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Passos N.124, Março 2011

MEMÓRIA - DOM GIUSSANI

Apaixonado pela nossa vida

por Fabrizio Rossi

Passados seis anos desde a sua morte, Dom Luigi Giussani continua a gerar um povo. Chegando inclusive a quem nunca o conheceu pessoalmente. Do professor muçulmano ao jurista judeu, do teólogo ortodoxo ao pastor anglicano, o relato de uma amizade que, tocando o mundo, “me mudou”

ENCONTREI-O EM DEUS
Wel Farouq, American University no Cairo

A propósito de Dom Giussani. Encontro--o constantemente em todos aqueles que o conheceram e amaram, um pouco como o corpo de Cristo que os crentes recebem com o pão durante a missa, nele encontrando unidade e partilha. Por esse motivo, sinto que ele está sempre presente no meio de nós, com as suas graças que nos fazem rir e refletir ao mesmo tempo.
Esta presença no mundo, na realidade vivida, é o segredo da influência que Luigi Giussani exerce sobre quem quer que o tenha conhecido, independentemente do tipo de encontro que teve com ele. Pela parte que me toca – utilizando a terminologia islâmica para exprimir a amizade – encontrei-o em Deus e amei-o em Deus. De fato, todo o amor verdadeiro que se sente pelo Outro é também amor de Deus, bem como manifestação da Sua graça no mundo.
A coisa mais importante que Dom Giussani me ofereceu e ofereceu ao mundo são vocês. Vocês que viveram junto dele a experiência do amor, transformando uma sublime abstração em realidade tangível e viva.
Os valores, os pensamentos nobres, o conhecimento e a beleza, são geralmente descritos como “alimento do espírito, da mente e do coração”, exprimindo de forma retórica a sua importância para o ser humano. Eu gostaria de ampliar o sentido desta metáfora. De fato, o conhecimento, as tradições e a beleza, exatamente como o alimento, acabam por deteriorar-se e tornar-se venenosos se não encontram quem os consuma, os assimile e os ponha em circulação nas artérias da sociedade humana. Se não ganharem corpo, os valores deterioram-se. Se saem da realidade, envenenam a vida. Então transformam-se em coisas diversas como o fanatismo, a ideologia e o despostismo. A Bíblia exprimiu eloquentemente esta ideia com as seguintes palavras: “Se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’ mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 Jo 4, 20).
Talvez esta seja precisamente uma das lições mais importantes de O senso religioso, porque o ser humano é o caminho mais curto para chegar a Deus, e a realidade é o espaço onde encontramos a Deus a cada momento.
Meus amigos, antes de conhecer Dom Giussani em vocês, e de conhecer vocês em Dom Giussani, todas as coisas belas em que acreditava eram um fardo pesado que me impelia a fugir da realidade, já que nela não encontravam realização. Faziam-me sentir impotente, porque não conseguia pô-las em prática. Repelia quem não visse o mundo à minha maneira, considerando-o um obstáculo no caminho para o alcance desses nobres valores em que acreditava. Em nível intelectual, religioso e político, punha em dúvida o bem, a beleza, o amor, quando provinham de alguém diferente de mim. Eu era um romântico que sonhava mudar o mundo, mas precisamente por este motivo vivia isolado do mundo. Só a amizade de vocês me fez sair deste isolamento, além do sincero desejo que vocês tinham de me conhecer e da ausência em vocês de ideias preconcebidas a meu respeito. Eu, árabe muçulmano, nunca senti, nem por um dia, que não era um de vocês. Como poderia, então, não me livrar também das ideias preconcebidas sobre vocês e sobre mim próprio? A amizade com vocês não mudou o mundo, mas me mudou. Compreendi que o mal é transitório, ao passo que o amor é eterno, e tudo aquilo que precisamos para fazer o mundo melhor nós o vivemos todos os dias de forma desatenta.


