A mesquita fica ao lado da catedral. Algumas mulheres com véu, outras com minissaia. Relatos de um país com milhares de contradições, que vive o risco de uma nova guerra, com prédios e hotéis bombardeados recentemente. Mas, enquanto o amanhã está indefinido, existem pessoas que vivem uma “febre de vida” que permite a convivência e cria unidade
Beirute, final de novembro. O sol ainda aquece a Corniche, avenida costeira da capital libanesa. São os últimos dias do verão, “depois chegará repentinamente a neve, como acontece todo ano”. Roni, um cristão, vive a poucos quilômetros da cidade, junto com a esposa Andree e os dois filhos. Explica que “aqui tudo muda muito rapidamente, como o tempo. Os inimigos de ontem são os aliados de hoje, e as cidades se ressentem disso. Agora estamos bem, mas amanhã quem sabe...”.
Esse equilíbrio instável pode ser facilmente percebido por esse “amanhã quem sabe”, pronunciado em voz baixa, e mais ainda pela situação política. Poucos falam disso abertamente, mas todos sabem que o risco de uma nova guerra é real. De fato, é esperada para este inverno a sentença do Tribunal especial criado pela ONU em 2005, depois do homicídio do primeiro-ministro sunita Rafiq Hariri. Um carro-bomba, segundo os jornais: talvez obra dos sírios, talvez dos seguidores xiitas do Hezbollah, o único partido armado libanês a permanecer no governo. “Se condenarem o Hezbollah, tomaremos o país em 48 horas”, disse Hassan Nasrallah, secretário-geral do “partido de Deus”. Uma decisão que despertaria a inevitável reação de Israel e dos mais de 500 mil refugiados palestinos, que há sessenta anos ocupam o território. Situação complicada.
“Estamos na linha verde”, anuncia Roni, que antes de trabalhar como contador na Fundação Avsi foi guia turístico e conhece todos os cantos da cidade. Como tantos, viveu a guerra, mas não gosta de tocar no assunto. Indica um labirinto de vielas que até a década de 1990 separavam a Beirute Leste (cristã) da Beirute Oeste (muçulmana). Em volta, prédios destruídos a golpes de morteiros, ao lado de hotéis novos e luxuosos, mulheres com véu cobrindo o corpo todo e moças de minissaia, retornando da última cirurgia plástica. “Esse é o Líbano, uma grande mistura, porém é o lugar onde podemos encontrar as pessoas, mais do que qualquer outro lugar. Sei que parece uma frase muito em moda no meu ofício, mas aqui é assim mesmo”, brinca Guido, que trabalha para a cooperação internacional no país há mais de cinco anos.
A Suíça de Oriana. Roni deve retomar o trabalho, e por isso é com Guido que prosseguimos o giro pela capital. Ele explica que o centro histórico foi reconstruído depois da última guerra, em 2006: todo dia, milhares de carros percorrem as ruas, cheias de vitrinas, cafés, bancos. Um pouco porque a economia está em crescimento, um pouco porque a lavagem de dinheiro sujo, aqui, é história antiga. Os sinais dos bombardeios israelenses desapareceram. E não importa que todo dia, às 18 horas, falte luz por alguns minutos em toda a região, por causa da troca do gerador elétrico. A Praça dos Mártires, a principal, está irreconhecível para quem a conhecia antes da década de 1950: uma enorme mesquita azul, desejada por Hariri, domina a cena. A igreja maronita, ao lado, quase desaparece. Mas está lá. Olhar a mesquita, hoje, significa lembrar do governo de Hariri pai, o “senhor Líbano” que na década de 1990 reconstruiu Beirute, mas lembra também o seu homicídio, o seu filho que agora comanda o governo, aproveitando a onda anti-Hezbollah e anti-Síria, e que agora se encontra numa situação extremamente complicada. Os xiitas são maioria e o Hezbollah tornou-se extremamente mais forte, ideologizado e pretensioso.
Podem ser identificados ainda o rico bairro cristão de Achrafiyeh, o bairro muçulmano de Hamra, o armênio de Bourji al Hammaud, e também a Rue Presidential, a zona das embaixadas. As ruas são caóticas, não têm placa indicando seu nome, e os sinais de trânsito não são respeitados, tornando difícil para um ocidental orientar-se. No entanto, há uma ordem. Porque as regras do trânsito não são escritas, e mesmo assim respeitadas, como o Pacto nacional de 1943, não escrito, que entregou a Presidência aos cristãos maronitas, o comando do Conselho aos muçulmanos sunitas e do Parlamento aos muçulmanos xiitas. Essas três confissões religiosas é que governam o país dos cedros. Não são as únicas; há outras quinze, e todas convivem em meio a mil contradições, há muito tempo, mesmo antes do mandato francês, que desde a desagregação do Império otomano até 1945 governou o país deixando como lembrança uma língua rica de palavras árabes antes desconhecidas e o apreço por uma certa arquitetura parisiense; antes também que a guerra civil de 1975 entregasse o Líbano nas mãos de israelenses, palestinos e sírios.
O Líbano moderno não é a Suíça do Oriente Médio, de que falava Oriana Fallaci em Insciallah. A terra que acolhia quem quer que lhe pedisse refúgio ou procurasse boa sorte: trapaceiros, estrelas de Hollywood, pobres e políticos.
