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Passos N.118, Agosto 2010

SOCIEDADE - PARA ALÉM DO ABORTO | PAIS E FILHOS

Uma vida perfeita

por Alessandra Stoppa

Andrea Bocelli agradece no palco à sua mãe por tê-lo posto no mundo, mesmo sabendo que ele nasceria doente. O que realmente acontece quando alguém opta por ter um filho com sérios problemas de saúde? Nesta reportagem, a experiência de pessoas que se viram mergulhadas numa realidade muito dolorosa. Pessoas que descobriram a vida verdadeira, a ponto de chegar a dizer: “Devo a fé ao meu filho”

Uma hora e meia de ecografia. E o médico não disse nenhuma palavra. Depois se sentou à escrivaninha e explicou tudo. E a vida leva um tranco terrível. No carro, voltando para casa, Paola chora muito, nem consegue acariciar a barriga de grávida: “Não era minha filha. Era um problema”. Cardiopatia gravíssima: válvula anômala, um ventrículo pequeno demais, expectativa de vida incerta, possíveis anomalias associadas.
De um lado, o diagnóstico. Do outro, “tudo o que a gente sentiu e acreditou até aquele momento”, os propósitos, os princípios. O choque abalou tudo.
Aquela filha com o coração doentio tinha apenas dezenove semanas. Não era e nem se tornaria famosa como Andrea Bocelli. Mas ele e ela têm a mesma história. Só há uma diferença: os decibéis da repercussão do acontecido: descobrir que a voz italiana mais famosa do mundo podia não ter existido, mas existe e é notícia; no meio do concerto, o tenor cego agradece à mãe por tê-lo posto no mundo, mesmo sabendo que ele nasceria doente. O assunto vai para os jornais. E levanta a questão sobre o sim “daquela moça corajosa”, como disse ele, sentado ao piano. O fruto é conhecido por todos: setenta milhões de discos vendidos, uma estrela na Calçada da Fama de Hollywood. Ouvindo-o falar, porém, percebemos que o seu agradecimento está situado num outro nível.

A filha de todos. Naquele dia de maio, para Paola foi apenas uma desafinação insuportável. Sua filha Maria nasceria gravemente doente. Os discursos não tinham força alguma. “A gente pensa que tem fé, mas diante da primeira provação a gente sente apenas o peso da dor e do medo”, conta Fabio, seu marido. O aborto não passou em nenhum instante pela mente dos dois. “Mas eu estava desesperada. Como enfrentaríamos aquela situação?”. Enquanto Paola se questionava, a notícia correu rápido entre os amigos. Orações, visitas ao hospital, peregrinações, oração do terço toda noite... “Eles nunca nos deixaram sós. Maria se tornou, imediatamente, filha de todos”. Um dia após o outro, foi aumentando a expectativa pela vinda dela, o foco deixou de ser a sua cardiopatia. Quando nasceu, já era amada. Não porque fosse sadia, pois o diagnóstico era preciso. “Eu a gerei em meu ventre, mas não fui eu quem a fez”. Paola contemplou-a com amor naquele momento. Como o fez onze meses depois, no berço onde veio a falecer.

