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Passos N.112, Fevereiro 2010

UM DIA... COM ROSETTA BRAMBILLA

Gerados por um olhar

por Silvana Ninivaggi

Uma escolinha de futebol na favela. Creches em que as mães também são acolhidas. E crianças sem família que se tornam professores. De uma fábrica da região italiana da Brianza até o abraço de Dom Giussani que a trouxe ao Brasil. E aqui, há quarenta anos, sua casa está sempre aberta. E sua vida toma forma a partir daquilo que acontece nas ruas

A cidade não se chama Belo Horizonte por acaso. Entre as ladeiras que cortam as favelas, abrem-se paisagens imensas. Sobre a cabeça, movem-se nuvens que parecem desenhadas em aquarela. Vamos à missa. É o único compromisso fixo do dia de Rosetta, às sete e quinze da manhã. Fixo, por assim dizer. Vamos à missa “acompanhando” padre Pigi Bernareggi, que todos os dias a celebra em uma pequena igreja, diferente de todas as espalhadas pelo bairro. Na saída, uma saudação rápida àqueles que também estão ali apenas para trocar algumas palavras com ela. Dona Rosa, é assim que a chamam nas favelas. Rosetta Brambilla tem sangue italiano, mas já é mais brasileira que os brasileiros.
Pequena e forte, fuma péssimos cigarros e vive aqui há quarenta anos. Tinha dezessete anos e trabalhava como ceramista quando, num domingo à tarde, em uma festa, encontrou o Movimento. “Eu não gostava da minha vida. Comecei a amá-la e a me amar, quando Dom Giussani me olhou. Ele acreditou em mim, que não era nada.” Desde então, mantém um pedaço de papel no fundo da agenda com uma frase: “Como podemos nos divertir? Prestando atenção em nós mesmos e nos outros”. Esta frase estava escrita em um panfleto que convidava para um passeio às montanhas. Olha para este pedaço de papel, já descolorido, como a coisa mais querida. “Tudo o que aconteceu aqui no Brasil nasce do ‘sim’ dito todos os dias, inclusive às festas, aos passeios. Foram os ‘sim’ de cada instante, de então e de hoje, sem distinção, que tornaram grandes esses quarenta anos.” Era 1967, quando partiu para ajudar padre Pigi, missionário no Brasil desde 1962 (um dos primeiros a partir e a primeira alma do Movimento além do oceano). Hoje, ela mora em uma casa na favela Primeiro de Maio. E é para lá que vamos depois da missa, porque às oito toma café junto com os hóspedes.

