bom motorista e um carro com boa tração, leva-se pelo menos oito horas da capital até lá. Mas depois do terremoto, milhares de pessoas se refugiaram nessa região. Fugiram com a roupa do corpo. “Agora, todo o esforço da Igreja é para ajudá-los a permanecer ali”. A província é mais pobre do que a capital. Um desastre! “Procuramos resgatá-la de todos os modos possíveis”. Há pouco trabalho. As crianças se distraem com a transmissão do campeonato mundial de futebol; aproveitamos e damos aulas sobre os países que competem na África do Sul. Eles não sabem daquele feito na Copa da Alemanha de 1974, quando o Haiti fez um gol contra a Itália aos 46 minutos do primeiro tempo. A seleção haitiana de hoje não é mais aquela, mas presenteio a todos com Emmanuel Sanon, o herói nacional que conseguiu fazer aquele gol em Dino Zoff, apesar de a Itália, depois, ter feito três. Agora é o tempo de ligar a expectativa desse povo à realidade. “E desenvolver a província é justamente o caminho para a retomada deste país”.
Em janeiro não se dizia outra coisa: o terremoto marcará a retomada. A virada. Mas sem um plano de reconstrução, a chuva levará embora a escrita de Atis. Mas não basta escrever sobre o acontecido. Já se passaram 28 anos desde aquele dia em que João Paulo II deixou Porto Príncipe dizendo: “Aqui as coisas precisam mudar”. Sua voz ainda ecoa. Inspirando o trabalho diário de quem tenta acudir este povo desnorteado.
Falta tudo no Haiti. Mas não por culpa do terremoto. O desastre natural apenas agravou a inconsistência de um Estado inteiro. Um plano de governo não se sustenta. Falta tudo para a reconstrução, inclusive a ideia de como fazê-la. A comissão encarregada de administrar a emergência foi nomeada apenas em maio. “Os quinze bilhões de dólares de ajuda internacional são reais, mas o povo não vê a sua utilização”, diz Fiammetta, em viagem para a Cité Soleil. Zona vermelha. A mais perigosa. No entanto, a confiança do povo permite que a Avsi entre ali sem precisar de escolta. E levantar alguma coisa parece impossível. Todo dia, as crianças vão à escola. Sob tendas. Em fevereiro eram duzentas. Hoje, três mil. Enquanto isso, continua o programa alimentar, a formação sanitária. E o censo das crianças.
“Falta tudo. Não é possível iludir-se com alguma ajuda que seja capaz de resolver a situação”, conta Giacomo Bona, enfermeiro. “Nós atendemos todo mundo. Mas não curamos nada e ninguém”. Menos ainda aquela mulher que se aproxima do ambulatório, com queimaduras da cabeça aos pés. Na Itália, estaria internada. Mas nós só podemos dar-lhe um creme antibiótico, a ser espalhado pelo corpo. Três dias depois, ela retorna. “Não posso acreditar: você está sarando! Não fui eu quem a curou!” Assim é para qualquer outra ferida.
“O país renascerá da catástrofe”, diz Maddalena. “Não tenho nenhuma razão lógica para dizer isso. Mas aqui tudo grita a Deus para que transforme a situação atual em algo positivo”.
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