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Passos N.112, Fevereiro 2010

MOVIMENTO - ÁFRICA

Como nasce a criatura nova

por Davide Perillo

Deo tem vinte anos e quer “viver como um monge fora do mosteiro”. Bimbo, depois de uma “vida de morte”, pediu o batismo. E há ainda as histórias de Mireille, de Rose... É o espetáculo contínuo do eu que renasce. Os responsáveis de CL de todo o continente africano se encontraram em Nairóbi para três dias de trabalho e amizade. Nos fatos e nos rostos, a descoberta de que o cristianismo é um desafio. Não à cultura, mas ao coração

No painel do carro do taxista há um adesivo: “The best in life is to have Jesus”, o melhor da vida é ter Jesus. Quem sabe se ele está pensando nisso enquanto fica parado, sereno, no trânsito da Outer Ring Road, perto do aeroporto. E quem sabe se o rio de vida que corre ali fora, além da janela do carro, já pensou nisso. Calçadas de barro e banquetas improvisadas. Barracas e tijolos quebrados. Filas de mulheres que caminham sobre as vielas de terra batida, logo depois da faixa de asfalto. Alguém corre. Outros esperam pegar o matatu em movimento – vans que servem de ônibus. Todas, faces jovens. Todos, corações à espera d’Ele.
Karibuni, bem-vindos a Nairobi, Quênia. Quatro milhões e meio de almas, incluindo as favelas, entre arranha-céus e pés descalços, carrinhos de mão e pickups de marca indiana. Olho em volta e penso que aqui, durante três dias, baterá o coração da África. Não é presunção: se o melhor da vida é estar com Jesus, cento e dez pessoas que chegam de meio Continente para se aprofundar no relacionamento com Ele é algo que leva esperança a todos. Trata-se da ARA, Assembleia de Responsáveis da África, encontro nacional do Movimento. Evento que acontecerá no Dimesse Center de Karen, dirigido por freiras italianas. Chegamos um pouco ofegantes, depois de um rápido giro pela nova Igreja de São José (confiada a padre Alfonso Poppi e à Fraternidade São Carlos Borromeu) e pelo polo educativo que se abre em sua volta: as escolas São Kizito, Cardeal Otunga, Urafiki-Carovana e a creche Emanuela Mazzola. Mais adiante, na favela de Kibera, está a Little Prince,. Tesouros muito grandes para serem reduzidos a poucas linhas: vale a pena voltar a elas, e o faremos.
Por enquanto, aqui estamos, recebendo pessoas de doze países. Da Uganda, chegam de ônibus: 13 horas de estrada e de buracos. Da Ruanda, ao contrário, não conseguiram vir: um incidente no aeroporto cancelou os voos. No fundo do salão, a imagem do Ícaro, de Matisse. Na lateral, uma grande tapeçaria: Jesus com a Samaritana. A sede do coração e o único encontro que pode saciá-la, para sempre. Impossível não pensar nisso, quando ouvimos o início direto de Carrón: “Este, não é o encontro de uma associação. O que está no centro é a pessoa. Que grita. Pede. O objetivo é nos ajudarmos a entender a importância da proposta que o Movimento faz a todos nós, agora”. Não uma explicação, mas um testemunho, “porque é nesse tipo de amizade que podemos ser companheiros ao destino”. É um trabalho, porque, se paramos na reação, no “sentimental impact” (o inglês soa com um sotaque espanhol), tudo parece desaparecer, até o fato mais imponente. “Porém, eu desejo voltar para Milão tendo dado mais um passo. Quero ver a Sua vitória.”

