Blitz norte-americana, eliminação do inimigo, alegria nas ruas e praças. Mas o que resta da notícia que ocupou durante dias o noticiário em todo o mundo? Fizemos a pergunta a EUGENIO CORTI, escritor que estudou os grandes crimes (e o sofrimento) do século XX. E ele nos respondeu falando de justiça. Do diabo. E de uma esperança que atravessa os séculos
Eugenio Corti aproxima-se devagar; na mão direita, a inseparável bengala, na esquerda, um livro: a obra de um historiador americano, Daniel Goldhagen, que há uns quinze anos alcançou sucesso com Os carrascos voluntários de Hitler. Esse novo ensaio intitula-se Pior do que a guerra. É uma surpresa encontrá-lo nas mãos de um dos maiores escritores italianos, que ambientou na guerra a maioria dos seus trabalhos. “Esse tema, o mal e a história, é enorme, belíssimo”, exclama Corti.
Aos 90 anos completados em janeiro, o escritor é testemunha de muitos horrores: o fascismo, a ferocidade nazista e comunista, o conflito mundial que terminou em apocalipse atômico, os anos de terrorismo... Sua obra abarca tudo isso. O século que acumulou mais mortes na história do homem se encerrou. Todo esse mal, porém, não foi ainda metabolizado: o novo milênio abriu-se com a carnificina do 11 de Setembro, organizada por Osama bin Laden; depois de dez anos, as praças norte-americanas se encheram de gente que festejava a morte do mandante, e algumas horas depois parece que tudo já foi consumado.
Então, há algo pior do que a guerra?
Goldhagen trabalhou durante uma dezenas de anos e chegou à convicção de que os piores males da história, e em especial da nossa época, são os extermínios em massa, os assassinatos sistemáticos. É um livro muito bem documentado, até meticuloso demais. Essa macabra contabilidade pinta um quadro horrível do século XX: em guerras morreram 61 milhões de pessoas, das quais 42 milhões são militares e 19 milhões, civis. Porém, as chacinas sistemáticas no curso do século mataram de 127 a 175 milhões de pessoas.
O senhor escreveu Processo e morte de Stalin, um drama que está para voltar aos palcos italianos, depois de cinquenta anos de esquecimento. O senhor definiu Stalin como “um instrumento do demônio”. Bin Laden é também uma personificação do mal?
No curso da história há pessoas que encarnam a presença do mal. Há o bem que atrai os homens e o mal que também os atrai. Cada época, desde a Antiguidade, ensina que o homem vive entre a atração do bem e a do mal. Onde o mal prosperou, a história dos homens conheceu um oceano de chacinas. E é preciso constatar que esses assassinatos em massa foram mais fatais do que as guerras. Mata-se diretamente, ou com as ferramentas mortais ou através da fome e de privações, como o regime fez com os agricultores chineses. Todavia, em situações análogas não se verificaram extermínios análogos. Por quê? Goldhagen levanta a questão, mas não apresenta resposta.
E o senhor, que resposta dá?
Certos setores do Exército Nazista não detinham a ordem de matar os judeus, mas matavam assim mesmo. O ditador egípcio Menghistu entusiasmava-se quando explicava aos seus o tipo de violência que era preciso usar contra o velho regime imperial. Há o prazer em se praticar o mal É isso, tem gente que fica feliz em matar. Para mim, são pessoas possuídas pelo mal, é o impulso demoníaco que continua a se fazer presente e que arrasta muita gente.
No entanto, não são só os grandes malvados que se alegram. Os americanos saíram eufóricos para as praças públicas pelo homicídio de Osama. A voz da Igreja foi uma das poucas que se elevaram para advertir que não se devia exultar pela morte de um homem.
Os americanos foram muito humilhados com o 11 de Setembro. Foram atingidos no coração. Identificaram o culpado e saíram atrás dele para puni-lo. Para punir o culpado tiveram que praticar uma espécie de golpe, pelo pouco que ficamos sabendo. De um lado, houve euforia porque o responsável foi castigado, e em certo sentido houve um reequilíbrio do direito.
Como disse o presidente Obama, “a justiça foi feita”...
Mas, por outro lado, há o gosto de matar alguém que quase nem esboçou defesa. Uma espécie de represália negativa: você me fez um grande mal, e eu lhe dou o troco. É errado. Nesse episódio uniram-se o desejo de encontrar o culpado, o que é positivo, e a sede de vingança contra o criminoso. Como acontece com frequência nas coisas humanas, há uma mistura do bem com o mal. Num certo sentido, os americanos fizeram bem ao fazê-lo pagar, porque os criminosos precisam aprender que um dia vão pagar; mas um assassinato sempre provoca outros assassinatos, vinganças, ameaças de novos extermínios. Nós balançamos aí entre o bem e o mal.