Compreendemos isso pelos postos de bloqueio militar que, depois de Sidon, descendo para o Sul, impedem que os curiosos se aproximem da fronteira com Israel. Se uma permissão especial do Exército regular torna possível a passagem, nos vemos em território xiita, entre imensas plantações de banana e longas cercas de arame farpado. Há uma calma aparente nessas estradas esburacadas e poeirentas, que circundam as antigas ruínas de Byblos e o vale de Bekaa. A reserva dos cedros, se insinua pelas numerosas grutas cársicas da região e alcança Tiro, Chamaa, Naqoura. Uma calma quebrada pela presença (há mais de vinte anos) da Unifil – a missão da ONU que atua na região desde 1982. Os militares constroem escolas, reconstroem a infraestrutura, retiram as minas dos terrenos, dão trabalho para centenas de famílias libanesas em suas bases. Mas não baixam a guarda: cada campo tem o seu bunker, cada soldado está pronto para uma eventual piora da situação.
Sobre um barril de pólvora. No entanto, o que mais passa a ideia de que se caminha sobre um barril de pólvora são os diálogos com os libaneses. “Os jovens fazem um raciocínio simples: aqui não é o melhor lugar para se formar uma família”, explica frei Michael, capuchinho nascido na região de Chouf. “Incertezas demais, poucas oportunidades de trabalho. E para completar, o espectro da guerra, sempre iminente. Aqui todos já combateram ou tiveram um miliciano na família. Isso afeta o modo de viver”. As pessoas vestem camiseta amarela se estão com o Hezbollah; laranja, se torcem pelo general Aoun, e sabe como se fazer entender se prefere a facção do druso Walid Joumblatt ou o sorriso seguro do líder cristão Geagea.
As crianças aprendem rápido as línguas faladas, a música e de que lado devem estar. Os mais ricos frequentam as universidades, rigorosamente privadas. Os outros precisam se virar. Muitos deixam o país para ir estudar ou trabalhar fora, o que leva a mídia internacional a falar em “diáspora libanesa”. Aliás, é impossível não notar a paixão que toma conta das diversas partes em disputa, ou de quem acena para a “devastadora” presença do Hezbollah no governo, desse “partido de Deus” ligado – pelas armas e pela ideologia – ao vizinho Irã e à Rússia.
Exemplo para todos. Os cristãos ficam divididos entre o medo da nacionalização dos palestinos, que há mais de sessenta anos vivem nos campos de refugiados, e a temida pressão do governo de Ahmadinejad. Os muçulmanos sunitas olham com desconfiança os xiitas, os drusos simpatizam com o Hezbollah, mas mantêm distância. E há também Israel, Síria, Estados Unidos, Rússia, Irã. Cada um, aqui no Líbano, tem o seu protetor entre um desses atores internacionais. Os observadores internacionais dizem que a guerra é iminente. O povo, pelas ruas, minimiza o risco e garante que não, que outra guerra não é possível.
“Aqui vivemos bem, hoje. Amanhã não sei, mas nós confiamos tudo a Jesus”, nos diz Andree, esposa de Roni. Católica convicta, conta que os dias correm tranquilos: funcionam as escolas de música para os filhos, os escoteiros, a paróquia onde se reúnem, os supermercados onde compram hummus e carne de carneiro.
E a convivência é, de fato, possível, porque “acima de tudo somos todos libaneses. Cristãos ou muçulmanos, somos todos libaneses”. Andree tem uma confiança enorme em Jesus e nos amigos. Seus filhos, junto com alguns amigos da escola, se encontram toda semana para cantar, rezar, ler algum texto do Evangelho ou de Dom Giussani. E essa alegria cristã eles a transmitem na paróquia ou na escola, onde se esforçam para aprender línguas, matemática, música. Esta, mais do que tudo, as une. Em seus rostos jovens e alegres, em sua febre de vida, está a verdadeira esperança do Líbano.
Claro, não faltam preocupações. “Infelizmente, nenhum político visa o bem comum”, diz Roni. “Nem entre os cristãos. E isso complica as coisas”. O núncio apostólico, Dom Gabriele Giordano Caccia, explica que “politicamente aqui nos baseamos no pressuposto de que toda comunidade precisa manifestar os seus homens, a sua classe dirigente”. Mas quando lhe perguntamos se, apesar da forte instabilidade, há perspectivas, ele responde que sim. “Há esperança: esta terra pode ser um exemplo de convivência, de respeito mútuo, conhecimento e estima, embora mantendo as próprias identidades. Seja pelo Oriente seja pelo Ocidente. Pelo Oriente, porque precisa de mais liberdade. E pelo Ocidente porque precisa de mais pluralidade integrada, que não se torne um confronto de civilizações”.
Assim, vive-se esperando. A guerra, talvez. Ou quem sabe o quê! Provavelmente uma saída exista, mas no momento ninguém é capaz de dizer se e quando se concretizará. Permanecem em suspenso a sentença de um tribunal malvisto e as escolhas de uma nação que, há muito tempo, entregou a própria existência nas mãos de quem decidiu que paz, convivência pacífica e democracia são valores negociáveis. Até quando?
DATAS
1943 Fim do mandato francês. Líbano independente
1948 Nasce o Estado de Israel. Milhares de palestinos fogem para o Líbano
1968 Ataques dos palestinos que vivem nos campos de refugiados libaneses
1975 Eclode a guerra civil
1978 Israel invade o país. Nasce a United Nations Interim Force in Lebanon (Unifil), para estabelecer a paz
1981 Crise dos mísseis Israel-Síria em território libanês
1982 Israel invade de novo o Líbano
1985 Nasce o Hezbollah
1990 Fim da guerra civil
1991 Tratado de irmandade e cooperação Síria-Líbano
1992 Primeiras eleições livres. Vence o sunita Rafiq Hariri
1996 Novos bombardeios israelenses
2000 Retirada de Israel do Sul do Líbano
2005 Assassinato de Hariri. Nasce um Tribunal interna-cional para condenar os mandantes
2006 Hezbollah sequestra dois soldados israelenses; em resposta, Israel ataca o Líbano. Guerra dos 33 dias
2010 Novos conflitos na fronteira com Israel
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