NA CASA DE MIREILLE. Pronto, o desafio está lançado. Carrón o repetirá muitas vezes. Com palavras suas (“o cristianismo pode realmente gerar uma criatura nova?”), ou com a pergunta de Nicodemos: “Como um homem pode nascer de novo quando já é velho?”. Começa a assembleia. Em pauta, a experiência. Exemplos simples. Fatos. Anne, de Uganda, conta sobre um acidente de carro, a raiva, o desconforto. E a serenidade que chega só depois que um amigo a impele a ir além: “Deus te salvou”. “Você quer dizer que o juízo sobre a realidade não é sempre contemporâneo?” “Não, sempre é. Até que aconteça o juízo, não há experiência.” E este juízo, que chega até o fundo da realidade, muda tudo. Mas, precisamos de alguém de fora que nos ajude a julgar? A resposta é convicta: “Não! Temos dentro de nós a capacidade de julgar. E o instrumento é o coração. Precisamos ser educados a usá-lo. É fundamental, porque a dignidade da sua pessoa está aí”. Chovem perguntas: da Nigéria, do Quênia... Como fazer algo a mais pelo Movimento? “Você o faz, vivendo, sendo você mesmo. O Movimento é para mim. O problema não é fazer o Movimento: é vivê-lo.”
Mireille, do Camarões, dá seu testemunho. Trabalha na Obra Social, com padre Maurizio Bezzi. Dão assistência a meninos de rua. “Sou casada há dez anos, mas não tenho filhos.” Para a cultura do lugar, é mais do que uma cruz. É sentir a pressão do clã, da tribo, dos familiares e de seu marido que é incitado por eles a se separar e casar com outra. “As provas são sinal do Mistério. Mas por que o Mistério se faz tão próximo de mim?” Coisa de arrepiar. Mas ela ainda acrescenta algo depois. “Desde que comecei a viver com essa consciência, olho para aqueles meninos de rua assim, como sinal da presença de Cristo. E meu marido, em vez de me deixar, está se ligando mais a mim, porque fica fascinado com a minha maneira de estar com eles.” É aí que chega o primeiro ponto de virada. “É possível que o cristianismo gere uma pessoa nova? Uma nova cultura? Se não fazemos experiência disso, se não chega a tocar o profundo do nosso ser, para que serve? Seria apenas um ornamento religioso que toma o lugar de outros.” E, ao contrário... “É apenas o reconhecimento de uma Presença que muda tudo, não o nosso erro ou a nossa tentativa.” Como aconteceu com Samuel, que está na Uganda por causa de um trabalho para a Fundação AVSI, que conta sobre um dia difícil em que os problemas se dissolveram ao chegar em casa e receber um abraço da filha. Uma presença.
Pausa. Almoço em uma mesa em forma de “U”. Um espetáculo. As cores dos vestidos do Camarões e o branco das roupas etíopes. As histórias de Fiorenza, engenheira italiana que vive aqui e trabalha na Nokia, e o comentário de Vivian, que fala de algo que a tocou inesperadamente: “O desejo do homem é igual em qualquer lugar”. Até para os “meninos da Rose”, um espetáculo no espetáculo. E não há nada de sentimental.
Antes de recomeçar a assembleia, Rose – enfermeira que se dedica ao Meeting Point de Kampala cuidando de mulheres aidéticas – conta a história deles. São alguns dos tantos jovens recolhidos na rua em Kampala, normalmente órfãos ou abandonados pelas famílias e literalmente criados pelas mulheres do Meeting Point. Alguns deles, depois da visita de Carrón à Uganda, há dois anos, pediram para ser batizados. “Vieram pedir um atrás do outro. Eu perguntava: por quê? Vocês o viram apenas por meia hora. Ele não falou sobre o Batismo. O que aconteceu ali? Eles responderam: foi a maneira como nos olhou.” Depois, é a vez deles falarem. De Bimbo, que agora se chama Luigi, e que fala “de uma vida de morte”: perdeu os pais, queimados em um ônibus, e logo depois, morreu o tio com quem ele tinha ido morar. “Pensei que eu também estava morto. Porém, estava vivo. Mas entendi isso encontrando elas. Ali, entendi que a minha vida tinha um valor.” Ele diz isso com palavras, mas pode-se vê-lo em seu rosto. E entende-se muito bem o que quer dizer quando fala que “agora a minha vida consiste na Escola de Comunidade”, a ponto de sair da escola onde o impediam de fazê-la.

