O senso religioso. A confiança. E os “outros”. Fatores sem os quais gestão financeira e empresa simplesmente não existiriam. ANGELO ABBONDIO explica que peso têm em seu mundo a fé e a caridade
“Leia isto. Se entrássemos num escritório profissional, alguns anos atrás, em nove sobre dez deles encontraríamos esta frase emoldurada e presa na parede”. Trata-se de uma citação de Luigi Einaudi, economista de valor, além de cidadão emérito e presidente da República. É longa, mas vale a pena citá-la quase inteira: “Milhões de indivíduos trabalham, produzem e economizam, apesar de tudo o que nós possamos inventar para perturbá-los, atrapalhá-los, desanimá-los. É a vocação natural que os empurra; não somente a sede de lucro. O prazer, o orgulho de ver a própria obra prosperar, adquirir prestígio, inspirar confiança em cada vez maior número de clientes, ampliar a produção, constituem uma mola de progresso tão poderosa quanto o lucro”. Angelo Abbondio, 68 anos, fundador da empresa Symphonia, uma sociedade gestora de recursos financeiros, pega a folha, apoia as costas na poltrona da sala de reuniões, bem no centro de Milão, e sorri: “Na minha opinião, é disso que Carrón falava: o coração”.
É isso mesmo. Basta cavar um pouco mais fundo para descobrir que antes do individualismo, o mercado – à primeira vista, o reino absoluto do interesse privado – é uma outra coisa. Antes de tudo, é uma relação: o próprio ato de comprar/vender implica, pelo menos, uma ligação entre quem vende e quem compra. E é uma ligação que implica algo mais: confiança mútua, por exemplo. E uma expectativa sobre o futuro. Coisas sem as quais o mercado não só não funciona, simplesmente não existe. “É verdade”, diz Abbondio. “Mas eu não falaria só do meu ambiente: vale para o empreendedorismo de modo geral. Mesmo entre nós, operadores, há a satisfação de criar algo. O cliente vem a mim, me confia as suas economias e me diz ‘fique atento’, me pede para cuidar dele, não apenas do seu dinheiro.”
Para o senhor que efeito produziram aquelas palavras de Carrón?
Ele tem razão. O individualismo puro é um absurdo. Só o avarento das fábulas poderia viver assim. A pessoa pode ganhar todo o dinheiro do mundo, mas se o retém só para si, o que isso lhe adianta? E, depois, quando se tenta levantar uma empresa, há tantas dificuldades que precisamos necessariamente ter um estímulo que vá além do mero lucro. Dito isso, numa empresa podem existir muitas formas de individualismo. Se o empresário cria algo, por exemplo, mas não consegue formar pessoas atrás dele, com o tempo tudo vem abaixo. Isto vale para as empresas e para qualquer obra: se não compartilhamos o motivo que nos move, a coisa não se sustenta... E também isso é individualismo. Sabe, uma vez perguntei a Dom Giussani: “Mas qual a diferença que existe entre alguém que faz uma obra movido pela fé e alguém que a faz para realizar o bem?”. Então ele me respondeu: “nenhuma”. E eu me tranquilizei. Depois, aos poucos, fui percebendo que esse era o método dele: não dar a explicação, mas levar a entender com o tempo. Entendi, no curso dos anos, que se fizermos uma obra movidos pela fé, depois outros se juntam e a fazem crescer. E a levam adiante, quando não estivermos mais aqui. Hoje, vemos jovens chegando às empresas para trabalhar como estagiários. Aquele que já está empregado, em vez de explicar a ele as coisas, faz no seu lugar. É um erro fundamental.
Quer dizer que, numa empresa, como em qualquer obra, pode haver um clima educativo, de apelo contínuo à pessoa...
Sim. Aliás, sem isso há o risco de se colher prejuízos, se a realidade lhe manda sinais diferentes e você não os capta, convencido de que é o melhor.
Pode nos dar exemplos?