DE BOCA ABERTA
Joseph Weiler, New York University


A minha amizade com Dom Giussani e Comunhão e Libertação começou por acaso. Fui enviado ao Meeting de Rímini em 2003. Não fazia ideia do que era. Pensei que se tratasse de uma espécie de congresso acadêmico mas, em vez disso, foi uma experiência que me deixou de boca aberta. Alguns me diziam que iria lidar com pessoas desagradáveis, intolerantes etc. Eu, porém, nunca vi um clima mais aberto. Em cada encontro, ficava impressionado pela variedade de vozes: judeus, muçulmanos, comunistas, ateus, soberanos e gente humilde, primeiros-ministros, escritores, cientistas... Os meus melhores amigos na Itália perguntaram-me duas coisas, quando estive em Rímini: “Como é que você consegue fazer parte ‘disso’?”, e ainda: “O que é que se faz para ser convidado?”.
O que foi que me fascinou em Dom Giussani? Combateu a posição de muitos estudantes que defendiam que ser católico é apenas uma questão de fé, ao passo que a razão é outra coisa. Já na década de 1950, Giussani respondia: não, se não se pode dar a razão da própria fé com toda a inteligência que se possui, é melhor deixar para lá. Uma coisa absolutamente admirável.
Também me fascina a insistência de Dom Giussani sobre a fé como experiência de uma Presença, não como um discurso moral: é o significado católico da eucaristia. E O senso religioso é um grande tratado de teologia.
(Da entrevista de John Allen do National Catholic Reporter, 21 de janeiro de 2011)


A COMUNIDADE DO CORAÇÃO
Aleksandr Filonenko, Univ. de Charkov


Imaginem que vocês têm convidados vindos de longe. Podem estar à espera que perguntem pelo que vocês vivem aqui, que contem a vocês da vida que os mantém ocupados lá. Mas nem sonhariam que começassem a falar daquilo que os impressiona na vida de vocês, tanto mais que vocês nem tinham percebido a excepcionalidade por eles captada, ou nem lhe tinham dado crédito. Daí o espanto quando uma coisa tão impossível acontece e descobrem a vida de vocês com o seu próprio coração, reagindo às palavras dos convidados. Os convidados tornam-se, então, testemunhas da vida partilhada com vocês. Tornamo-nos amigos.
Não acontece com frequência. Algo semelhante, por exemplo, se viu com o poeta russo Iosif Brodski, que deu a conhecer a ingleses, alemães, italianos e americanos a poesia, mas sobretudo impressionou-os falando dos seus próprios poetas, restituindo-lhes Auden, Rilke, Montale, Frost...
Foi exatamente deste deslumbramento que, no Meeting de Rímini de 2002, começou a minha amizade com o Movimento. Impressionou-me que alguns italianos tivessem descoberto as histórias dos mártires russos do século XX, nas peregrinações aos antigos gulags das ilhas Solovki propostas pela Fundação Rússia Cristã. Mas o que achei absolutamente surpreendente foi, graças ao seu olhar atento, eu ter podido conhecer essas páginas trágicas do meu país. Ora, a história da nossa amizade é feita precisamente destes testemunhos, pelo menos em parte – espero – recíprocos.
Este olhar, capaz de desvendar numa outra cultura, no destino do outro, testemunhos impressionantes do que Cristo realiza, significou para mim o primeiro sinal do que é o Movimento. E uma primeira pergunta: como se educa este olhar? De onde vem? Encontrando a experiência de Dom Giussani encontrei a resposta.
O que é para mim esta experiência? É a experiência da vida cristã como testemunho da presença de Cristo na realidade de todos os dias. A experiência de que a tradição cristã e aquilo que eu vivo se encontram graças à razão, que compara a realidade com o coração. Um coração atingido pela própria realidade, que responde ao seu chamado. Nestes tempos de palavras e intérpretes vazios que, sobre as ruínas das ideologias, se cansaram de multiplicar análises e interpretações, Giussani soube testemunhar com inesgotável frescor a presença impressionante de Cristo em cada movimento vital do nosso coração. O que nos marca é “não um discurso, mas uma presença”.
Traçou um percurso que leva a descobrir esta Presença. Um percurso que me convida a levar a sério a abertura e as exigências infinitas do meu coração, enquanto que qualquer ação minha se esgotaria na impossibilidade de alcançar o que é essencial. Este percurso conduz-me a outros homens, na alegria e na esperança, na dor e na tristeza, para eu poder partilhar com eles o amor e o sofrimento. E poder testemunhar que Cristo realiza o que é impossível ao homem, respondendo à infinitude do coração. No fundo, as viagens dos amigos italianos à Rússia, Casaquistão e Ucrânia também constituem uma impressionante metáfora da possibilidade de, no meu cotidiano – não menos árduo e contente –, ir ao encontro do próximo.
Nunca conheci Dom Giussani pessoalmente mas, sem ele, a comunidade do meu coração, a comunidade de amigos na presença dos quais vivo todos os dias, seria impensável.