“Está engatinhando?”. Ela fala dos dias em que o bebê ficou na UTI e chora, como uma mãe que perde um filho em plena juventude. Não existe idade. “Estávamos no hospital cercados pelos nossos amigos”, diz Paola. “Naquele dia vi com clareza a verdade de tudo o que tinha ouvido na vida. Acreditei que Maria cumpria o seu destino, e nós estávamos em paz. Era a graça de Deus sobre nós”.
A graça. A coisa mais suave e mais poderosa que pode entrar na vida de alguém. E entra através de um filho “errado”. Há famílias nas quais pode-se ver isso claramente. E vem a questão: como é possível que sintam uma felicidade tão grande em tal situação?
Os dois garotinhos da casa – João e André – também fazem perguntas. Do jeito deles, claro. Por exemplo, querem saber da mamãe se a irmãzinha está crescendo, lá onde está agora. “Ela está falando? Está engatinhando?” Paola precisa relembrar o dia daquela graça para se sentir segura. Seu marido contempla os filhos, ao levá-los para a cama: “Eles desafiam a nossa certeza. Se não nos renovamos todos os dias, estamos fritos!”. Mas Maria é “a nossa ligação com o Paraíso”. Arrancou essa família do tempo presente. Só lhes resta, agora, considerar a eternidade. “Com ela, nossos dias são marcados pela perspectiva da eternidade. O tempo não é uma condenação, ou uma coisa a ser suportada; ele nos foi dado para nos abrirmos”, diz Paola. “Digo isso porque não faço mais as coisas por hábito, mas para ser reconfirmada naquilo que vi”. Sentimos o golpe, como se o mundo estivesse caindo na nossa cabeça. “No entanto, estamos apenas aprendendo”.
Letizia acabou de amamentar Sara e fala daqueles “três segundos”, quando ouviu a sentença do médico: síndrome de Turner. Dois anos de casamento. Belos, perfeitos. Como a casa deles em Brianza, com a fachada colorida. Depois, os amigos casados começam a ter seus filhos. Belos e perfeitos. E eles, nada. “Mas que vida temos nós?”.
Depois do diagnóstico, os amigos procuraram dar uma força, e eles ali, sem entender nada, como se lhes faltasse o chão. “Que força eu vou precisar ter?”, pergunta-se Francisco. “A única coisa que eu gostaria de fazer, não podia fazê-la: voltar atrás, curar a doença da minha filha”. O pensamento mais atroz eles não conseguiam dizer nem um para o outro: “Esperar que a vida que Letizia traz no ventre morra”. Letizia odiava esse pensamento. Confessava-se.
“Os amigos, a Igreja, nos ajudaram a não ter medo de nada, nem mesmo do pecado, a sermos sinceros, a superar tudo”.
E assim aconteceu uma reviravolta na vida deles. “Os meses se tornaram belíssimos. Cheios de graça. Às vezes penso: era eu mesmo?”. Francisco olha para trás e não se reconhece. Aquela energia não era sua. Aquela demanda de significado não era sua. “Vivemos com uma intensidade incrível. Tínhamos sido transportados”.
A pequena Sara dorme no berço. Seu nascimento é o primeiro milagre. O segundo são as duas em torno daquela mesa. “Começamos a pedir que a esperança prometida para a nossa vida, através de Dom Giussani, se revelasse. E aconteceu”.
Francesco olha o monte de e-mails que guardou. Recebia diariamente dezenas deles, e respondia a todos, de amigos e desconhecidos que rezavam por eles. “Eu falava de nós, porque eu tinha necessidade da companhia deles, e eles, de serem provocados por aquilo que eu vivia”. Renasceram relacionamentos que tinham sido interrompidos. Outros se desenvolveram. “Quando acontece uma coisa que a gente não deseja, aí nos perguntamos: o que eu desejo de verdade?”. Ele voltava para casa à noite e via que a resposta estava sendo dada: sua mulher estava feliz, e ele, contente com a jornada vivida. “Agora só desejamos que continue essa mesma intensidade de vida”.

Alfonso e seus irmãos. Quem pode desejar algo que antes havia esconjurado? Deixar de lado a realidade assustadora e passar a viver a vida verdadeira, graças a dois olhos meio tortos, orelhas um pouco baixas, um narizinho achatado. Aconteceu com Pilar. Poucas palavras, em espanhol: “Todo o choro do primeiro dia se transformou em alegria plena”.
Ela e Juan Antonio têm cinco filhos. Jamais tinham passado por uma amniocentese. “Eles carregam os nossos genes, não a nossa alma: são como Deus quer que sejam, segundo Seu desígnio de Salvação”. Isso vale para o filhinho Alfonso e para todos. Mesmo ele sendo um down. Nasceu aos oito meses de gravidez porque se rompeu a bolsa do líquido amniótico. Pilar o abençoou e o beijou. Em seguida o médico confirmou o diagnóstico. Tomou a mão dela e disse: “Se Deus o mandou para vocês, é porque vocês formam o melhor lugar onde ele pode ficar”. Ela se lembra disso, e também de ter chorado até não ter mais força. Voltou para casa, mas o bebê permaneceu na incubadora.
No dia seguinte, levou os outros filhos para vê-lo. Eles talvez esperassem ver um monstrinho. Um a um foram passando diante do irmãozinho, e ela percebeu que houve uma transformação no olhar deles. Passaram-se sete anos. Os rostos deles mudando sempre. “Alfonso é um milagre para todos nós. Só por ser como é, rompe qualquer esquema de aparência, de expectativa futura. Ele nos faz descobrir o verdadeiro sentimento da vida”. A unidade na casa deles, em Móstoles, cidadezinha situada a vinte quilômetros de Madri, não é fruto de muita discussão à mesa. “Mas do fato de Alfonso estar ali conosco”.