No meu setor, há dois tipos de análise. A análise fundamental: lemos o balanço de uma empresa e, a partir dos números, tentamos entender se ela vai bem, se o próximo ano será melhor ou não. Depois há também a análise técnica, dos preços de mercado. É só um gráfico, um sinal. Algo que não fala por si. Bem, se voltarmos para trás, um ano e meio, antes da crise, víamos os gráficos dizendo o contrário da análise fundamental. Eles estavam apontando para baixo. E era uma coisa generalizada. O gráfico não fala. Não explica. Mas é um sinal. Só que precisamos aprender a lê-lo.
Outro elemento indicado por Carrón: “O erro fundamental do individualismo é a ilusão de que podemos ser felizes por acúmulo”. Em suma, uma espécie de infantilismo. Algo que contraria o fundo do desejo humano, como aquele que “ganha dinheiro para ganhar dinheiro”. Porém, não é pedido que censuremos o desejo, mas sim que mergulhemos fundo, para entender a verdadeira natureza dele: é como se nos fosse perguntado: “mas o que você deseja de fato?”. Para o senhor, o que significa esse chamado de atenção?
É verdade que apesar dos resultados alcançados, falta sempre algo para sermos completamente satisfeitos, e nascem sempre novas preocupações. Isso me remete a uma frase cujo autor não me lembro, mas que me parece atualíssima: “As coisas são pesadas e opacas; não esperemos que a nossa tranquilidade dependa da mudança delas, mas que a nossa mudança as transfigure”. Frente aos problemas, uns creem que sempre poderão resolvê-los e encerrar a questão. Mas no dia seguinte, aparece outro tipo de problema. Se não mudarmos... Atingimos uma meta, mas ela não nos basta. Atingimos outra, e ainda não basta. E outra, e outra... Como enfrentar isso? Admitindo que a única coisa que conta é a fé.
Carrón indica um outro “paradoxo da modernidade: quanto mais se encoraja o individualismo, mais necessário se torna multiplicar as regras para manter sob controle o lobo que cada um de nós carrega dentro de si”. No setor financeiro também é assim: quando eclodiu a crise, houve muitos apelos por novas regras, como se fossem a solução de todos os males...
A regra pouco ajuda. Inclusive porque, em geral, é feita por burocratas que conhecem pouco a realidade do mercado. E há sempre os que se apressam em descobrir como driblá-las. A verdade é que não existe “atividade financeira ética”, e sim pessoas. Quem pode dar a um outro o rótulo de “ético”?
Vamos à segunda parte do discurso: a gratuidade e a fecundidade da presença de Cristo como motor da ação.
Aí, já tenho mais dificuldade. Se tivesse esta fé, o que ainda não tenho, certamente diria que é assim mesmo. Mas a caridade, para mim, é um assunto difícil. Fico ainda com aquela pergunta feita a Dom Giussani: qual a diferença que existe entre quem faz as coisas por Cristo e quem as faz sem a caridade?
Mas por que o senhor decidiu fazer o bem? Criou uma fundação (a Umano Progresso) com colegas que operam na Bolsa. Financiou a igreja que foi construída em Salvador (BA), em Novos Alagados. Apoia várias obras. Por quê? De onde vem esse impulso?
Um pouco do meu pai, que tinha sete filhos, mas sempre se preocupou em ajudar os outros. E um pouco porque, a certa altura, eu e minha mulher concluímos: “Mas o que fazer com tudo isso que recebemos? Vamos construir algo para os outros”. Mas falar de caridade ainda é difícil... Até porque, provavelmente, será isso mesmo, embora eu não o perceba. Veja, para mim é instintivo, frente a uma necessidade, eu me mexer. Mas essa instintividade, que vem da minha natureza, é caridade? Aliás, Carrón também fala da “graça da fé”... No entanto, uma diferença é clara, inegável.
Qual?
Vemos obras que fazem absolutamente as mesmas coisas. Mas, onde há a fé, percebemos que há a capacidade de perdurar. Onde não há, aí já aparece a dúvida sobre até quando vai resistir.
E isso depende do que, na sua opinião?
O homem que tem fé é diferente, mesmo quando faz as mesmas coisas que os outros. Quem está perto dele percebe, pois há uma modalidade de agir, um coração, um empenho diferente, que os fazem perceber que têm a mesma dignidade de quem os está ajudando.
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