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Passos N.119, Setembro 2010

SOCIEDADE - COSTA DO MARFIM

Arrancados do nada

por Alessandra Stoppa

Um borracheiro, pai de família, que de repente perdeu tudo o que tinha. Mas foi justamente aí que sua vida renasceu. É a história de GREGOIRE AHONGBONON, que libertou e curou milhares de homens, desde o dia em que se viu diante de doentes mentais amarrados a troncos de árvores. Sua maneira de olhar para eles, amando-os como se ama um filho único, tornou-se um método. Algo que vem mudando a cultura de um povo

Faz-lhe um carinho na cabeça e pergunta: “Como está?”. O jovem fixa os olhos nele e não fala nada. Sua pele e seu olhar estão cobertos por uma nuvem de poeira sob o sol. Diz apenas que sente fome, não come há vários dias. “Meu nome é Gregoire. Quer vir comigo?”. Seu corpo treme, se levantaria num pulo se pudesse, mas não consegue nem se mexer. Está preso num tronco de árvore com ganchos de ferro, imobilizado desse jeito há três anos. Todo nu, as pernas finas parecem dois galhos secos.
O povo da aldeia se reúne em volta para ver a cena. Mas ninguém fala. Ecoam apenas as marteladas. Gregoire bate com força até quebrar os ganchos. Em dois, erguem o rapaz e o seguram em pé. Suas pernas bambeiam. Gregoire passa delicadamente uma espuma sobre todo o corpo dele, corta-lhe os cabelos empastados de pó. Veste-o com uma camisa. O rapaz se mantém em silêncio, não opõe resistência alguma. Gregoire fecha todos os botões da camisa, um a um, como se cuidasse de uma criança. Como se fosse seu filho único. De fato, é único como cada um dos outros quinze mil, ou mais, que Gregoire Ahongbonon carregou consigo.

O táxi da sorte. Esse jovem hoje trabalha no hospital, no setor de Radiologia. Quando Gregoire o libertou, ele era pele e osso. Cercado de mato e do fedor das fezes, era conhecido como “o louco”, alguém possuído pelo demônio. Por isso seus pais o amarraram como um escravo. Em certas regiões da África, essa é a sorte reservada aos homens com doença mental. São acorrentados, presos em troncos de árvore ou no chão. E deixados ali, por medo, sob a chuva e o sol durante anos, para espantar os espíritos maus. E eles aguardam que a morte os liberte. Não esperam, mesmo, que algum homem venha salvá-los.
Nem Gregoire esperava que um dia um desconhecido o acolheria desse modo, “como se me esperasse desde sempre”. Um padre, que “perdeu tempo me escutando e que assumiu os meus problemas como se fossem seus”. Um homem que se comoveu com ele e o arrancou do nada. Diz que nunca saberá explicar o que aconteceu em sua vida. “Mas aconteceu”, diz sorrindo.
Aconteceu que ele chegou a perder tudo o que tinha. Com 23 anos, era um dos pouquíssimos jovens da Costa do Marfim que possuía um carro. Era borracheiro. “Eu reparava pneus, só isso”. E o negócio evoluiu. Tanto que comprou quatro táxis e a riqueza se tornou sua referência e virou a sua cabeça. Abusou tanto que acabou perdendo tudo, no final da década de 1970. “Eu queria morrer, só pensava nisso. Não me matei porque senti que a minha vida não era minha. Foi Deus que veio em meu socorro”. Veio na pessoa daquele padre, que depois de pouco tempo o convidou para fazer uma peregrinação a Jerusalém.
Passaram-se 28 anos desde aquela viagem e do amor com que Deus o salvou de si mesmo. E a esse amor Gregoire entregou toda a sua vida. Por gratidão e para dar uma resposta à angústia que nasceu de uma frase ouvida em Jerusalém: “Todo cristão participa da construção da Igreja, precisa colocar a sua pedra”. Voltou para Bouaké, no coração da Costa do Marfim, onde vivia com a esposa e os filhos, para tentar compreender qual era a pedra que ele devia colocar na construção. Não tinha a mínima ideia. Na época, a única coisa que fez foi começar um grupo de oração com outras oito pessoas.

A pedra e o menino. Um dia, uma dessas pessoas lhe diz que em sua aldeia há uma criança gravemente doente, já não fala e não se alimenta mais. “Os pais são muçulmanos, mas se nos derem permissão, podemos ir lá e rezar pelo menino”. A família aceita e eles vão. No dia seguinte, a mãe do menino corre até eles: “Meu filho voltou a comer e a falar”.
Então pensou: talvez as pessoas do hospital também precisem das suas preces. E começam a ir lá para encontrá-los. “Está tudo aí”. Gregoire
debruça-se cada vez mais sobre eles. Como fez com aquele doente mental que vê vagar, sem roupa, pela rua. Ou sobre aqueles que encontra presos nos troncos das árvores. Começou a servir os doentes da maneira que podia. Estender-lhes a mão tornou-se a sua missão, o seu desejo. Até fazer com que sua vida coincidisse com as necessidades deles. “Que é uma só. É o que cada um precisa: ser amado”, diz.
Apenas um ano após a viagem a Jerusalém, fundou a Associação São Camilo de Lellis, para se ocupar dos que não podiam pagar o tratamento: os prisioneiros, os imigrantes da vizinha Libéria, os doentes mentais. Com o tempo, a Associação se tornou uma realidade importante e excepcional, com onze centros, entre acolhimento e reabilitação para pessoas com problemas psíquicos, espalhados pela Costa do Marfim e Benin; um hospital e vários locais de trabalho para a reinserção profissional, com cursos de diversas áreas, e uma fazenda agrícola.
Hoje diz que não foi ele que quis ou fez tudo isso. A sua pedra na construção foi apenas buscar a Deus. “E agora não sei como agradecer-Lhe por tudo o que fez acontecer”. Pelo fato de ter se reencontrado.