O FILHO QUE NÃO SE ESPERA. Voluntários, amigos, pessoas de passagem, normalmente jovens. Um vai-e-vem de pessoas de todos os tipos. O andar de cima de sua casa é todo dedicado a eles. A porta está sempre aberta. É difícil Rosetta ficar sozinha: em agosto, chegou a receber vinte pessoas ao mesmo tempo. Nestes dias, estão aqui duas estudantes, Elisa e Costanza, depois chegam Serena e Mirella. Todas italianas, que chegaram aqui por caminhos diferentes. O boca-a-boca que traz à casa de Rosetta muitas pessoas, inclusive do exterior, começou em 1995 quando Gabriele, milanês que trabalha na Bolsa, fez uma promessa a Nossa Senhora de dedicar um mês da própria vida como voluntário. Quando chegou aqui, só conseguiu ficar quinze dias. E voltou para Milão, mas com o coração marcado. Depois de um ano, junto com outros amigos e colegas arrecadou uma grande doação para a obra de Rosetta e, desde então, volta todos os anos.
Às oito e cinquenta, o Fiat Palio cinza de Rosetta está lotado e parte. O dia está cheio de compromissos. Mas não acontecem um depois do outro, como uma agenda: o trajeto é um intrincado ziguezague. Cedo ou tarde chega a todos os lugares, como, não dá para saber. O dia de Rosetta é decidido por aquilo que acontece, a partir de quem encontra. No caminho, um conhecido precisa de uma carona para levar um pacote pesado. Ou, ao passar na frente da casa de amigos, bate para saber como estão e para cumprimentar as crianças. Cada trajeto é uma surpresa e uma expectativa. Entramos no Jardim Felicidade, um bairro que nasceu com padre Pigi. Durante dois anos, ele lutou com o Governo Federal para que estas quatro mil famílias pudessem deixar a favela. Hoje, têm casa e terreno, e é compreensível porque deram este nome ao bairro. Um portão coberto de desenhos abre-se diante do pátio da creche. Rosetta nos deixa porque tem uma reunião com os responsáveis. Este é o segundo centro para a infância, em ordem cronológica, entre os que hoje fazem parte das “Obras Educativas Padre Giussani”, das quais Rosetta é coordenadora: várias edificações nascidas na zona norte da cidade de Belo Horizonte, que hoje acolhem 1150 crianças e adolescentes. Quatro centros sócio-educativos, o Centro Esportivo Virgilio Resi, a Casa de Acolhida Novella e quatro creches, entre elas esta no Jardim Felicidade, em torno da qual nasceu o Centro Alvorada. Lúcio é seu novo diretor. Foi seminarista, participou de trabalhos pastorais e, depois, encontrou Rosetta fora da missa: falaram dois minutos e a partir daí começou o trabalho de acompanhamento aos pais. Depois, o trabalho com as crianças. Depois, com os jovens... “Nem tive tempo de responder quando Rosetta me propôs dirigir o Centro.” Ficou ali, como diante de um filho que não se espera, mas chega. No Alvorada, cuida-se de jovens de todas as idades, que vêm das favelas do bairro. 80% deles não têm pai. “Ter homens entre os professores é importantíssimo porque as crianças devem ver que também existem homens capazes de escutar e abraçar”, conta Lúcio, enquanto entre um trabalho e outro nos mostra as fotos dos jovens que, depois de terem feito todo um percurso, desde a creche, agora são professores das outras crianças. “Nos últimos anos, as condições de vida pioraram. Culpa da droga,” Começam a vender aos nove, dez anos. Tentam sobreviver da vida desgraçada das favelas. “Por isso, depois da creche, nasceu o centro diurno onde hoje estão 200 jovens, envolvidos em várias atividades. Também nasceu a exigência de um acompanhamento ulterior,” Assim, nasceu o programa “Jovem Trabalhador”, para inserir no mercado de trabalho 140 menores. Fazemos uma pausa para um café: de repente, o salão se enche de gente. Os professores e os funcionários se cruzam, parece uma pequena cidade. Olhando essas pessoas que agora trabalham, sorriem, empenham-se naquilo que fazem, nunca poderíamos imaginar as histórias que carregam nos ombros. É um milagre diante dos olhos.

DO CAMPO DE FUTEBOL, UMA CASA. Das escadas, chega uma música: um grupo de crianças está cantando. É o coro formado por uma nova professora, Vívian. Assim que Marco Aurélio aparece, todos pulam em cima dele como ele se fosse seu pai. Há dez anos acompanha as turmas no percurso de aprendizado musical. Usa instrumentos de todos os tipos e é exatamente aprendendo as canções da creche que as crianças começam a falar. Em uma sala no andar térreo, Cleber está sentado. É o carpinteiro neste pequeno laboratório onde, com muita paciência, constrói brinquedos de madeira. Caminhões, cavalinhos, sapos e coelhos com rodinhas. Depois de prontos, leva-os à sala ao lado, para as crianças, que os pintam e embalam.
Com eles, está Simone. Foi a primeira menina a chegar nesta creche: tinha quatro anos e arrastava o irmão menor pela mão como um boneco. Hoje, é a responsável pelo laboratório de artes.
Atrás de um muro, aparece uma fila de crianças com passo ritmado: é a aula de capoeira. Diego e Igor ensinam os movimentos e as cambalhotas desta antiga luta dos escravos. “É um dos momentos mais esperados da semana, junto com os cursos de teatro”, contam. E o futebol. No início, o Centro tinha um campinho de cimento malfeito, hoje tem uma escola de futebol para trezentas crianças e um campo regulamentar com grama sintética perfeita e com cobertura. Todos aqui se orgulham dele, foi presente de um benfeitor italiano. E italiano também é o treinador, Alessandro, que deixou as praias de Rímini e vive aqui há dez anos. Viu ser destruído o velho campinho para dar lugar à Casa de Acolhida Novella, onde hoje vivem dez crianças separadas de suas famílias: seis educadores as acompanham em turnos e Graça dorme, come e vive com elas. “As crianças não poderiam ser acompanhadas por rostos sempre diferentes, era preciso um rosto fixo.” Rosetta terminou a reunião e conta que “tudo aquilo que nasceu aqui não é fruto de um projeto. Foi uma tentativa de responder a uma necessidade que, pouco a pouco, se evidenciou”. Exatamente como quando sai de casa pela manhã... e “o dia é construído respondendo às necessidades e aos imprevistos que vão acontecendo”.
Antes de irmos embora, há o almoço: o salão se transforma num refeitório. Todos se sentam. As crianças são vivazes, mas têm um comportamento antigo: “Quando vão ao médico, as pessoas ficam impressionadas como são educadas”, conta Silvana. Era a diretora da escola, agora é a cozinheira. Precisávamos de uma cozinheira e ela mudou de tarefa. “Mas continua sendo a mesma coisa, é sempre o ponto de referência”, diz Rosetta. Aqui, quem cozinha e faz a limpeza é o mestre principal. Diretora ou cozinheira, não há diferença.

