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Passos N.122, Dezembro 2010

MOVIMENTO - VIDA DE CL | ÁFRICA

A lição do Quênia

por Paolo Perego

Visita a escolas que são verdadeiras pérolas em meio à pobreza. E ao Meeting Point, com Caroline, que já nem se lembra de que está doente. E, ainda, o encontro com Joakim, com quem qualquer um se sente em casa. Diário de uma viagem a Nairóbi, capital de um país em que as divisões tribais estão “no sangue”. Mas, entre as facções, renasce um povo.

OToyota de Geoffrey, no meio do engarrafamento, tenta ganhar alguns metros trocando de faixa na ampla estrada. São três faixas, mas vemos seis filas de carros, caminhões e ônibus, que avançam para fora do asfalto. “Esta é a única via do aeroporto à cidade”, explica o motorista, depois de algumas perguntas do tipo “quem é você, o que faz, quantos anos tem”. Depois, silêncio. Ele tem 38 anos e 4 filhos. Liga o rádio, mas para mim aquelas incompreensíveis palavras em kiswahili permanecem como um som de fundo. Eu, colado na janela do carro, estou todo imerso na contemplação da paisagem. Velhos calhambeques que se espelham nos para-choques cromados dos poderosos SUV, em meio à fumaça dos escapamentos e do ruído dos alto-falantes, e aos matatu, os microônibus do transporte público que, enlouquecidos, vão ziguezagueando entre os veículos. Pouco adiante, uma rede delimita a savana. Dá para ver três girafas, mais ao longe. Não há dúvida, estou no Quênia!

Fora do mundo. Nos dois lados da estrada, um mar de gente caminha pisando no barro. Quem sabe para onde vão! Há apenas dois anos, essas pessoas corriam, neste mesmo local, com os panga (facões) na mão, naqueles confrontos sangrentos entre as dezenas de tribos do país. Houve mais de 1.500 mortos e 300 mil ficaram sem teto. Vizinhos e conhecidos se matavam; bastava um ser Kikuyu para que um Luo lhe queimasse a casa, e vice-versa. A centelha foram as eleições presidenciais de 2007, quando os dois candidatos, em meio a fraudes e trocas de acusações, colocaram suas facções em pé de guerra: Mwai Kibaki, dos Kikuyu, e Raila Odinga, líder Luo, uma aliança de várias tribos. Por poucos votos, Kibaki venceu e as tensões só se atenuaram com a nomeação de Raila para primeiro-ministro.
Assim, agora parece que está tudo em paz. Inclusive no caos do mercado, onde os pneus do carro passam quase em cima das verduras e dos ambulantes, que negociam sentados no chão. Essa é Nairóbi, capital do país, com seus quatro milhões e meio de habitantes, no coração da savana. Onde os grandes edifícios de um dos centros econômicos mais importantes do Continente convivem com os casebres de barro de Kibera, uma das maiores favelas do mundo. Penso que estou em um lugar que está fora do mundo. Mas é uma ideia que logo, logo, vai desaparecer: bastarão alguns poucos encontros.