O EXEMPLO VIVO. Também para Deo – apelido de Deogracious – o encontro com Rose foi decisivo: “Ela amou algo em mim que eu não havia visto”. A partir daí, começou uma aventura: a amizade com os outros, a viagem de Carrón... E a decisão de levar a Kampala uma das exposições do Meeting de Rímini – a Mostra sobre os Beneditinos –, “que me ajudou a entender tudo: a vida pode começar a partir da fé. Foi aí que nasceu uma pergunta: como eu também posso ser monge fora do mosteiro?”. Olho para ele e respiro. Dever ter por volta de vinte anos. “Agora sei que há algo maior que as circunstâncias. Há uma novidade na vida. Esta é a minha experiência.”
“Estão vendo? É possível”, retoma Carrón. “Eles são um exemplo vivo de como o cristianismo pode acontecer na África de maneira real. Todos aqueles que falaram hoje têm culturas diferentes, mas são o primeiro sinal de uma cultura nova. Devemos parar de falar de cultura como se fosse um problema. O ponto é: Cristo é uma experiência de vida potente a ponto de ser o que mais corresponde ao meu desejo? Esta é a pergunta. O diálogo do Mistério é com o coração, não com a cultura. O desafio é ao coração. E não há cultura ou poder que possa evitar isso.” É impressionante como Cristo opera também além do que podemos entender: “Porque eu mesmo, quando encontrei esses jovens, não me dei conta do que estava acontecendo. E não tinha programado isso antes. Estou aprendendo agora, com eles”.

O CHEFE DA TRIBO E DEUS. Recomeçam as perguntas e respostas. Temas? O desejo de que a comunidade cresça (“relaxem, não depende de vocês: o problema da minha felicidade é que eu ame Cristo, não que sejamos muitos”), a fraternidade (“a questão não é a amizade, mas se caminhamos para o mesmo destino: se é assim, no meio do caminho pode até ser que nos tornemos amigos...”). E o desafio das circunstâncias. “Por que, muitas vezes, me sinto derrotada?”, pergunta Margaret. A resposta de Carrón é uma confissão de coração aberto: “Desde que me tornei responsável pelo Movimento, me aconteceram muitas coisas. Encontrava objeções, ou pessoas que não entendiam. E voltava para casa dizendo: como posso ajudá-los a entender? O que devo fazer para que seja mais claro? Depois, comecei a reconhecer que estas circunstâncias eram um desafio. Aos poucos, me levaram a fazer um trabalho. Comecei a falar sobre o que estava aprendendo das circunstâncias. E elas se tornaram um fator essencial da minha vocação. Cada circunstância tornou-se amiga. Sem elas, nunca teria crescido assim em minha consciência. Mas para que seja assim, precisamos decidir. Precisamos olhar o que acontece como sendo uma maneira com a qual o Mistério nos chama. Não depende das circunstâncias: depende de nós”.
Uma decisão. Depois, no intervalo, olhando em volta, vê-se que o jardim se enche aos poucos e muitos se juntam em grupos para preparar uma noite de cantos. Cruzam-se os olhares risonhos e a vida renascida de Vicky. Ouve-se a risada de Carras, que vem à África há anos para viver esta amizade. Conhece a todos e ama a todos, um por um. Vê-se padre Tiboni, um pouco encurvado, mas com o olhar mais jovem do que nunca, absorto em observar os frutos crescidos do encontro que há anos fez com dom Giussani: se CL na África tornou-se isso, muito é, também, por causa dele. Ouve-se padre Giuseppe Panzeri, capuchinho de um convento no Camarões, que conta sobre o que um amigo lhe disse: “Eu era filho de um chefe de tribo: agora, sou filho de Deus”. Uma decisão, de fato. E uma preferência.

