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Passos N.126, Maio 2011

DESTAQUE - João Paulo II

“Não tenhais medo”

por Alessandro Banfi

Desafiou a angústia que pairava sobre o mundo. Alertou-nos para o perigo das ideologias, de um lado e de outro do Muro. Mas, sobretudo, apostou toda a sua vida num “tabu”: Jesus Cristo e a sua pretensão de ser “centro do cosmo e da história”. Nestes dias em que Bento XVI o proclamou beato, lembramos a vida (e a atualidade) de um Papa a quem tanto devemos

Tinha havido uma chuva terrível, mas no final da tarde tudo se acalmou, e me lembro daquele padre polonês, meio manco, que nos acompanhava. Não sei bem o que dizem as atuais neurociências, mas a minha memória funciona assim: voltando para trás, encontro alguns flashs, como num sonho. Pensando no início de tudo, na primeira vez que considerei a hipótese de um Papa polonês, retorno àquela tarde de agosto de 1977. Era o segundo ano em que CL organizava a peregrinação à Polônia, de Varsóvia a Czestochowa, e como era lindo estar ali conversando com aquele padre, sob a luz do pôr do sol, após a tempestade.
A luz visível da Europa central, que já era uma espécie de antecipação do que estava por acontecer. Não é fácil resumir trinta anos de convivência com um santo, trinta anos da nossa vida tão marcados por esse homem que se viu alçado a Bispo de Roma quando o medo dominava a cena e que, depois, nos acompanhou em várias passagens. Porém, o princípio foi lá atrás, e depois um outro flash: como de uma luz a outra, eis aquela outonal e clara do adro de São Pedro, em Roma. Outubro de 1978 e ele diz: “Não tenhais medo, abri as portas para Jesus Cristo!”.
Karol Wojtyla, o homem que veio do Leste, havia captado o nosso sentimento mais profundo: o medo. Entre o verão da peregrinação e aquele dos três Papas acontecera o sequestro de Aldo Moro; vivíamos cobertos por uma capa de angústia e com o sentimento de que a Igreja estava para ser definitivamente expulsa pelas forças do mundo. Recordo o queridíssimo Paulo VI, quase que curvado pela dor na escura Igreja de Jesus, celebrando a memória do amigo político que fora assassinado pelas Brigadas Vermelhas. Os artigos de Pier Paolo Pasolini sobre a Via Sacra, meio vazia, no Coliseu em 1974 e, depois, a incrível esperança quebrada numa noite daquele pontificado que durou só 33 dias: Albino Luciani. Um pároco bom e um bom pároco para a Itália.