Mudados, inclusive à mesa. Assim, aconteceu que eu me senti em casa mesmo estando a oito mil quilômetros de distância da minha família, quando fui jantar na casa de Joakim Koech. Ele é o responsável pelo Movimento no Quênia. Vem de Eldoret, na RiftValley, norte do país. É da tribo dos Nandi, um pequeno grupo dentro dos Kalenjins, mais numerosos. Romana, sua esposa, trabalha para a Fundação Avsi. São do mesmo lugarejo e já se conheciam desde criança. À mesa, dão risada lembrando o tempo em que frequentavam o catecismo. E, depois, o encontro com o Movimento; primeiro, ela; depois ele, seguindo a namorada. “O Movimento mudou nossa vida”. Profundamente. Inclusive porque compreenderam que há algo mais importante na vida do que a divisão tribal, que em 2007 levou o povo àqueles conflitos. “Foi difícil. Porque é uma coisa que a gente traz no sangue. Até hoje, quando os conflitos terminaram”. Joakim escreveu isso em 2008, falando da experiência daqueles dias que viveu na própria pele, a partir de um grupinho de Fraternidade, composto em sua maioria por gente Kikuyu, a facção adversária da sua. “O que nos define não é a ligação tribal, mas o fato de Cristo. Todos os dias eram cheios de medo e tensão. Um amigo nos disse: Nós somos os vencedores”, escreveu ele na época. “E isso vale até hoje, por exemplo, diante da reforma constitucional que introduziu o aborto, a eutanásia e as cortes islâmicas em todo o país. A questão não é abrir uma guerra ideológica, mas ir fundo na experiência de fé que estamos vivendo. Há algo que vem antes da bondade de uma luta: pertencemos a um Outro”. Algo que vem antes! “É, de fato, uma cultura nova”. Que podemos ver no Cartaz de Páscoa, pregado nas paredes da casa de Joakim, e no fato de fazerem as refeições na mesa, enquanto a tradição queniana impõe que elas sejam feitas em torno de um grande tapete, com o prato na mão. E – por que não? – um uísque escocês, presente do amigo Carras, que da Itália com frequência vai visitá-los.
Em volta da mesa da família Koech está também Leo Capobianco, italiano, diretor da Fundação Avsi no Quênia, que mora em Nairóbi há dezoito anos. “Eu era contador. Tinha começado a trabalhar para a Avsi, abrindo escritórios mundo afora. Cheguei aqui. Era para ficar apenas alguns meses, mas... Ainda estou aqui. Na época, éramos quatro: eu, padre Valerio, da Fraternidade São Carlos, e outros dois Memores Domini”. Cheios de entusiasmo, conta Leo. Até os primeiros ataques dos bandidos, que extinguiram os ânimos românticos e os obrigaram a abandonar Ghiturai Kiambu, um bairro periférico de Nairóbi, “onde naquela época a gente via elefantes e antílopes debaixo da janela”. Foram para uma casa na zona das embaixadas. Começou assim a obra da Avsi, em resposta ao pedido de três técnicos para lecionar numa escola da diocese. Depois, em 1990, começou o trabalho num projeto ambicioso: construir uma nova escola justamente em Ghiturai, onde a diocese cedeu um terreno. “A escola profissional Saint Kizito foi inaugurada em 1994, e hoje tem mais de quatrocentos estudantes em dez cursos, como, por exemplo, cabeleireiro, esteticista, pedreiro, mecânico, carpinteiro”, diz Leo, no dia seguinte, durante um giro pela escola, em meio aos alunos.

Entre facões e varas. “A educação sempre foi uma constante da nossa comunidade, a partir da Avsi, que além da Saint Kizito, em 1999, levantou também a Little Prince, uma escola primária perto da favela de Kibera”. É Anthony Maina, diretor desde o princípio, quem fala da escola. “Em 2000, começamos com apenas nove crianças. Depois, em 2005, inauguramos o novo prédio, porque aumentou o número de crianças, devido também a uma política de secularização do governo. A última obra, este ano, é a creche, com 51 crianças. A escola conta com mais de trezentos alunos”. É uma pérola que surgiu em meio aos barracos. “Justamente naquela rua víamos as pessoas brigando com golpes de facões e varas”, diz Leo, mostrando da janela o limite da grande favela. “Muitos dos nossos alunos vêm dali e podem estudar graças ao apoio a distância da Avsi. O mesmo ocorre com a Urafiki Caravana ou com a Cardeal Otunga”. A Urafiki é uma escola primária aberta pelos missionários da Fraternidade São Carlos. A Otunga é uma escola secundária, cujo presidente é Joakim, desde 2008, ano da sua abertura. Ambas surgem na zona de Kahawa Sukari, onde está a paróquia de São José, onde também estão, desde 1997, os missionários da Fraternidade São Carlos. A paróquia é um lugar de milagres. A partir da creche, dedicada a Emanuela Mazzola, uma menina de Milão que morreu num acidente rodoviário. E também o trabalho com as crianças deficientes, duas vezes por semana, que faz rodízio com o Meeting Point no atendimento aos doentes de Aids. E nos sentimos em casa também ali, junto a essas mulheres doentes, que fazem as refeições juntas e se apoiam mutuamente. Enquanto divido com elas um prato de algo “que não sei o que é”, entra Caroline: “Desculpem pelo atraso, sinto muito não ter rezado o terço com vocês”; e, depois, conta a sua história: “O que dizer de mim? Bem, sou uma mulher muito positiva”, e todas caem na risada. Alta, está com um vestido vermelho vivo, e tem um rosto muito bonito. Tem 27 anos, dois filhos, sem marido. “Quando cheguei aqui eu pesava 24 quilos. Agora, já passei dos 60. Deram-me roupa e comida. Pedi o Batismo. E agora posso fazer também a comunhão. Aqui nós somos pessoas. E muitas vezes até nos esquecemos de que estamos doentes”.

