Nós os vimos desafiar a polícia e o exército. Manifestar-se com cartazes apartidários. Até o sangue. Milhares de mortos. Homens e mulheres, muçulmanos e cristãos, pobres e intelectuais. Mas o que realmente está acontecendo em Argel, em Túnis, no Cairo... até em Trípoli? “Algo que tem a ver com o coração”, diz FRANCESCO ALBERONI. E que não nasce nos gabinetes
Mulheres e homens de todas as idades, pais de família, moças envoltas no véu preto. Nas imagens que há semanas lotam os espaços da mídia, vimos as praças cheias de gente comum: cristãos, muçulmanos, pessoas de facções e segmentos diferentes. Mas unidos nas manifestações contrárias ao poder. De Túnis a Argel, passando por Amã e Cairo. E agora também as líbias Bengasi e Trípoli. O Norte da África e o Oriente Médio estão em pé de guerra. “Um magma incandescente”, observa Francesco Alberoni, sociólogo italiano e editor do jornal Corriere della Sera, que há anos estuda os movimentos coletivos. “O que está acontecendo nesses países é a primeira fase da gênese de novas sociedades. Mas não nasce do nada: para que exista um movimento dessa natureza são necessárias pré-condições que possibilitem sua formação e seu crescimento, para além da centelha que detona a explosão.”
A que o senhor está se referindo?
Precisamos ver como se formou a massa crítica. Ocorre sempre assim nas revoluções. Se observarmos o Norte da África e os demais países que estão em chamas no Oriente Médio, veremos que, nos últimos quarenta anos, houve um forte aumento da população abaixo dos 25 anos. A mortalidade infantil caiu. Mas cresceu o nível da secularização.
E também a pobreza, a falta de trabalho, a disparidade na distribuição da riqueza, a ausência de direitos... São as faíscas no meio da palha.
Justamente, o que incentiva as pessoas a irem para a praça. Vemos pessoas pulando, dançando, sonhando. Parece o reino de Deus! Onde todos são irmãos. É um fenômeno de excitação coletiva, no qual se forma uma incrível massa de impacto, porque existem desejos de esperança. O declínio ideológico vem depois. No caso do Egito, por exemplo, estamos ainda na primeira fase. Mas é difícil pensar que não haja ainda alguma organização. Há a Irmandade Muçulmana, com suas ramificações, com o controle da universidade. Por outro lado, há o exército, que é uma elite rica com grandes privilégios, a casta dominante. No meio estão os outros, incluindo os coptas. Não creio que no Egito possa haver uma revolta do tipo iraniano. A Irmandade Muçulmana é uma dimensão política, não um clero organizado e armado territorialmente.
E as outras forças reformistas do mundo muçulmanos, os “laicos” e os intelectuais?
Não sei o quanto eles estão organizados. El Baradei é um reformista, mas são as forças organizadas que contam no momento das eleições. É preciso mobilizar duzentos mil ativistas. As eleições são ganhas com eles. E depois, nessas forças, é preciso haver a capacidade de diálogo e de planejamento de operações de longo alcance. O risco é confundir-se o jovem que grita na praça com o militante responsável que está pensando nas eleições que ocorrerão em setembro. O que estamos vendo é o Estado nascente, a grande dança.
Então, naquela praça já se está trabalhando em vista das eleições de setembro?
Já existem dados. Há um serviço de segurança, não há mais confrontos... Isso quer dizer que há pessoas trabalhando. Quando os defensores de Mubarak desceram à praça, quem organizou a contraofensiva? Eu creio no espontaneísmo das massas, mas creio também que, em vinte dias, criam-se necessariamente infraestruturas organizadas. O espontâneo e o organizado coexistem; ou melhor, o primeiro em geral arrasta o segundo. Alguém como Danton seguiu a espontaneidade popular, mas lhe deu uma forma e se tornou seu verdadeiro chefe. Todos pensam que é o chefe quem guia o povo. Ao invés, o líder é que se adapta àquilo que o povo quer. Dessa massa incandescente – estou convencido – emergirão novos chefes, talvez até com estruturas novas, que só com o passar do tempo poderão ser vistas.
O empurrão do povo... Uma vez Dom Giussani disse esta frase: “As forças que movem a história são as mesmas que movem o coração do homem”. É assim mesmo?
Sem isso, nada acontece. O coração do povo tem as categorias do Estado nascente: unum, verum, bonum. São os valores gerais que o povo quer. O declínio, o como, vem depois. Tomemos um valor como “a virtude”: o povo quer a virtude. Então, podemos fazer um “reino das virtudes”, à la Robespierre, ou decidir que a virtude será estabelecida pela sharia. O magma incandescente do Estado nascente ganhará precisão depois. Após certo tempo de namoro, a certa altura, é preciso tomar a decisão: para onde queremos ir? Zona rural ou cidade? Vamos ter filhos ou não? São escolhas. O movimento ganha precisão por meio das escolhas. Depois, podem nascer também os conflitos. Essa massa incandescente egípcia (mas não só ela) é impressionante. Não é a única na história. Mas, observando-a, vendo toda essa “fraternidade”, podemos ser tentados a pensar que daí nascerá espontaneamente a democracia.
