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Passos N.120, Outubro 2010

IGREJA - A BEATIFICAÇÃO DE NEWMAN

O caminho de um homem íntegro

por Tommaso Ricci

Teólogo, poeta, filósofo. Depois que se converteu ao catolicismo, o pároco de Oxford sempre defendeu a (verdadeira) razão. Porque, como ensinava, para saber que a América existe não é preciso vê-la... Retrato do cardeal que se tornou beato

É uma atitude profundamente bela que a Igreja, no início do terceiro milênio de vida, beatifique alguém que, há quase um século e meio, trabalhou em favor da saúde mental de toda a humanidade, ensinando que não é preciso “necessariamente ir à América e tocar seu solo para ter certeza de que a América existe. É racional crer na sua existência”. Há também uma dose de graça no fato de que agora seja aureolado um homem que, naquele seu tempo que fervia de fanáticos racionalistas, explicou que “seria irracional eu deixar de acender a lâmpada porque não entendo como funciona a eletricidade”, contribuindo assim para manter acesa a confiança no bem do intelecto, que o século seguinte (o XX) dramaticamente deixou de lado. Esse homem, sacerdote, teólogo, filósofo, romancista, poeta, chamava-se John Henry Newman.
“Perdemos a nossa maior testemunha da fé... A história do nosso país registrará a partir de agora o nome de John Henry Newman como um dos maiores do nosso povo”. Abria-se e fechava-se com essas palavras a comovente homilia fúnebre que o arcebispo de Westminster, Henry Edward Manning, pronunciou no dia 20 de agosto de 1890, no Oratório de South Kensington, em Londres. Mas seria preciso estar presente, ser um inglês, para captar todas as ressonâncias, nuances, referências, o dito e o não dito, dessa homenagem póstuma. Nessas palavras de um Henry cardeal dedicadas a um outro Henry cardeal, ambos convertidos do anglicanismo, condensava-se um capítulo crucial da história da Igreja católica e de uma aventura humana inigualável.

O SANTO DO “TIMES”. “Quer Roma o canonize ou não – escreveu o jornal The Times no dia seguinte à morte do cardeal Newman, ocorrida em 11 de agosto de 1890 – ele será canonizado na mente de pessoas piedosas de várias confissões na Inglaterra”. Uma afirmação como essa – na nação em que, quatro séculos antes, um outro Henry (Henrique VIII) havia promovido um devastador cisma religioso, transformando o Old Merry England num bastião do preconceito anticatólico – soava assustadora. Desde o tempo de Elisabeth, os católicos ingleses eram desprezados, inclusive legalmente, como “filhos de um deus menor”. Como Newman conseguiu remar contra a corrente e ganhar o respeito intelectual dos britânicos, primeiro passo de uma lenta e gradual retomada dos direitos dos católicos nos territórios além-Canal da Mancha (aliás, ainda incompleta: Tony Blair teve que primeiro se demitir do cargo de premiê para depois converter-se à antiga fé)?
A resposta está na adamantina coragem e na cristalina limpidez da vida (espiritualmente turbulenta) de Newman. Numa Europa em que a única encruzilhada cultural consentida era ou a fé materialístico-científica ou a mística idealístico-imanentista, em que a existência da fé cristã era tolerada porquanto residual e irrelevante, e grassava um liberalismo religioso interessante ao poder político, Newman foi indelevelmente marcado, ainda jovem, pela evidência solar de duas realidades: “eu e o meu Senhor”. E, com essa alegre certeza da relação constitutiva entre o Eu e Deus, entre o homem e o seu Criador, enfrentou a longa caminhada da sua existência, que durou 89 anos.
Estudioso diligente e apaixonado, Newman começou a se preocupar com o penoso estado espiritual da sua Igreja de nascimento (a anglicana), fundada por um soberano que era escravo das paixões carnais e ávido dos bens da Igreja.
Defensor da irrenunciabilidade do patrimônio dogmático da Igreja, contra a diluição subjetivista dos mistérios da fé, Newman empreendeu uma verdadeira batalha cultural na defesa da Tradição apostólica; para ele, a questão da continuidade ininterrupta do cristianismo das origens até hoje era crucial. Sucessão apostólica e estrutura hierárquica eram fatores objetivos de garantia e precisavam ser protegidas das tendências “evangelísticas”, anarco-espiritualistas, cujo fervor religioso, aliás, ele admirava. O relaxamento doutrinal da Igreja da Inglaterra o desconcertava sobremaneira, como também o fato de ser submissa à Coroa, praticamente instrumentum regni de Sua Majestade e do Parlamento, que reduzia, aos seus olhos, os membros do clero anglicano, que eram homens de Deus, a meros dignitários da Corte, traindo assim a dimensão divina da realidade eclesial.

ENTRE AMIGOS. Newman amadureceu muito cedo a vocação para pastor anglicano e para o celibato (esta, uma escolha já um tanto démodé, pelo clima liberalizante reinante) e rapidamente fez carreira acadêmica em Oxford, isto é, no centro da cultura anglicana. Graças à sua sabedoria histórico-teológica, à sua natural gentileza, ao seu talento retórico, seus sermões eram muito concorridos, apreciados por colegas e alunos. Muitos desses ouvintes depois se converteriam ao catolicismo. Como o acima citado Manning, que, como zeloso anglicano, a certa altura foi encarregado de refutar Newman, já católico, mas terminou por se converter a si mesmo. Newman se tornou o suporte do chamado “movimento de Oxford”, um grupo de amigos (Pusey, Froude, Keble, Palmer), todos fervorosos anglicanos, preocupados com o desvio liberal da sua amada Igreja, e todos decididos a reforçar os elementos doutrinais “catolicizantes” do anglicanismo. Para Newman, em especial, essa restauração e renovação espiritual deviam conferir à Igreja da Inglaterra o status de via media do cristianismo, isto é, ponto de equilíbrio entre os estímulos centrífugos cada vez mais irrefreáveis do protestantismo e o retrógrado centralismo católico-romano. Mas sua perspicácia e sua honestidade intelectual o levaram para um caminho diferente.