Os tênis da Casa Kamande. A outra escola, a Cardeal Otunga, foi levantada por Joakim e um grupo de professores, partindo da ideia de traduzir em tijolos o livro de Dom Giussani Educar é um risco. “Parecia uma loucura. Fazer uma escola secundária que não fosse boarding, isto é, que não fosse um colégio de tempo integral, como é o estilo da maioria aqui. Nelas, os pais mandam os filhos para a escola na segunda-feira e lá eles ficam a semana toda. Nós resolvemos arriscar, envolvendo também a família na trajetória educacional”. E os prêmios expostos em seu escritório confirmam o orgulho do diretor: um de “melhor classe”, outro de “melhor aluno”, etc... “Temos também alunos que vêm da Kibera, que tinham estudado na Little Prince. Só que a favela é longe. Gastam horas para chegar até aqui, sem carro”, explica Joakim. “Por sorte temos Henry Kamande e Jane”; ele é diretor da Urafiki; ela, sua esposa. Têm três filhos. Mais aqueles treze jovens de que falava Joakim, e que os Kamande acolhem em casa durante a semana. “Sim, são todos meus filhos”, brinca Jane tirando o avental. E abaixa os olhos sorrindo, levando a gente a entender que é isso mesmo que ela pensa. Depois, interrompe os afazeres para nos mostrar os quartos dos jovens, as salas de estudo... Era a casa daqueles primeiros italianos, que chegaram por aqui na metade dos anos 1980. E as arcadas abertas, em volta do pátio, dão ao ambiente o aspecto de mosteiro. Mas a fileira dos tênis “usados” explicam que aquela atmosfera claustral destina-se a desaparecer tão logo os meninos voltem da escola.
Aí está o outro Quênia, que não era possível ver da janela do carro, ao sairmos do aeroporto. E haveria muitas outras obras a relatar. Do nascimento de Cowa, uma Companhia das Obras local, ao Centro de Otiende, com cursos de formação para o pessoal de Kibera, e depois todos os projetos da Avsi, sobretudo quando o assunto é ajuda a distância... E a gente logo pensa que são “grandes coisas”, como intitulava o Meeting de Rímini deste ano. Mas o que permite chegar às grandes coisas é apenas o coração, com seus desejos. E aqui ele também é grande. E isso a gente vê: uma pequena comunidade com algumas dezenas de pessoas que se transformou depois do encontro com Cristo. Como Joakim, que mudou inclusive a maneira de comer em casa. Como Paolo, Antonio e Nino, que vivem com Leo, e não conseguem mais ficar muitos dias longe da África. E ficamos comovidos com uma Escola de comunidade, quinze pessoas reunidas numa salinha, ouvindo Pascal: “Eu preciso de Cristo agora, na realidade. E construir a minha vida a partir d’Ele”.

Mais irmão do que um irmão. De novo, os olhos de Cristian, com os quais cruzamos uma noite. Tristes. Porque de manhã, depois de semanas de espera, finalmente conheceu Martin e Mary, as duas crianças que ele ajuda a distância, desde Losanna. Foi à casa delas, na favela, onde todas as crianças têm uma barriga enorme, resultado da fome, e brincam com os porcos no esgoto a céu aberto. “A gente se sente impotente. Não sabemos o que fazer para salvá-los...”, diz alguém, olhando pelo vidro molhado do carro. E todas as outras faces, os outros corações. De Victoria, de Valeria, de Ciprian e de Silas, com sua Fraternidade de Mutuati, uma aldeia a quatrocentos quilômetros de Nairóbi. De Vivian, dos seminaristas Matteo e Cristiano, de Crispus. Até os olhos de David e de Simon, pouco antes da partida. Eis aí um verdadeiro povo. Em meio às tribos. Novo, diferente, feito de italianos, de Luo, de Kikuyu, de Kalenjins. Todos têm esses rostos transformados por um juízo verdadeiro, que levou ao amadurecimento de uma experiência de fé e de amizade. “Eu, mas não mais eu”, como lembrava o Papa, parafraseando São Paulo. No fundo, aconteceu também comigo. “Onde vim parar!”, eu pensava ao longo daquela estrada, cinco dias atrás. Não há mais essa estranheza. Foi suplantada por aquele “algo que vem antes”, que foi possível constatar. E que me faz próximo de Joakim, que do outro lado do mundo sinto mais irmão do que um irmão.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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