A justiça humana é uma tentativa sempre parcial?
É uma justiça que pode ser feita com ânimo diferente. A satisfação de matar o adversário não é a verdadeira justiça. É uma nova injustiça.
A liberdade do homem exerce sempre um papel fundamental, não se pode nunca reduzir tudo às circunstâncias.
A visão que o homem tem dos cristãos é a mais adequada para explicar esse drama. É o abandono de Deus que multiplica os horrores. Nos séculos passados não houve tantos extermínios e tão sangrentos como no século XX. O motivo é que o século passado foi o mais descristianizado da história. A descristianização sistemática que aconteceu a partir do século XVI tomou conta sobretudo de duas grandes nações que estavam na vanguarda da modernidade, embora muito diferentes entre si, a Alemanha e a Rússia. Hitler e Stalin eram monstros com muitas afinidades. Do ponto de vista numérico, os russos mataram mais: começaram primeiro e tiveram mais tempo. Mas do ponto de vista da radicalidade, os alemães eram piores.
Muitos outros extermínios são pouco conhecidos.
Um dos mais exemplares foi o genocídio dos armênios na Turquia, no início do século XX. Antes, muitos desses cristãos foram assassinados, os sobreviventes foram deportados e nas máquinas mortíferas pereceu um número ainda maior; os poucos remanescentes morreram depois, nos campos de prisioneiros. Na Europa, em número de mortos, o genocídio mais sangrento foi o dos agricultores russos, perpetrado pelos bolcheviques mediante privações provocadas, nas décadas de 1920 e 1930. Quando andei por lá, durante a guerra, entre 1941 e 1942, ainda sentia o eco disso tudo. Eu havia escolhido a frente russa: queria conhecer aquela realidade porque pensava em ser um escritor cristão e contar também a experiência do acristianismo.
O que o senhor se lembra desses trágicos relatos?
Em qualquer zona, da Ucrânia à terra dos cossacos, eu ouvia falar sempre das mesmas crueldades. Eu registrava tudo, e enchi dois cadernos, que depois destruí, durante a retirada, para que não caíssem em mãos erradas. Sobretudo eu não entendia por que os comunistas mataram tanta gente. Aqui na Itália, os fascistas tomaram o poder fazendo algumas dezenas de mortos, talvez uma centena. Na Rússia, a população era cinco vezes mais numerosa e, se fosse mantida a proporção, os bolcheviques teriam matado entre quinhentos mil e um milhão de pessoas. Qual o sentido de exterminar milhões e milhões de cidadãos? Agora temo que essas realidades possam voltar a acontecer. Não há uma recuperação em curso: aliás, como lembrou, por exemplo, o Papa João Paulo II em 2002, na Assembléia Plenária do Pontifício Conselho da Cultura, houve entre os próprios católicos uma interrupção geracional, e por isso o processo de transmissão dos valores morais e religiosos entre as gerações se interrompeu. Não só, mas os cristãos, a quem competiria a recuperação, estão divididos, empenhados em anular os esforços uns dos outros.
O drama dos cristãos é a falta de unidade?
Até mesmo a contraposição.
Em sua opinião, para onde estamos caminhando?
A lembrança do passado me inquieta. Quando eu era estudante do colegial, na véspera da guerra, não poderíamos esperar absolutamente a catástrofe que acabou acontecendo. Estamos na mesma situação: pode ser que essas pequenas revoluções nos países árabes mediterrâneos, com o apoio determinante da Turquia, descarreguem sua força contra Israel, o qual, para se defender, deverá usar as bombas atômicas. Esse perigo já foi advertido no mundo da Transcendência, há alguns anos refiro-me às aparições, em 1968, de Nossa Senhora de Zeitoun, no Egito, num momento histórico também muito delicado.
O senhor tem uma visão providencial da História.
Assisti, no curso da minha longa vida, algumas grandes intervenções providenciais da Sobrenatureza na história dos homens, duas das quais operadas por Nossa Senhora (em resumo a salvação dos últimos 50-60 mil militares poloneses sobreviventes dos lager soviéticos, libertados e enviados para combater o nazismo na Itália, que se declaravam todos, sem exceção, convictos de que foram salvos por uma intervenção de Nossa Senhora de Jasna Gora; e o outro milagre, muito mais imponente, do imprevisto desaparecimento do comunismo da Rússia, depois da consagração do país a Nossa Senhora efetuada pelo Papa João Paulo II). Por isso, em relação ao problema de Israel, meu primeiro pensamento vai para Zeitoun. Em conclusão, não fazem parte da realidade histórica somente os tremendos massacres militares, e os ainda mais terríveis homicídios produzidos pelo ódio, de que falamos, mas também as grandes intervenções da Providência em favor da humanidade, que foram igualmente reais. Está aí o fundamento da minha esperança.
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