Não é assim?
Seria a realização dos sonhos de Rousseau, o contrato social a partir do qual se expressa a vontade geral. Mas a vontade geral não existe; se existisse, seria infalível; se alguém fosse contrário a ela, seria morto. Eu, otimista, digo que quando se toma uma decisão – por aclamação ou eleição – é porque há instituições de convivência, há um processo. Não é uma coisa instantânea.
Enfim, não existe a “vontade geral”...
Há os “montanhards”, os girondinos, os cristãos, os muçulmanos. E se eu sou mais forte, ponho de lado os demais. A revolução devora seus filhos, como se diz. Não nos iludamos, ao ver o povo dançando, que deixou de existir a agressividade. Sim, são as mesmas forças que mudam a história. O que vemos acontecer no Norte da África é humano, é próprio do homem. E é uma força humana toda positiva, o grande coração pulsante que gera a sociedade. Sem ela, a sociedade não existiria. Claro, quando ela se transforma em norma ou instituição pode virar totalitarismo, terror, ou também um jogo de pesos e contrapesos que nós chamamos de democracia.
O problema da variação, de que estrada tomar...
No momento da excitação, os problemas desaparecem. Mas depois a questão se apresenta: quais instituições devem prevalecer? Não podemos prever. Quem assume o poder investirá contra o velho regime. Talvez partindo da desculpa de punir os corruptos. E as minorias, que conseguiram sobreviver antes, precisarão encontrar novos espaços e novas garantias. Os cristãos, por exemplo, são 10% da população. Historicamente, para os cristãos “oprimidos” a única saída era o êxodo. Não digo que serão expulsos agora. Os islamitas os obrigariam a ir embora. De fato, os regimes que dão melhores garantias às minorias são os regimes oligárquicos. A democracia, ao invés, requer o nascimento de direitos individuais, pessoais, diretos. Você, pessoalmente, é que deve votar. E são os iguais que se invejam. Não os ricos e os poderosos.
Mas, em toda essa dinâmica, quanto pesa a relação com o Ocidente? “A geração Facebook, que descobre o estilo de vida dos vizinhos europeus”: muitos disseram que as novas fronteiras da comunicação estão exercendo um papel importante, ao abrir os olhos dos jovens árabes...
Certamente eles se defrontam com um modelo “rico”, que os fascina. Mas é redutivo. As pessoas creem que a tecnologia faz a cabeça. Não é assim. Os movimentos islâmicos nasceram no século XX, e a sharia mais reacionária foi introduzida justamente pelo Irã, o país mais avançado científica e tecnologicamente do Oriente Médio, com Khomeini. Armas sofisticadíssimas, mísseis, e até bomba atômica. O país mais moderno da Europa, nos anos 1930, era a Alemanha nazista, mas era um país barbárico. Não podemos fazer a equação iluminista segundo a qual, se tivermos progresso técnico, científico, então teremos também progresso moral em paralelo. Pode haver o máximo progresso e a máxima barbárie. Os iluministas acreditavam ter alcançado o ponto mais elevado da modernidade, mas a guilhotina se tornou o ponto mais elevado da barbárie.
O Facebook não é só tecnologia: é comunicação. Isso não importa?
Nos Estados Unidos há o telefone, mas não há revoluções. A revolução aconteceu quando não havia o telefone. É uma questão estrutural. O motor é o coração do homem. Que pode chegar a produzir também coisas terríveis. Como o pai que mata as filhas para se vingar da mãe...
E o empurrão é sempre positivo?
Eu sempre o considerei assim. Sempre coloquei no centro do meu interesse as relações e o afeto. O amor intenso, o amor total. No fundo, essa gente que você vê nas praças é gente que se ama, que ama. Perigosa, certamente: podem nascer também as tensões. Acontece também com os casais, chegando, às vezes, até ao divórcio.
Muitas análises desprezam esse aspecto. Por quê?
É o mundo em que vivemos, onde o espírito humano é substituído por substâncias químicas. Fico irado quando ouço gente que, ao falar de coisas amorosas, cita a “oxitocina”, a “testosterona”... Não falam mais de sentimentos. No lugar das expressões da fenomenologia do espírito colocam fórmulas químicas. É uma cultura que reduz até o que acontece no Egito, na Líbia, no Bahrein. A cultura anglo-saxã, ocidental, olha apenas para o problema de como instaurar a democracia. Não sabem que o mundo é complexo.
E aí a democracia não acontece?
Com o tempo pode acontecer, mas sabemos que podem existir períodos de transição. No entanto, reduzem tudo a um esquema, para simplificar. “Fora Mubarak, democracia já”. Como no Afeganistão, no Iraque. Mas isso é uma loucura. É uma cultura política que ignora as razões do coração, o tumulto das paixões. Economicista: custo/benefício. E toda a ciência moderna baseia-se nisso, sobre como explorar do melhor modo os recursos, com o menor custo. No meio de tudo fica esse tumulto humano que incomoda, porque pensávamos que era como tínhamos em mente, no entanto... Não se pode aplicar o modelo da democracia se não se parte daí: você viu a praça? A Irmandade? O exército? Quem são eles, quais sonhos carregam, qual é a história deles?
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