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Passos N.125, Abril 2011

ACAMPAMENTO / MINAS

Van Gogh, a chuva e as crianças...

por Marco Aur

A aventura com as crianças durante o acampamento: ou esses mineiros são loucos, ou a promessa de satisfação é maior que o tamanho do nosso esforço

A manhã de segunda-feira de carnaval chegou como as outras anteriores, e como já havia sido previsto pela meteorologia: cinza. Não chovia, mas parecia que ia chover logo logo, e muito. Estávamos já há dois dias presos no nosso acampamento, com pouco o que fazer e com algum esforço para acreditar que tinha valido a pena sair de casa para enfrentar horas e horas de viagem para estar ali. Alguns de nós havíamos saído de Florianópolis, de São Paulo, de Aracaju, de Brasília para aportar ali no interior de Minas Gerais, a quase 1.300m de altitude, numa vilazinha chamada Lapinha da Serra. Todo esforço para chegar lá, inclusive com erros graves de direção, com a falta de um posto de gasolina, com a chuva que naquele primeiro momento já assustava e nos avisava da sua presença forte e constante, a estrada de terra que não era pouca, a fome... Ou esses mineiros são loucos, ou a promessa de satisfação é maior do que o tamanho do nosso esforço.
O cenário é incrível, um vale gramado com um belo riacho cor de café, água limpíssima. Acima de nós um paredão de pedra que supera os 1.500m de altitude. Um cenário digno de grandes batalhas medievais em imponência e beleza. Flores amarelas, vermelhas, brancas e azuis... pequenas, muito pequenas e rasteiras sobre o tapete verde. Ou então, exuberantes rosinhas formando um grande buquê, ali, pronto para as meninas. O paredão de pedra se impunha e cortava de norte a sul a nossa vista. Qualquer ser vivo se veria impelido a mover-se, a enfrentá-lo, a despi-lo, a desejar possuí-lo. O que pode haver do outro lado, o que pode ser visto de lá? “E é a consciência de que nada (exceto a doença) pode me arrancar esta força que começa agora a se desenvolver, é esta consciência que faz com que eu encare o futuro com coragem, e que no presente eu possa suportar muitos dissabores” (Van Gogh, in Cartas a Théo, L&PM Pocket vol. 21, Porto Alegre, 2008, p. 72).
É o desejo... sem esforço... uma atração irresistível... a petulância da natureza em se impor e nos desafiar. Se parar de ventar, se estiar... partiremos. Van Gogh sabia que era necessário acordar antes das quatro da manhã para ganhar as várias tonalidades de cinza que em outro momento ele não veria, porque é a melhor hora para ver as grandes linhas, quando as coisas ainda estão num mesmo tom (Id. p. 75). E o aviso que na noite anterior foi dado era simples e direto: só iriam na caminhada aqueles que se sentissem sinceramente capazes fisicamente: era um desafio que certamente superaria oito horas de caminhada, inclusive com a possibilidade de enfrentar a chuva. O discurso era direto, com todas as dicas de segurança ditadas em detalhes pelo nosso amigo Diego que também é escoteiro experiente. Achamos graça de tantos detalhes, mas uma coisa, como um grande aviso repousou lá dentro do nosso coração: não será fácil... e eles foram...
