Silêncio, compostura e nenhuma raiva. O tsunami devastou as suas vidas, mas eles não iriam embora. Desafiam a morte ao lado de um reator nuclear. Fazem uma reverência aos feridos antes de cuidar deles. Porque “sentem” os outros, e aceitam a realidade. ETSURO SOTOO, escultor da Sagrada Família de Barcelona, nos introduz no coração de seu país, onde a dignidade “é tudo”
Etsuro Sotoo, o escultor que trabalhou durante trinta anos no acabamento da Sagrada Família de Barce-lona – a obra-prima de Antonio Gaudí – é japonês. Nas últimas semanas, no Ocidente, ficamos muito tocados com a tragédia que se abateu sobre seu povo, que até ontem nos parecia distante, por causa da cultura e também dos sentimentos. Tocados não apenas pela dramaticidade das notícias: ver as mães japonesas fugirem de Tóquio de trem assustadas com a radiação, olhar a ternura com que tratavam suas crianças penduradas no pescoço, fez-nos sentir mais próximos do que o normal.
“Quer sejamos japoneses, africanos ou italianos – disse Sotoo –, Deus colocou algo no mais profundo do nosso coração. Normalmente, não entendemos o que nos liga, mas quando acontecem grandes tragédias como esta sentimos que alguém colocou em nossos corações a mesma coisa. Por isso, de repente, nos descobrimos capazes de nos comunicar mais facilmente. É como quando encontramos a beleza: também nesse caso nos damos conta de que nós, homens, percebemos todas as coisas da mesma maneira. Mas se não acontece algo muito trágico ou terrivelmente belo, na vida cotidiana não nos damos conta disso: esquecemos.”
Porém, vocês, japoneses, exprimem a dor com uma sobriedade, uma compostura que nos impressionou.
Quando se experimenta uma dor, assim quando se experimenta uma alegria muito grande, ou quando encontramos coisas verdadeiras, as palavras faltam. Diante de quem perdeu tudo, para quem viu a própria família morrer, não há nada a dizer. Se apenas olhamos essas pessoas nos olhos, compreendemos de maneira profunda a sua dor, que não é possível externar. Muitas vezes, nós pensamos que tudo pode ser expresso, que deve ser expresso: não é assim. Aquilo que você quer saber, antes mesmo de ser dito já deve ter entendido.
O que é a dignidade para o japonês?
A dignidade é a própria pessoa. Se você perde a dignidade, não existe mais.
Quem dá este senso profundo daquilo que você é, que é chamado a ser?
Aquele que me criou. Nós existimos, mas sem dignidade não existimos realmente. Também uma sociedade, ou um país, sem dignidade não podem existir. É isso o que diz a história. O samurai japonês é um homem que entrega sua vida inteira para defender a dignidade, sua e de outros homens, e sabe como fazê-lo. É mais importante a sua dignidade do que a sua vida. Mas é assim, no fundo, também para um monge de clausura.
Falando em samurais, para tentar apagar os quatro reatores da usina de Fukushima, uma centena de homens, voluntariamente, lançaram suas vidas no fogo nuclear para salvar metade do Japão.
Acompanhei a história de um desses operários. Sua família foi atingida pelo tsunami: a mulher e o filho pequeno saíram da cidade e não têm mais casa. Ele foi trabalhar na usina. Um jornalista perguntou àquela mulher: “A senhora sabe que pode não ver mais seu marido?”, e ela respondeu que estava orgulhosa daquilo que ele estava fazendo. É um drama, evidentemente. Todo o mundo espera que esses homens sobrevivam, porém aquele operário colocou sua vida em risco para salvar o povo. E, no fundo, aquilo que deseja salvar é a própria família. Sua família sabe disso e permanecerá ligada a ele durante toda a vida, não importa o que lhe aconteça.
Nos momentos dramáticos, as pessoas aprendem de novo a se ajudarem, a não pensar apenas nos seus negócios.
Uma mulher caminhava quilômetros e quilômetros, procurando diesel para acender a estufa de sua casa, pois seus filhos tremiam de frio. Não encontrou muito combustível: não era suficiente para a noite. Então, ela fez seus cálculos e, ao invés de deixar a estufa acesa a noite inteira, a acendeu por uma hora e guardou um pouco de diesel para o dia seguinte. Assim, sobrou um pouco de combustível, que ela dividiu com quem estava perto dela. Essa é a inteligência. A inteligência não é saber roubar aquilo que o meu próximo possui, mas compartilhar as coisas com ele. Compartilhar e com-viver: essa é a inteligência.
É verdade que, para o japonês, o “eu” conta pouco, que prevalece o “nós”?
Não, conta muito. Mas você é parte de uma comunidade, de uma família, parte da sociedade: se você não é parte de nada, você não existe. Esta, mais uma vez, é a dignidade: não posso ser eu mesmo sem os outros.
O que um povo pode conseguir junto, com essa força? Uma tradição?