O carvalho polonês. No entanto, eis que chega o carvalho polonês, um homem jovem que se impõe ao mundo conjugando duas palavras-chave: medo – como dissemos – e uma outra palavra, outro quase tabu daqueles anos loucos: Jesus Cristo. A Igreja podia seguir adiante, descobria-se a sua origem própria: o seu Senhor. Parecia uma revolução a simples proposição disso, da confiança nEle para superar o medo. Parecia uma coisa doida repropor ao mundo, a todo o mundo, o Cristo e o Cristo crucificado. Em continuidade com o que havia acontecido, e daí o nome: João Paulo II. Tradição e inovação.
Não por acaso, sua primeira grande encíclica foi a Redemptor hominis, com uma mensagem que tanto nos entusiasmava, porque era o coração da nossa experiência. Jesus realiza a humanidade, não a castra, não a limita, antes a realiza em toda a sua potencialidade. É para sermos homens melhores, mais felizes, mais verdadeiros, mais sérios com o próprio destino, que havíamos aceitado o desafio de ser cristão: “Cristo, centro do cosmo e da história”, que força intuitiva, que inversão de perspectiva em relação à cultura católica oficial italiana (in primis, aquela que saiu da Universidade Católica de Milão), que havia predominado naquelas décadas!
Um Papa que gostava de cantar, que quebrava o protocolo, que adorava estar com os jovens. Um Papa – como nos contavam os amigos da comunidade de Roma – que gostava de corais e de guitarras, e de comemorar datas, numa simplicidade e amizade que no início até espantavam. No curso do tempo, se descobrirá que Wojtyla quer ser e será o Papa dos jovens, das viagens, do contato com o povo, do coral improvisado que alcança o coração dos simples. Gostava da comunhão. E alçava a libertação à categoria de grande tema para desafiar/encontrar o mundo contemporâneo.
Em agosto de 1980 nasce o Solidarnosc (o Solidariedade), com aquelas incríveis imagens que irrompem dentro de nossas casas: as confissões nos pátios das fábricas, os operários em greve em Gdansk, a Nossa Senhora Negra nos portões... Em apenas dois anos, o mundo muda de atitude em relação ao Papa e à Igreja. O primeiro filho espiritual de João Paulo II é um operário: chama-se Lech Walesa e a mídia ocidental logo se encanta com ele. O novo Papa viaja sem descanso, vai de Leste a Oeste. Os muros que sustentavam o mundo começam a rachar. Muros físicos, de poder político e até militar. Mas também muros espirituais: ateísmo, laicismo, consumismo... Na Igreja começa um processo de repensamento das modas teológicas pós-conciliares. Mas não há um projeto preparado nos gabinetes; as consequências daqueles primeiros e explosivos anos de Pontificado chegam de improviso, quase que “por acaso”.
E quando Ali Agca dispara, em plena Praça São Pedro, aqueles malditos tiros contra o Santo Padre, dia 13 de maio de 1981, suspeita-se que o plano viria de um outro poder, mundano, que conspira contra o homem que veio de longe. O ódio do mundo explodiu num único excesso de Mal, mas não de modo definitivo. Desde então, João Paulo II passou a conviver com dores físicas e, talvez, com uma nova ameaça espiritual e cultural. De testemunha passou também agora a mártir.
João Paulo II foi um terremoto também para a Igreja italiana. “Sois como eu, sem pátria, pois não sois compreendidos por essa sociedade”, havia dito pessoalmente a Dom Giussani e repetido depois, até nos acostumarmos com a ideia de um Movimento que nunca se sentia tranquilo, mas que participava com obediência e empenho das vivências da catolicidade italiana. Mas Wojtyla, como que reorganizando as peças de um moderno mosaico, revolucionou os ritos e as hierarquias costumeiras no encontro da Igreja italiana realizado em Loreto, em abril de 1985. Ali deu uma ordem precisa e concreta, de unidade entre os católicos italianos e de evangelização da nossa nação, citando associações leigas e os movimentos. “Para promover a comunhão eclesial e a capacidade de presença apostólica da Igreja parece muito significativa e carregada de promessas a grande variedade e vivacidade das agregações e movimentos, sobretudo leigos, uma característica do atual período pós-conciliar”, disse. Não por acaso, a partir de Loreto tem início um novo período da Ação Católica e um novo compromisso da Conferência Episcopal Italiana, guiada pelo cardeal Camillo Ruini. No início, o Papa polonês divide, suscita muitos inimigos, inclusive eclesiais, grupos editoriais progressistas movem contra ele uma guerra sem trégua. Só o tempo recolocará as coisas no devido lugar.
A encíclica Sollicitudo rei socialis e o princípio de subsidiariedade, recordado e reforçado nela, funcionam não só como combustível para a locomotiva do Solidariedade, para dentro do Muro de Berlim, mas também catalisam a atenção de todos os católicos que se empenham na vida pública e social, em qualquer canto do mundo. O fim dos sistemas socialistas e soviéticos, ocorrido em 1989, representa como que o final surpreendente do século XX, que no papado de Wojtyla encontra uma forma de resgate final e histórico.
Mas não é o fim da história, ao menos para ele, João Paulo II, e para a Igreja. É, talvez, o início de uma nova fase, na qual a insistência sobre a paz e sobre os direitos dos últimos passa a ser enfatizada. Para quem viveu a epopeia da opção pacifista, por ocasião da primeira guerra do Golfo (1991), dentro da redação do jornal Sabato, aqueles foram anos entusiasmantes. De novo, o Papa quebrava o esquema habitual (e já criado pelos meios de comunicação de massa) da aliança entre Igreja Católica e Ocidente. Apenas 48 meses após a queda do Muro de Berlim, o Papa se negava a desempenhar o papel que lhe fora atribuído de “capelão do presidente Bush”. Controverso e, talvez, também discutível na oração interreligiosa de Assis, extraordinário e profético no primeiro mea culpa do Coliseu, verdadeiro cume de um Pontificado dominado pela palavra Misericórdia, na oração e nos comportamentos. Pontificado alegre e imediatamente mariano, próximo da religiosidade popular do povo simples, dos santos de todos os dias, mas também da grande Madre Teresa de Calcutá, amiga pessoal, ou do Padre Pio, que são levados às honras dos altares com a segurança do Pastor e a determinação ardente do místico. Pontificado luminosamente dedicado a Maria (Totus tuus) e às simples e repetidas peregrinações a Lourdes, Fátima, Loreto, Czestochowa...