Disse eles, porque, apesar de estar mais ou menos em forma, decidi ficar com quem não conseguiria e sobretudo com as muitas crianças. Ao vê-los partir, me senti frustrado a princípio, me senti abandonado ali com todos os outros que não puderam se arriscar na aventura. Era como se nós que ficamos não tivéssemos sido tocados pelo desafio e pela atração daquela natureza, daquela presença imponente. Mas olhava as crianças e percebi que elas não reagiam assim, com pensamentos gorados, sem força. Elas exigiam daquele momento uma experiência tão incrível como a daqueles que se despediram de nós. Chamei alguns meninos e pedi que me ajudassem a fazer uma bandeira, um estandarte. E propus: “Temos uma missão!...”. Foi muito imediato, fácil e simples. Eles também queriam se arriscar e nós não poderíamos fazer algo menor do que o desejo deles.
Van Gogh tinha plena consciência do seu valor, da grandeza do seu desejo e da sua arte: “Pessoas como eu não deveriam ficar doentes. É preciso entender bem como eu considero a arte. Para chegar à verdade, é preciso trabalhar longamente e muito. O que quero dizer e o que eu aspiro é tremendamente difícil, e no entanto não acredito estar aspirando alto demais” (Ib. p. 78). O desejo é a coisa mais importante do mundo, e as crianças o têm, nato. Na tarde do dia anterior elas haviam nos dado provas da sua grande capacidade de aderir às propostas, se elas evidentemente fossem atraentes e justas. Na necessidade de mantermos o nosso acampamento e a natureza ao nosso redor limpos, elas se dispuseram a formar um grupo para se responsabilizarem pelo lixo junto com um adulto. Uma adesão comovente independente do esforço. O esforço não é nada se a meta é razoável e precisa. E o mesmo desejo de tornar mais bonito o nosso ambiente moveu também a nossa disposição para sairmos em uma grande comitiva com elas e com algumas mães.
Formamos uma roda improvisada e cantamos com muita vontade. A necessidade era de todos ali, e de repente uma grande movimentação tomou conta do acampamento. Cada um de nós, adultos e crianças, foi dando forma àquela aventura. O pessoal da cozinha liderado pelo Alípio se preparava, o Gianfranco arrumou uns cavalos para transporte do almoço, a Kika fez a foto oficial do grupo, a Bete, a Eliane, a oração antes de sairmos... Fizemos tudo como os adultos: indicações do nosso destino, as roupas apropriadas, o tempo de caminhada, a possibilidade de tomarmos chuva, a cachoeira perigosa, a caixa de marimbondos, a travessia e o banho no riacho. Ninguém poderia avançar adiante do nosso estandarte. Tínhamos um guia e era preciso seguir. Saímos com o estandarte erguido e assim retornamos. Lembrando do padre Virgilio, eu disse a eles: “A natureza nos dá vários sinais e devemos obedecê-los, devemos ser razoáveis quanto à percepção da beleza e quanto aos perigos: o rugir do vento, o ar fresco e frio, o canto dos passarinhos, o movimento do mato (aquela região certamente tem cobras e insetos), as nuvens, o sol...” Seria preciso ouvi-los.