SEUS PADRES. Estudando a história cristã dos primeiros séculos, quando a Igreja era indivisa, e em especial a crise ariana, Newman notou a semelhança entre o arianismo do séc. IV e o liberalismo religioso do séc. XIX, e com crescente inquietação notou que os Padres (Atanásio, Cirilo, João Crisóstomo, Ambrósio, Agostinho), em suas batalhas contra as heresias, jamais haviam proposto uma solução “mediana” entre as facções teológicas contrapostas; antes, haviam sustentado com inflexível energia as razões da ortodoxia. Hoje, esses gigantes da fé estariam com Roma e não com Canterbury – foi essa a sua amarga descoberta. “Os Padres me fizeram católico”, escreverá anos depois. Mas, com isso, sua trabalhosa, generosa e nobre tentativa de conciliar a fé anglicana com a intacta verdade petrina naufragou. Agora, aos 44 anos, cabia-lhe saltar para o outro lado, deixar o trabalho acadêmico e pastoral, abandonar os velhos amigos – que nunca deixou de estimar, dado que para Newman a amizade era sagrada – e abraçar uma nova família, a católica.
No dia 9 de outubro de 1845, Newman recebeu o Batismo das mãos do padre Domenico Barberi, filho da Ordem passionista, fundada por São Paulo da Cruz, que tanto havia orado e sonhado com a conversão da Inglaterra. Muitos jovens e brilhantes espíritos que gravitavam em torno dele e em Oxford o seguiram no dramático passo. De repente, o catolicismo havia readquirido interesse nos círculos intelectuais ingleses.
Mas isso não significou, para Newman, serenidade e paz. Da parte dos radicais anglicanos lhe foram dirigidas acusações de deslealdade e falta de sinceridade; na Cúria vaticana, por longos anos permaneceu no ar a suspeita sobre a “confiabilidade” da sua conversão. Aos primeiros, padre Newman – que nesse meio de tempo optou por se tornar oratoriano, em honra do venerado são Felipe Néri – respondeu publicando em 1864 a Apologia pro vita sua, uma belíssima autobiografia que relatava o seu itinerário espiritual, um pouco a versão moderna das Confissões de santo Agostinho. Para os segundos, precisou de mais tempo: muitos convertidos ingleses adotaram posições rígidas, tachadas então como “ultramontanas”, e a eles Newman, embora respeitado por todos, aparecia como intelectual “demais”, tranquilo demais, ainda influenciado pelo velho liberalismo anglicano.

DOIS BRINDES. Eram anos muito agitados na casa católica; pacatos raciocínios eram, às vezes, vistos como intempestivos academismos, quando não concessões. O papado era vítima de ataques virulentos e o Concílio Vaticano I havia proclamado a infalibilidade do Papa, que Newman (diferentemente de Manning) não considerava oportuna, mas que depois defendeu arduamente, dando-lhe uma interpretação própria com o famoso (e, às vezes, mal-entendido) texto sobre o brinde primeiro à consciência, depois ao Papa.
Newman sofreu em silêncio no Oratório de Birmingham e na fidelidade (“mil dificuldades não fazem uma dúvida”, escreveu) todas as incompreensões, que, porém, se dissolveram triunfalmente em 1879 com sua elevação cardinalícia, decretada pelo papa Leão XIII. No discurso de aceitação disse: “Durante 50 anos resisti, com todas as minhas forças, ao espírito do liberalismo religioso e jamais a Igreja teve, como hoje, a necessidade urgente de opositores a isso, quando infelizmente esse erro se estende como uma rede por toda a Terra”.
A beatificação querida e celebrada pelo papa Ratzinger é a comprovação desse profético juízo de Newman.

As etapas de uma vida1801 John Henry Newman, primeiro de seis irmãos, nasce em Londres no dia 21 de fevereiro, na família de um banqueiro.

1817 Entra no prestigioso Trinity College de Oxford.

1825 No dia 29 de maio é ordenado sacerdote pela Igreja Anglicana.

1832 Em Roma, encontra-se com Nicholas Wiseman, que se tornará arcebispo católico de Westminster.

1841 Por causa de um ensaio sobre os artigos da Igreja anglicana sob a ótica católica, é censurado e amadurece a conversão ao catolicismo.

1847 Entra para os Oratorianos, fundados por são Felipe Néri. Em 1848 funda o primeiro Oratório na Inglaterra.

1854 Torna-se reitor da Universidade Católica de Dublin, até 1858.

1879 Leão XIII eleva-o a cardeal, reconhecendo nele “gênio e doutrina”.

1889 No Natal, celebra a última missa em público. Morre dia 11 de agosto de 1890.

1991 Newman é declarado Venerável por João Paulo II.

2010 No dia 19 de setembro o papa Bento XVI o proclama beato

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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