Um fato depois do outro. Gregoire é um homem simples, que só fala do que acontece. De sua boca não sai nada mais que isso: nem um pensamento supérfluo, um raciocínio abstrato. Em sua vida, todas as coisas nasceram como o hospital de Bouaké. Um fato depois do outro. Fica feliz quando narra isso, como se falasse de um presente que acabou de receber. “O primeiro centro de acolhimento para doentes mentais nós o abrimos no hospital da cidade. Além disso, os pobres procuravam por nós para chegar ao lugar onde seriam tratados gratuitamente; ali, se a pessoa não tem dinheiro, fica abandonada. Certa manhã, o diretor do hospital me chamou: as pessoas precisavam começar a pagar pelo atendimento, porque a estrutura vivia disso. E, além do mais, não havia mais espaço para o nosso centro. Então, fui ao prefeito e lhe pedi um terreno para o novo centro. Ele me disse: Pode procurar um na cidade”.

“Você me acompanha?”. Ele procura, mas o terreno que encontra não é mais da administração municipal. Convoca os membros da Associação, todas pessoas de expressão na cidade, e propõe a formação de uma delegação para ir conversar com o proprietário. Levanta-se o vice-prefeito: “Você está louco? Esse terreno está no coração da cidade e você quer consegui-lo de graça? Você está doente da cabeça”. Bate a porta e vai embora; os outros o seguem. Exceto um. Gregoire lhe diz: “Você me acompanha?”.
Vão ao proprietário, um velho senhor. “No trajeto fui pensando que se eu lhe falasse de um centro para a associação, ele não aceitaria. Eu devia falar-lhe da intenção de construir ali um hospital, e assim talvez o convencesse. A ideia do hospital me ocorreu assim”. Explicam ao proprietário a ideia. O velho abaixa a cabeça por alguns minutos. “Desde que vi o trabalho que vocês fazem, disse para mim mesmo que se fosse jovem, trabalharia com vocês. E hoje vocês me procuram para pedir isso. Não são vocês que me procuram, é Deus que veio antes de vocês. O terreno é vosso”. Naquele momento não têm nenhum dinheiro para iniciar a construção. Então Gregoire encontra um amigo que quer ajudá-lo, e se compromete a mandar-lhe os pedreiros. Depois, um outro manda um médico para trabalhar de graça durante dois anos.
Só lhe falta uma coisa: “A bênção da Igreja. Os padres não me apoiavam. Só restava pedir ajuda ao Bispo”. Um dia, o vê diante da catedral: não ousa dizer-lhe que pretende construir um hospital, lhe fala de um pequeno centro de saúde. “O Bispo me ouve, depois diz: ‘Prefiro que me fale de um hospital católico, não de um pequeno centro de saúde’. Ali estava a minha ‘autorização’. Hoje, o hospital é a única oportunidade para os pobres em toda a região. Fui eu que quis esse hospital? Não fui eu, não”.
Pensa nas palavras da esposa, Léontine. Para ela foi difícil. Antes, ele trazia os doentes para casa, que dormiam sob as árvores. Depois, saía de madrugada e voltava sempre tarde da noite. Os doentes e os pobres se multiplicavam, junto com os compromissos e os problemas. “No início ela não compreendia, mas o Senhor preparou-a antes e ajudou-a depressa”, diz Gregoire.