Ponto luminoso. Visitados por uma grande graça. Como essa casa na zona rural, no Lodigiano, onde parece que acabou de acontecer um casamento. Há vibração no ar. Tem-se a impressão de que alguém ganhou o maior prêmio da loteria. No entanto, o elevador que desce na sala e os quartos espaçosos agora parecem inúteis. E da cadeira de rodas de Maddalena restam apenas os sinais nos batentes das portas, onde ela sempre esbarrava.
Sabina estava sozinha quando fez a ecografia. Compreendeu logo que havia algum problema, pela movimentação dos médicos: eram dois, depois três, depois quatro... Naquela mesma noite, foram jantar na casa de amigos. “Não podíamos estar em outro lugar”. Foram acolhidos com um buquê de flores. “Porque esperávamos uma menina. Não uma espinha bífica (coluna vertebral bifurcada)”, conta o marido Luca. Nas ecografias seguintes, o médico lhes mostrava sempre o rostinho de Maddalena: “Olhe como é linda! É um espetáculo!”. Como realmente foi a vida dela.
Para a medicina, não era uma vida. Nasceu muda, inseparável do cateter e da cadeira de rodas, no pescoço um buraco e a traqueostomia. Operada na cabeça dez vezes; na coluna, várias outras.
Mas Maddalena conheceu muitos lugares, fez tudo com sua mãe, seu pai, com Maria, Cate e Giovanni, seus irmãos. Aprendeu a falar. Incrível! As pessoas chegavam perto dela demonstrando pena, mas iam embora encantadas. “O problema físico de Maddalena não foi o ponto escuro, mas o mais luminoso da nossa história”, diz Sabina.
A dor veio depois. Quando ela morreu, com seis anos de idade. “Eu fiquei destruída. Eu disse ao padre que ela havia morrido. E ele: ‘que coisa linda!’ Naquele momento, desejei que me falasse mais. Porque havia mais a dizer. Maddalena sempre nos indicou isso”.

A pedagogia de Deus. Na casa de Enrico e Angela, a indicação fica por conta de “Paolo e Lele”. Silenciosamente ou com algum ruído estranho. São gêmeos. O cérebro danificado, por falta de oxigênio durante a gravidez, deixou marcas neles da cabeça aos pés.
Aquelas duas cabecinhas reclinadas, que não se levantavam para Angela, eram apenas uma “traição” de Deus. “Eu estava furiosa com Ele. Eu não podia mais ser feliz”. Porém, só lhe restava ficar ao lado deles. Comprou um caderninho onde escrevia os objetivos que deviam atingir. Mas eles não melhoravam. Um dia ela jogou fora o caderno. E então viu que eles mudaram depois que ela própria mudou.
Enquanto isso, seu marido Enrico sempre esstava presente. “Todo machucado pela vida”, como dizia. Até que uma noite resolveu deixar de olhar para o chão e levantar a cabeça. E viu Angela brincando no tapete da sala com os dois filhos, toda feliz. “Nunca vou esquecer aquele momento. Brotou em mim uma pergunta: quem deixava minha mulher tão feliz? Como isso é possível?”. Angela disse que bastou a pergunta. “Lembrava sempre daquilo que eu tinha ouvido tantas vezes: que tudo o que nos é dado é para que a vossa alegria seja plena. Desde o nascimento de Paolo e Lele nunca deixei de pedir que essa frase se tornasse verdadeira para nós. E se tornou. Comecei a ficar feliz ao lado dos meus filhos, ao realizar a minha vida com eles”. Duas crianças com 28 anos de idade, necessitados de tudo. “É a eles que devo a minha fé”. Eles são a sua ligação com o eterno.
Como a pequena Maria, para Paola e seu marido. “Vivemos uma coisa que não queríamos”, diz ele. “Mas foi ela que deu a verdadeira perspectiva à nossa vida”. Gostam de repetir a frase de que essa é a “pedagogia de Deus”.


"Uma mãe se doa ao filho para quê? Para fazê-lo crescer, não? Mas crescer para quê? Para que ele se torne ele mesmo, para que ele se torne homem! E depois? Na linguagem religiosa se diria: para redimi-lo. O que quer dizer que uma mãe redime o seu filho? Redimir quer dizer fazer ser, isto é, salvar; salvar quer dizer em latim conservar. Conservá-lo para quê? Para que se realize, para que seja completamente ele mesmo e, portanto, para que seja eterno".
Luigi Giussani, É possível viver assim?

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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