Um humilde servo. Os últimos anos tornarão mais límpido o testemunho diante de todos, levando ao extremo aquele primeiro apelo sobre Jesus Cristo. É ele próprio, João Paulo II, a encarnação de um humilde servo que se oferece aos homens e ao mundo, de modo indefeso, desarmado. Humilde servo que pode também ser negado, rejeitado, e rejeitado até à morte. Homem das dores, lembra a todos os enfermos do cosmo e da história que não estão mais sós e que Jesus quer bem também a eles.
O último flash é aquele dos primeiros meses de 2005, marcados por três mortes, próximas e inesquecíveis: a de irmã Lúcia, vidente de Fátima, a de Dom Luigi Giussani e, logo depois, a extraordinária e memorável partida desta Terra de Karol Wojtyla. Um adeus que durou vários dias, com jovens na fila, homens e mulheres em oração, de um mundo inteiro comovido. Último (ou primeiro) milagre de um “santo imediato”.


O PONTIFICADO EM NÚMEROS

VIAGENS Durante o seu pontificado, João Paulo II fez 146 visitas pastorais na Itália e, enquanto Bispo de Roma, visitou 317 paróquias romanas (num total de 333). As viagens apostólicas no mundo foram 104.

ESCRITOS Entre os seus documentos principais, incluem-se 14 Encíclicas, 15 Exortações Apostólicas, 11 Constituições Apostólicas e 45 Cartas Apostólicas. Escreveu 5 livros: Cruzando o limiar da esperança (1994); Dom e mistério: no cinquentenário do meu sacerdócio (1996); Tríptico romano, meditações em forma de poesia (2003); Levanta-te e anda! (2004) e Memória e Identidade (2005).

SANTOS E BEATOS Celebrou 147 cerimônias de beatificação, proclamando 1.338 beatos (entre os quais Madre Teresa, Pio IX, João XXIII) e 51 canonizações, num total de 482 santos (entre os quais Maximiliano Kolbe, o padre Pio de Pietrelcina, Jose-maría Escrivá de Balaguer). Presidiu a 9 consistórios, nos quais criou 231 cardeais (mais 1 in pectore).

ENCONTROS Nenhum Papa se encontrou com tantas pessoas como João Paulo II: nas Audiências Gerais das quartas-feiras (mais de 1160) participaram mais de 17 milhões e 600 mil peregrinos, sem contar as outras audiências especiais e as cerimônias religiosas, além dos milhões de fiéis encontrados no decurso das visitas pastorais na Itália e no mundo; foram também numerosas as personalidades governamentais recebidas em audiência: basta lembrar as 38 visitas oficiais e as outras 738 audiências ou encontros com Chefes de Estado e as 246 audiências e encontros com Primeiros-ministros. O seu pontificado, que durou quase 27 anos, foi um dos mais longos da história da Igreja.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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