PAPAI DO CÉU. “Educar é expressar o gosto com o qual se faz as coisas, é comunicar uma vida. Vamos a uma loja comprar tintas, quer vir junto?”, Rosetta olha para um menino que está ali perto. Logo outro se junta a nós. E, depois, mais um. Não consegue dizer “não”, e o carro lota. Para eles, um passeio de carro é como ir ao parque. E ela os leva aonde precisa ir, até aos enterros. São acostumados a ver pessoas mortas deixadas por terra como uma galinha morta, até que a polícia chegue para levá-las. “Porém, descobrem que as pessoas voltam para os braços de Deus.” Para o Papai do Céu, como eles chamam.
Com o carro cheio, vamos à Creche Etelvina Caetano de Jesus, é um mergulho nas origens. É a primeira creche que nasceu com Rosetta, na Paróquia de Todos os Santos. Ali, padre Pigi acolhia as famílias que tinham abandonado os barracos destruídos pelas fortes chuvas de verão. Em meio ao nada da favela, nasce uma comunidade. Começaram cursos de tapeçaria, corte, costura e bordado. A alfabetização para adultos, o catecismo, as festas tradicionais. Construíram um ambulatório. Até que em 1979, uma senhora da comunidade ofereceu o único espaço que tinha. Debaixo de uma lona amarela foram acolhidas as primeiras cinquenta crianças. Em 1987, nasce esta creche, cuja pilastra é Elena, diretora há dezenove anos. Como todas as pessoas que trabalham nas Obras (hoje são 150), está ali por causa de uma amizade: foi uma das primeiras crianças encontradas por Rosetta e padre Pigi. Sua mãe teve dezoito filhos “todos do mesmo pai. Ficaram juntos cinquenta e dois anos”. Quer nos contar, porque sabe que é uma coisa excepcional.
“Antes, o tecido social e a cultura eram tais que o problema era responder à pobreza”, diz: “Hoje, há uma grandíssima pobreza cultural. Às mães, é preciso ensinar a afeição, o cuidado com a criança. O método que Rosetta nos ensinou é olhar a pessoa na sua unicidade. Não apenas ensinar regras de bom comportamento: é tomar o outro pela mão, cheios de um amor que abre à realidade. É afeiçoar-se ao seu destino”. Um caminho que não pode deixar de envolver também as mães. Na maior parte dos casos, elas são “toda” a família. “Quando uma mãe está em um momento difícil – conta Elena –, nós propomos a ela que venha nos dar uma mão, ajudar a cozinheira ou a professora. A convivência serena é o início de uma mudança na vida de uma mãe, que vê uma esperança.”

UMA VIDA QUE ESPERA. Voltamos para casa, com Rosetta, que se irrita com os motoristas mais lentos e muda o caminho para visitar uma família. Nas ruas estreitíssimas, é preciso desviar das pessoas sentadas nas calçadas e das crianças que brincam na terra. Até chegarmos à rua Faraday, onde mora Rosetta, que ainda tem na lembrança “as vigas rosa antigo” que encontrou pintadas no barraco de uma das primeiras famílias ajudadas: “Era o início de um amor a si”. Vai para o fogão, gosta de fazer a comida e sua organização doméstica é militar. Tem um caráter nada dócil, mas se interessa por todos. Esta noite também tem hóspedes, como quase todas as noites. A casa se enche de gente e começa uma conversa muito viva, em português. Em volta dela se reúne um mundo variado: chegam pessoas que têm necessidade de tudo, mas sobretudo de um abraço. “É o que todos nós precisamos: o abraço de Cristo. Não há outra coisa que sustente a vida.”
Ela viu os amigos com quem começou tudo, mais que irmãos, irem embora: “Mudaram de caminho. Eu me sentia em carne viva, caída por terra respirando o pó. Mas descobri que só posso me apoiar nEle”. De fora, chegam os sons das favelas: os cães que latem, os gritos das crianças, os roncos repentinos dos motores. As casas são pintadas como uma colagem, com restos de tinta, verde-água, laranja, cinza. Sinais de vida desordenada, mas que existe, que pede e espera. Alguém, passando diante da casa de Rosetta, faz o sinal da cruz. Depois, retoma o caminho.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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