SACUDIU OS MORNOS
Rev. Andrew Davison, W. House, Cambridge


O meu primeiro encontro com Dom Giussani deu-se através de uma citação de Educar é um risco, num ensaio de Stanley Hauerwas. O grande teólogo criticava a tendência protestante para favorecer as ideias à experiência, ou para separar as ideias da experiência, e citava uma passagem em que Giussani diz que, para resistir ao assalto furioso do mundo, temos necessidade não só de ideias, mas de ideias que tenham raízes na experiência. Aquela citação foi muito útil para mim, porque estava escrevendo um ensaio sobre o perigo de inventar novas formas de vida da Igreja. A minha intenção era indicar a paróquia como o lugar para experimentar a reconciliação do Evangelho, fazendo experiência dele numa comunidade de pessoas de idades, profissões e procedências diferentes.
Não muito tempo depois, o teólogo John Milbank sugeriu que me encontrasse com alguns de CL, dizendo que seria um bem para mim e para a Igreja da Inglaterra. Assumi com muito interesse este encargo, e desta forma nasceu uma grande amizade com muitas pessoas de CL. Assim, foi se tecendo, felizmente, o meu conhecimento de Giussani através dos seus textos e através dos meus amigos do Movimento.
O desafio para os cristãos de hoje é verificar que a sua fé é verdadeira e viver dela. Há um estranho tipo de mal-estar, um certo cansaço, em virtude do qual muitos se dizem cristãos e vão à Igreja sem que isso produza uma mudança nas suas vidas. A fé parece ser uma convicção entre tantas, uma atividade entre tantas: vive assim num estado intermediário de fraqueza. Para muitos, não é a fé que determina tudo. Mas, ou a fé é o motivo pelo qual poderíamos até abraçar o martírio, ou não é nada. Creio que o carisma de Dom Giussani consiste exatamente em dizer ao homem do nosso tempo: “Não podes caminhar dormindo! Deixa de andar arrastando-te, deixa de ser um cristão morno!”. Giussani tem tal firmeza na fé que diz a cada um, desafiando-o: “Olha, verifica se é verdade!”. E isso é um risco. É uma estratégia de alto risco, mas Giussani lança este desafio porque está certo de uma fé verdadeira.
Na capela do English College em Roma há um Crucificado, com a inscrição: “Ignem veni mittere in terram”, “Eu vim lançar fogo sobre a terra” (Lc 12,49). A Igreja, e estou pensando sobretudo na minha, muitas vezes apresenta-se como moderada, ao serviço de todos, ao lado dos mais pobres. Não quero diminuir estes aspectos, mas para muitas pessoas a Igreja não é um desafio real. Creio, aliás, que em Dom Giussani ardia um fogo e que ele o comunicou aos outros. Veio-me à lembrança um hino atribuído a Santo Ambrósio: “A boca, a língua, a mente, os sentidos, o vigor / cantem alto o Teu louvor; / a caridade se inflame do teu fogo / e o seu ardor acenda o nosso próximo”. Estas palavra fazem-me pensar em Giussani e em CL, por esta impressão de amor, de fogo que se comunica de uma pessoa para outra. Há quem possa pensar que levar a sério a fé significa sermos pessoas sisudas, ou um pouco tristes. Pelo contrário, o movimento está marcado pela alegria, por ir ao encontro do outro: isso parece-me uma autêntica letícia. Essa letícia que é descrita no salmo: “Como é belo e como é doce que os irmãos vivam juntos!”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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