A ligação com o povo. A ameaça islâmica. E a escolha por ficar, até o martírio. Resultado: no (belíssimo) filme que relata a história dos monges assassinados na Argélia se encontra “a chave de leitura para entender toda a história do homem”. Eis por que
Em É possível viver assim?, Dom Giussani escreve: “Se o sacrifício é aceitar as circunstâncias da vida como acontecem, porque nos tornam correspondentes, participantes da morte de Cristo, então o sacrifício se torna o ponto-chave de toda a vida – a vida vale pelo sacrifício que vive –, mas é também o ponto-chave para entender toda a história do homem”. Quando os monges trapistas de Tiberine, no filme Homens e Deuses, jantam juntos pela última vez, o diretor faz uma tomada lenta, em primeiro plano, de seus rostos, cheio daquela atenta hesitação de quem desejaria relatar, em poucos instantes, o ponto central de cada uma de suas histórias. São apenas faces, faces de pobres homens. Mas, sobre cada uma delas é possível perceber a leve palpitação de uma existência inteira de graça e oração, de riso e de choro, de espera e de pressentimento, de esperança e de alegria. E de sacrifício, “o ponto-chave de toda a vida”. Olhos que choram lágrimas de alegria – “habet et laetitia lacrimas suas”, escrevia Ambrósio: mesmo a letícia tem suas lágrimas. Choram de maravilhamento grato, como se estivessem diante de um espetáculo maravilhoso que não é obra deles. Aquele espetáculo é a graça que brilha em suas vidas.
A cena acontece na última película assinada pelo diretor Xavier Beauvois. Des hommes et de dieux é o título original do filme que, em maio de 2010, venceu o Grande Prêmio Especial dado pelo júri do Festival de Cannes. Ali se conta a história de oito monges franceses da Ordem Cisterciense da Estreita Observância, sete dos quais foram mortos em 1996 em circunstâncias ainda misteriosas no mosteiro de Tiberine, perto da cidade de Medea, a noventa quilômetros ao sul de Argel, onde estavam em missão. É a história de suas vidas no mosteiro – o trabalho e a oração –, dos vínculos de amizade e afeto que os ligavam às pessoas de religião islâmica com os quais compartilhavam dificuldades e alegrias, da obra de caridade que realizavam, como os cuidados médicos oferecidos pelo velho Padre Luc a cento e cinquenta pessoas todos os dias. A história do silencioso rio de graça que alimentava a vida da pequena comunidade: a recitação cantada do Breviário e a missa cotidiana.
Até o fim. Depois, num suave, mas dramático crescendo, os religiosos começam a se reunir numa sala do convento, à noite, em torno de uma mesa nua, para decidir se ficam na Argélia ou voltam para a França. A ameaça do terrorismo islâmico parece se aproximar e os homens do exército querem impor a construção, em torno do mosteiro, de uma guarnição armada: uma barreira insuportável entre a vida dos monges e a vida de seus amigos. Os diálogos se cruzam na mais apaixonada e humilde sinceridade: o medo não é censurado, o martírio não deve ser buscado, seria pecado de orgulho. No fim, decidem ficar. No meio tempo, encontram-se com os terroristas, exatamente na noite de Natal, quando aqueles homens armados irrompem no convento. Padre Christian citou para eles o Corão, a passagem sobre Jesus, Príncipe da Paz, e o chefe dos terroristas continuou, comovido, a recitar o trecho que conhecia de cor. E coube a Padre Luc curar um ou outro deles, ferido sabe-se lá onde.
Desejam ficar. E ficam, até o fim.
A câmera que faz a tomada daquela última cena – e que se movimenta lentamente, para e, depois, por um momento volta para trás, quase delicadamente dançando ao som das notas do “Lago dos Cisnes” de Tchaikovsky – parece querer tocar, dentro dos olhares vivos e silenciosos dos monges, o sentido profundo da viagem que os conduziu a outro continente, para um pequeno mosteiro abraçado pela neve da cadeia de montanhas do Atlas, na Argélia. E consegue.
Naqueles rostos parecem se recapitular todas as circunstâncias que aqueles religiosos, um por um, aceitaram viver: a vocação; a partida; a vida cotidiana com os amigos de um povo de outra fé e outra cultura. E é “por um amor maior”, como conta padre Luc a uma garota apaixonada, que ele e seus confrades estão ali. Por um amor maior, por uma atração maior. O sacrifício daqueles monges, “o ponto-chave” para entender a história deles, é um amor maior, uma atração, “a atração de Jesus”, que seguem e que, cotidianamente, imploram e agradecem no canto da oração das Horas.
A última graça. Giussani diz: “O sacrifício mais verdadeiro é reconhecer uma presença, quer dizer, o sacrifício mais verdadeiro é amar”. Assim, através dos rostos da última cena no mosteiro, o caminho daqueles pobres homens é contado com a maravilhosa intensidade de seus olhares, nos quais parecem se suceder, como os versos de uma grande poesia, todos os instantes passados naquele lugar; todas as circunstâncias, que também são as faces de cada um deles: “Se Cristo se fez conhecer através destas circunstâncias representadas por estas faces, será através destas faces, destas circunstâncias, que Ele te mudará e fará teu coração se tornar grande, tua alma, tua cabeça”.
A última cena do mosteiro de Tiberine é o “cruzamento” de todo o filme de Beauvois, diretor laico, mas capaz de um olhar totalmente católico. Nela, tudo retorna, nada se perde, toda circunstância vivida por aqueles homens revela, pouco a pouco, o próprio lugar no mosaico do destino que se vai compondo. O trabalho nos campos, o cuidado dos pobres e dos doentes, as festas da tradição muçulmana da qual participam, o encontro com os terroristas islâmicos. Aqueles olhos parecem dizer “obrigado”. É o “obrigado” que padre Christian escreveu no seu testamento, dirigido às pessoas a quem mais amava e também ao homem que, como pressentia, o mataria alguns meses mais tarde: “Neste obrigado no qual tudo é dito, por agora, sobre a minha vida, incluo certamente vocês, amigos de ontem e de hoje, e vocês, amigos daqui, junto de minha mãe e de meu pai, de minhas irmãs e de meus irmãos, e cem vezes mais, concedidos como foi prometido! E também a você, amigo do último minuto, que não sabia aquilo que estava fazendo. Sim, também a você quero dizer este obrigado e este ‘ad-Deus’ com você. E que lhe seja concedido reencontrar-nos, ladrões bem-aventurados, no Paraíso, se Deus quiser, Pai nosso, de todos dois. Amém! Insh Allah!”.
Nada se perde, nem mesmo a última palavra pronunciada no filme: aquele “sim” com o qual o velho padre Luc responde ao padre Christian, que, sustentando-o na última viagem, no bosque e sob a neve, lhe perguntou: “Você consegue?”. Mesmo o maior sacrifício se torna jugo suave, fardo leve. E, então, também é possível dizer “sim” àquela última circunstância, àquela última graça, que uma antiga oração ambrosiana, muito querida a Dom Giussani, pede: “Corrigamus nos ad laudem Christi”. Corrijamo-nos, sustentemo-nos, pelo amor de Cristo.
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