Sobre a moto, na guerra. Um dia, Léontine o chama: “Compreendi que é Deus que quer isso. Tudo o que te peço é que pague a educação dos nossos filhos”. Desde então, apoia-o em tudo, trabalha no mercado para sustentar a casa e administra os remédios da Associação. Os seis filhos também ajudam. A filha caçula, que tem vinte anos, decidiu fazer Medicina para ajudar o pai em sua obra.
“A obra não é minha”, repete incansavelmente. Quando lhe perguntam onde arruma força para levar adiante tudo, diz que é na Eucaristia diária. “E depois nunca estou sozinho: os loucos estão comigo, e eles sempre se envolvem”. Diante de um problema, dentre muitos, ele os convoca: “Não posso pagar uma pessoa externa para cozinhar para o centro, não sei como fazer. Peço que vocês rezem por essa intenção”. Um deles se levanta: “Você precisa saber de uma coisa: o nosso silêncio é uma prece por você. Porque eu que estou falando, quando estava abandonado nunca pensei que um homem poderia me estender a mão. Mas aqui há pessoas que falam comigo, que comem comigo”. Levanta-se também uma mulher: “Antes de ficar doente, eu era cozinheira. Então, nós mesmos podemos cozinhar”. A partir desse dia, todas as cozinhas são administradas pelos doentes. “É evidente que esse trabalho é Deus que o faz. Ele toma conta de tudo”.
Sabendo disso, ele consegue dormir à noite. Mesmo quando estoura a guerra civil e com os loucos sacia a fome da população em fuga, levando arroz em uma pequena moto, que passa no meio das balas disparadas pelos rebeldes. Ou quando as condições dos doentes são tão desumanas que sente vertigem, quando encontra “um homem acorrentado na madeira, apodrecendo ali”. É o que o mantém de pé, quando a realidade é dura demais. “Eu também tenho medo, e às vezes não compreendo. Tenho desejos aos quais Deus parece não responder. Mas a minha oração é fazer a Sua vontade, não a minha”. Há muitos anos, por exemplo, gostaria de abrir um centro em Abidjan, mas os obstáculos são muito grandes. “Vê-se que agora isso não está entre as preocupações d’Ele. A minha esperança é não perder essa confiança. De qualquer forma, não devemos ter medo: tudo o que vem de Deus atravessa as provações”.
Depois a Providência se apresenta em coisas muito grandes, mantendo a sua esperança. Como ver Cristine. Encontrou-a crucificada como Jesus, porque sofria de um retardo mental. Hoje, as correntes que a prendiam estão na igreja e ela é a cozinheira de um dos centros da Associação. Muitos loucos trabalham nos centros; todos eles são coordenados por doentes. Já curados.

Morrer como homem. Quando Marco Bertoli, psiquiatra italiano, descobriu a obra de Gregoire, ficou sem palavras. Tal como outros especialistas em serviços psiquiátricos e programas de reabilitação. “Sua abordagem tem conseguido resultados terapêuticos extraordinários. É uma intervenção de vanguarda: liberta os doentes, alimenta-os, trata deles, ensina-lhes uma profissão e devolve-os para suas famílias”, diz Marco, que há mais de dez anos acompanha Gregoire, ajudando e seguindo sua aventura.
“Não fazemos milagres”, rebate Gregoire. “O que abre horizontes em nossa obra é o amor”. Provas vivas de que o ser humano responde à caridade. E essa caridade está transformando a cultura, a mentalidade de toda uma população. No decorrer do tempo houve muitas mudanças: onde surgem os centros da São Camilo, as famílias não acorrentam mais os doentes mentais. Faziam-no por desespero e vergonha, ou os entregavam a seitas de origem protestante, que os torturavam para supostamente libertá-los do maligno, em troca de dinheiro.
Gregoire também estava envolvido por essa mentalidade. “Depois descobri Cristo nas mãos desses abandonados, e não tive mais medo”. Ele os vê e enxerga o céu. E eles se curam, ou morrem como homens. Amados. Como ele, que por meio deles alcança todos os dias o seu destino. E identificando-se totalmente com as suas necessidades, torna-se cada vez mais ele próprio.
Essa dedicação cotidiana gerou um método. É o método de um homem que jamais estudou, mas é mais eficaz que as técnicas eruditas dos especialistas. “O que Deus quer, Ele o faz, independentemente do que somos”, resume ele com precisão. Um médico de uma grande clínica do Benin chamou-o para que lhe explicasse como conseguiu curar um homem em quem todas as terapias possíveis haviam falhado. Confrontaram até os remédios: eram os mesmos. No final, o médico se rendeu: “É Deus que move vocês, para que o mundo abra os olhos. A São Camilo não é obra de vocês”. “É verdade”, diz Gregoire. “Eu só sei consertar pneus”.




O que é a "São Camilo"

Gregoire Ahongbonon (acima, com uma paciente) nasceu em Benin. Em 1971, migrou para a Costa do Marfim, onde foi morar em Bouaké. Ali, em 1983, fundou a ASSOCIAÇÃO SÃO CAMILO DE LELLIS. No início, era um grupo de caridade que oferecia tratamento gratuito a pessoas com distúrbios psiquiátricos. Hoje, administra seis centros de acolhimento para doentes mentais, cinco centros de reabilitação e várias escolas profissionalizantes, na Costa do Marfim e em Benin. Outros centros estão sendo construídos nesses países, e há projetos para Níger e Burkina Fasso. Em 1998, Gregoire fundou o hospital Saint Camille, que todo ano atende mais de trinta mil pessoas, a maioria infectada pelo vírus HIV. No mesmo ano, recebeu o prêmio internacional “Franco Basaglia”. Em 2005, Hope Amman, sua amiga e colaboradora, criou a fundação suíça St. Camille de Lellis, que apoia todas as iniciativas de Gregoire (mais informações em: www.fondazione-st-camille.org).

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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