Boca de forno. Já na estrada avistei um tronco seco de árvore muito bonito que reinava ali no descampado e me lembrei de uma brincadeira muito divertida: boca de forno, forno, tudo que seu mestre mandar, faremos tudo, e se não fizer, ganharemos bolo... vai ali, vai ali, vai ali e bate a mão naquele tronco seco! Foi uma correria e ninguém queria ser o último a chegar e ganhar um bolo (castigo). Foram e voltaram e continuamos juntos, em fila, seguros, simples, sem resistências em seguir, sem reclamar, uma unidade incrível. Pensei nas minhas aulas de música com as crianças das Obras Educativas Padre Giussani (as creches da Rosetta). As crianças são muito dóceis se sabem para onde olhar, se têm alguém para olhar. Seguir é fácil se temos confiança, se existe a certeza de que a proposta é justa, se acreditamos (ou desconfiamos, pelo menos) que existe ali uma promessa de satisfação e afeição. Ninguém se perdeu. Havia uma tensão no ar, algo poderia acontecer a qualquer momento, algo novo. Chegamos perto do rio e começamos a margeá-lo. Teríamos que atravessá-lo e uma pessoa havia me dito que o rio estava muito cheio e que seria difícil. Dentro de mim esse problema, fora de mim as crianças e um gramado lindo demais... boca de forno... vai ali, vai ali, vai ali e todo mundo deitado na grama... Que espetáculo de adesão e simplicidade, sinceridade! Era justo estarmos ali com elas e isso me deu forças. Procurava uma trilha para seguir, pois certamente seria o melhor caminho. Continuamos margeando e passamos perto das vacas que ali pastavam. O boi nos avistou e resolveu chegar perto... tensão. Mandei que não olhassem nos olhos dele e que continuássemos. O Tatá fez uma barreira e deu tudo certo. Achamos a trilha, mas mesmo assim teríamos que atravessar o rio e molhar os pés. Foi divertido, água fresca e pedras redondas para pisar. Atravessamos os menores no colo e ali no grande gramado paramos para descansar e comer qualquer coisa. De lá avistamos os cavalos que estavam chegando com o nosso almoço e resolvemos sair antes deles nos alcançarem.
Pegamos uma trilha de pedrinhas brancas e começamos a subir o morro em direção à cachoeira. Subimos com cuidado, pois as pedrinhas estavam soltas. Descemos mais adiante e paramos perto da entrada da cachoeira. Era uma grota um pouco escura pela cobertura das árvores que ali nasceram. Pelas margens do rio podíamos ver que a chuva desses dias fez com que o volume de água tinha crescido muito. Resolvi entrar por debaixo da copa das árvores até o poço. Era um poço com água muito escura. Não tinha perigo e pudemos nos aproximar da margem. Viemos de dez em dez para não escorregar. Ao retomar a trilha tomamos nossa primeira chuva do dia. Foi rápida e nem deu tempo de botarmos as capas direito. Ao subir tinha avistado uma árvore que com a sua sombra poderia nos abrigar para o almoço. Para lá nos dirigimos e nos sentamos para comer. No meu coração uma grande questão: “Como a natureza nos serve, como fomos feitos para aquilo ali!”. Descemos e fomos para a nossa etapa final antes de tomarmos o rumo de casa: o banho no rio. Todo mundo com a água fria na canela sem coragem para entrar totalmente... boca de forno... vai ali, vai ali, vai ali e joga água pra cima! Festa seguramente.
Um pouco antes conseguimos avistar o grupo de jovens e adultos lá no alto da montanha. Eles pareciam mosquitinhos coloridos andando devagar. Gostamos demais e começamos a gritar muito... Ah, se eles nos vissem! Olhamos à nossa direita e vimos uma grande nuvem escura vindo em nossa direção – os sinais –, era a chuva grossa que logo nos apanharia. Convocamos todos a tomar a outra margem do rio e nos preparar para sair dali rapidinho. Ia ser um banho duplo. Ficamos muito preocupados, pois entre nós haviam crianças pequenas. Alguns pais deixaram seus filhos irem sozinhos num abandono e uma confiança sem limites. Era de assustar, a amizade e a confiança chegava a níveis de comunhão inimagináveis... Nada podia nos deter, tínhamos os amigos que estavam sempre ali, tínhamos O grande amigo. De repente, vimos à nossa esquerda dois deles chegando com uma grande lona preta para nos servir de abrigo: Heltinho e Martionei. Quarenta minutos de chuva torrencial e nós ali embaixo da lona. Mais três amigos chegaram ainda para nos resgatar... Entendi logo: as mães que ficaram no acampamento... “Após ter desenhado durante algum tempo este trecho de terra, houve uma tempestade com um formidável aguaceiro, que durou bem uma hora. Mas eu tinha tomado um tal gosto pela coisa, que fiquei no meu posto e procurei bem ou mal um abrigo debaixo de uma grande árvore. Quando a tempestade passou e as gralhas voltaram a voar, não me arrependi de ter esperado...” (V. Gogh, p. 84-85).
Saímos dali ainda mais contentes: uma alegria enorme pela aventura e a certeza de que tínhamos alguém que cuidava de nós. Tomamos a direção do acampamento com o estandarte à nossa frente erguido. Na virada do morro fomos vistos pelas mães: uma gritaria, uma festa... Já pertinho de casa tomei o Chico (3 anos) do colo do Martionei e disse pra ele: “Vamos, você vai chegar andando”. De noite, quando chegaram os adultos e jovens como grandes heróis – cansados, mas cheios de orgulho, pois vencedores –, tiveram que ouvir, muito mais que contar, as incríveis histórias da nossa aventura com as crianças...

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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