“EM QUE LÍNGUA FALA O MISTÉRIO?” A noite é daquelas que ficam marcadas no coração. É tudo muito simples: cada país leva algo da sua tradição. Espera-se por canções tribais e danças ritmadas. Elas chegam, e são muito bonitas. Mas, antes, os ugandenses cantam juntos um canto italiano de alpinistas: La montanara. Um vislumbre do coro que os jovens montaram em Kampala, para divulgar os cantos que tocaram seus corações. Rose contou que, a um certo ponto, disse: meninos, aqui é preciso traduzir palavras, senão as pessoas não entendem. Eles responderam: “Rose, mas, quando o Mistério nos fala, em que língua o faz?”. É isso o que quer dizer que “o coração do homem não tem raça”, como ela mesma disse, diante do Papa, no recente Sínodo africano.
Domingo de manhã. Depois do café, um bate papo no jardim. Algumas crianças passam perto, rápidas como uma flecha. São os filhos de Romana e Joakim, responsável pela comunidade do Quênia. Aquele que antes de ontem, enquanto passávamos pelas salas de sua escola recém-inaugurada, nos lançou para além do reboco fresco: “Chego aqui esta manhã, vejo esta beleza e me pergunto: quem a fez? Quem a está confiando a mim?”. Chega o momento da síntese. Poucos pontos, sintéticos, nascidos daquilo que se viveu nos últimos dois dias. “O cristianismo está acontecendo, aqui. Não como discurso, mas como experiência. E o ponto de partida é exatamente este: é um acontecimento. Cristo está presente, é contemporâneo a nós.” Segundo ponto: diante do Fato, um coração que o reconheça. “O coração é a nossa dignidade, porque é instrumento de conhecimento. O eu histórico é um conjunto entre o coração e a cultura na qual cada um nasce. Se não conseguisse ‘perfurar’ a cultura para chegar ao coração, o cristianismo seria inútil.” No entanto, acontece. “E não há cultura ou poder que possa evitá-lo, como vimos nestes dias. Todos fomos desafiados pela beleza vista aqui. O problema é a nossa resposta a este encontro.” Quando esta Presença é reconhecida, acontece aquilo que parecia impossível. “Tudo muda. Esta é a vitória de Cristo. Os primeiros falavam de ‘nova criatura’. Mas nós vemos a mesma coisa aqui, na nossa mudança. E isso indica a Sua contemporaneidade.”
Assim, chegamos ao último passo: a missão. “Não é um acréscimo à vida. Está na nossa vida cotidiana. Como para o marido de Mireille: vendo-a viver, tocado por esta novidade, em vez de ir embora não pode deixar de sentir-se atraído mais por isso do que pela pressão de sua cultura. Não devemos fazer CL na África. O Movimento aqui existe se vocês viverem assim. Simples, como um ‘sim’. O nosso problema é pertencer a Cristo. Dizer sim a Ele. O que o Mistério fará com este ‘sim’, é um problema dele.”
Despedidas. Abraços. Mas ainda não terminou. Antes de tomar o avião há tempo para ir ao encontro de Carrón com toda a comunidade do Quênia, no International Education Center. Serão pelo menos 400 pessoas. Perguntas e respostas que alcançam a mesma profundidade dos dois dias anteriores. E sai-se do encontro com aquelas palavras das Escrituras ressoando dentro como nunca antes: “Felizes os pobres de espírito...”. A simplicidade do coração.
Último jantar africano. E primeira ocasião para ir mais a fundo no tesouro que tivemos diante dos olhos. O que vimos nestes dias? O que aconteceu? Matteo, visitor de Serra Leoa, usa quatro palavras: “A exaltação do eu”. Verdade. Pensamos nisso enquanto nos dirigimos ao aeroporto. Nada de táxi, desta vez, mas alguns Jeeps cheios de amigos quenianos de nascimento ou adoção: Joakim, Leo, Antonio... Nenhum adesivo no painel do carro, mas o taxista tinha razão: o melhor da vida é estar com Jesus.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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