Os japoneses, como sabemos, não são católicos, mas sabem o que é o coração. Conhecem o amor. Um médico anda pelos bairros destruídos, visita os feridos nos hospitais e ajuda todos. São pessoas que não têm mais nada e ele não conhece nenhuma delas. Por que faz isso? É um mistério. Desafia a morte. Por quê? Mistério. Porém, somos homens e fazemos isso. Essa ideia de pensar nos outros, de “sentir” os outros, faz parte da educação japonesa. Eu observava esses médicos voluntários que se mobilizaram depois do tsunami: primeiramente, cumprimentavam os doentes. Por mais grave e urgente que seja a situação, aquela reverência significa exatamente isso: pensar nos outros, porque aquilo que aconteceu com eles hoje, poderá acontecer comigo. Assim como eu, que sou um escultor, preciso pedir permissão à pedra antes de começar a esculpi-la, eles também precisam se inclinar diante daqueles homens feridos e lacerados antes de curá-los.
Hiroshima, Fukushima... Por que o Japão precisa ser sempre o primeiro a experimentar na sua pele os medos e as destruições mais atrozes que nosso mundo esconde dentro de si? Você já se perguntou isso?
Por que você precisa viajar e ficar acordado trabalhando até tarde da noite? Por que um outro precisa cuidar da família ou da Fraternidade? Porque cabe a você. Sim, muitas vezes eu me pergunto: por que os japoneses não abandonam o Japão? Eles sofrem todos esses tufões, terremotos, tsunamis e apesar disso, amam seu país. Todos. Eu mesmo, embora viva há muitos anos na Espanha, amo o Japão. Uma mãe, um pai que têm um filho deficiente, por que não o abandonam? Porque o amam. O recém-nascido, que não consegue fazer nada, todos o amam mais. Sentimos que é necessário.
O que é a natureza para vocês? Não se rebelam contra ela nem mesmo quando mostra uma face tão maligna.
Se pensássemos que a natureza é perversa, não poderíamos pensar que nós somos natureza. Os ocidentais consideram a natureza como algo a ser conquistado, a ser civilizado. Os japoneses pensam que se não conseguirmos conviver em harmonia com a natureza, não existiremos mais. O tsunami é um fenômeno natural, não se trata de tentar se opôr a ele: obedecendo, é possível entender muito mais. A própria tecnologia só pode avançar junto com a natureza: se não obedecemos à natureza não vamos em frente verdadeiramente. Estava observando na televisão uma mulher que procurava sua família há cinco dias, andava a pé pela cidade destruída, perguntava a cada pessoa na esperança de encontrá-los. De onde nasce essa força? Desse amor. E quando, no fim, descobrir que seus queridos estão mortos, o que poderá fazer? Gritar, se rebelar? Não: aceitar a realidade.
Isso não corre o risco de ser um fatalismo cego, onde emerge outra vez, mesmo em uma sociedade secularizada, seu fundo shintoísta?
Não. Nós, japoneses, sabemos que a natureza nunca perdoa. A culpa é nossa que nos esquecemos de que ela é tão grande e forte.
Você está dizendo que mais do que fatalismo é o reconhecimento de um dado de fato: somos nada. Então, o que é a postura de vocês? Realismo?
Exatamente. A única coisa que podemos fazer é aprender com a realidade. É preciso obedecer à natureza e, dentro do nosso limite, fazer tudo o que é possível: esse é o Japão.
Na cultura de vocês existe a ideia de uma positividade última da realidade, de algo que cuida, apesar dos desastres com os quais o homem inevitavelmente se depara?
A positividade é aquilo que estamos tentando dizer: aceitar aquilo que devemos enfrentar. O homem pode e deve fazer tudo aquilo que lhe é possível, mas é preciso também reconhecer o nosso limite. Não se pode desafiar frontalmente a natureza. Que eu saiba, o único ocidental que entendeu muito bem isso foi Gaudí. Ultimamente, estava pensando no fato de que nós mesmos somos natureza. Isso não significa que somos apenas uma parte da natureza, no entanto... A beleza é a luz e o esplendor da verdade, mas essa luz, esse esplendor somos nós, homens.
No momento mais agudo da crise nuclear o imperador Akihito apareceu na TV – coisa que nunca aconteceu antes – e disse ao seu povo que tinha chegado o momento de rezar: o que isso significa para vocês?
Rezar é unir, unir e celebrar. Todos olham juntos para aquilo que os atingiu, e compartilham a dor de quem chora.
Não é a nossa maneira de rezar.
Sim, é diferente. O imperador é o símbolo do Japão, todos o escutam. O que ele está dizendo a todos é: unamo-nos. Rezar, para nós, faz parte do agir. Você não pode dizer: rezei, fiz a minha parte dessa maneira. Não, você também precisa agir. Como escrevi no meu livro A liberdade vertical, que acabou de ser lançado na Espanha: qualquer trabalho, se é feito de maneira digna, é um modo de rezar.
O senhor se tornou cristão: hoje, olha para esses fatos de maneira diferente?
Mesmo antes de me tornar cristão já experimentava essas coisas: a pessoa que ajuda, sente como a coisa mais necessária para si, ajudar. É claro que o doente precisa do médico, porém a necessidade maior é aquela que sente o médico de ajudar os outros. Hoje, compreendo tudo isso com clareza graças à minha conversão. Se não tivesse me tornado cristão não teria entendido isso.
Na sua cultura, existe o conceito de esperança?
Sim, sempre existiu. As pessoas que sobreviveram ao tsunami só poderão recomeçar a partir daí. Os japoneses falam muito de esperança, é uma coisa natural para quem está vivo, mas não é fácil compreendê-la de verdade. Muitas vezes, a esperança pode ser algo um pouco material, ou um sentimento limitado... Graças à minha conversão eu entendi que a esperança, a fé e a caridade estão unidas.
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