Para acompanhar a leitura de O Senso Religioso, lembramos FERNANDO PESSOA, com seus versos cheios de “este querer grandeza” e ao mesmo tempo de renúncia. Um dos maiores poetas do século XX, para quem há realidade demais para um coração só. Assim, o seu “eu” explode, dando vida a outros “eus”
Também as caravelas, no fundo, partiam daqui. De Belém, onde se encontra a torre que é símbolo de Lisboa e de onde zarpavam os navegadores que expandiram Portugal e o mundo. Se pensarmos nisto, parece-nos menos estranho começar a viagem por estas estrelas de pedra colocadas numa parede do Mosteiro dos Jerônimos. À nossa volta, monumentos de príncipes e de reis, estátuas, rostos, coroas. Mas neste túmulo, há apenas versos. “Para ser grande, sê inteiro: nada / teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / no mínimo que fazes. / Assim em cada lago a lua toda / brilha, porque alta vive.” Assinado: Ricardo Reis. Ao lado, outra poesia, de Álvaro de Campos. E depois, Alberto Caeiro. Até ao nome maior, escrito por baixo, como que colocando uma única assinatura na estranha antologia e, ao mesmo tempo, dizendo finalmente quem ali repousa em paz: “Fernando Pessoa, 1888-1935”.
Sem dúvida, um dos maiores autores do século XX. Porque escreveu muito, muitíssimo (na fundação que ainda está catalogando as suas obras existem 27 mil documentos), mas sobretudo porque é muitos autores num só. Tantos nomes diferentes assinando poesias e ensaios, páginas de diário e artigos de revista, tragédias teatrais e até um guia do “que o turista deve ver” na sua cidade. Uma enorme quantidade de obras, em grande parte com publicação póstuma – ou ainda por publicar – e assinadas, precisamente, por outros nomes: Reis, Campos, Caeiro. Mas também Bernardo Soares, Coelho Pacheco, Alexander Search… “Um baú cheio de gente”, tal como se intitula de forma acertada uma coletânea feita a partir de uma caixa de escritos encontrada depois da sua morte. E um baú cheio de pretextos que podem nos acompanhar no percurso de releitura de O Senso Religioso. Lá dentro, encontram-se as “atitudes irrazoáveis diante da pergunta última”, de que fala Dom Giussani. A “negação teórica” e a “prática”. Tal como a “confusão do eu” referida nos últimos Exercícios da Fraternidade de CL por Julián Carrón. É isso, em Pessoa está tudo. E tudo ao mesmo tempo, tendo ao lado um sentido do Mistério tão penetrante que parece inexorável.
Ele descobre-o rapidamente, numa vida marcada pelo desenraizamento. Primeiro do pai, que morre quando ele tem apenas cinco anos (perde também um irmão pequeno). Depois, da terra e da língua, porque a mãe se casa novamente com um diplomata, e Fernando tem que emigrar para a África do Sul, onde viveu e estudou (em inglês) até 1905, quando regressou a Lisboa. E até, durante sua vida, das relações mais verdadeiras (Mário de Sá Carneiro, poeta e o seu maior amigo, suicida-se em 1916).
Solidão, portanto, que incide numa sensibilidade aguda, desde criança: logo aos seis anos, Fernando começa a escrever a si mesmo cartas assinadas por um amigo imaginário, o Chevalier de Pas. E contradiz uma biografia que não poderia ter sido mais comum. Com um emprego de tradutor por meio expediente em uma firma de importação-exportação, passará toda a sua existência no retângulo das ruas da Baixa, no centro de Lisboa, por entre pensões, quartos alugados, restaurantes baratos e serões no Chiado, o bairro dos cafés (diante do mais famoso, A Brasileira, encontra-se hoje uma estátua sua em bronze, sentado a uma mesa), onde frequenta aquele ambiente literário que se tornará o seu (irá fundar revistas, vai-se fazer notar através de artigos, terá uma boa fama de poeta ainda em vida), mas que nunca será verdadeiramente seu. A sua vida continua a ser uma vida feita por medida para alguém que até no nome é anônimo: pessoa. Mas na pessoa existe um mundo. Aliás, mais. “Também há universo na Rua dos Douradores” escreve no Livro do Desassossego (assinado por Bernardo Soares): “Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver. Alhures, sem dúvida, é que os poentes são. Mas até deste quarto andar sobre a cidade se pode pensar o infinito. Um infinito com armazéns embaixo, é certo, mas com estrelas ao fim”.
O dia triunfal. Naquele horizonte, o ordinário torna-se extraordinário. O eu de Fernando Pessoa explode. Como se houvesse demasiada vida e demasiada realidade para um único coração, tão perspicaz. Nascem os outros “eus”, os heterônimos. Nascimento esse que ele conta numa carta célebre, que os críticos estão desmontando aos poucos com rigor filológico (na verdade, as obras citadas nasceram ao longo de anos, não numa noite), mas que continua a ser significativa: “Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de março de 1914 –, acerquei-me de uma cômoda alta e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase… Foi o dia triunfal da minha vida. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Aparecera em mim o meu mestre.”
Loucura? Não, ainda que ele próprio viva sempre no terror que lhe rebente uma veia. É o fracionamento do eu moderno levado às extremas consequências. Uma necessidade total, absoluta, de vida e de significado que não encontra significado na vida, mas que continua a empurrar, a fazer pressão lá dentro. Até que, por fim, explode. Porque “somos muitos, se olhamos quem somos”.
Juntamente com Caeiro, os “outros” Pessoa são uma dúzia, contando só os principais (são quase sessenta os esboços). Cada um com a sua biografia imaginária, com a sua data de nascimento, uma cuidada descrição física, em muitos casos até com uma caligrafia diferente, como que a assinalar uma necessidade absoluta de realidade no oceano do fingimento. Assim, por exemplo, Alberto Caeiro tem “olhos azuis como os de uma criança desprovida de medo, maçãs do rosto salientes, pele pálida e um estranho aspecto grego que vinha de dentro”, Bernardo Soares tem “uma voz opaca e trêmula, como a das pessoas que não esperam”, e por aí fora. Cada um tem a sua poética, ou melhor, a sua forma de viver. Não é só a literatura (é a forma que permite a Pessoa explorar correntes e tendências do seu tempo: o sensacionalismo, o futurismo, as vanguardas…), mas o próprio humano, a vida.
E na relação com a vida sobressaem alguns temas. Começando por aquela negação que, de vez em quando, se torna a sua resposta às perguntas últimas, à voragem do mistério percebida com uma profunda perspicácia. Existe a descoberta de que a realidade não basta: “Mas falta sempre alguma coisa: / um copo, uma brisa, uma frase,/ e a vida dói, quanto mais se goza / e quanto mais se inventa”. A percepção lúcida e dolorosa de que tudo é tão pouco (“Tão cedo tudo quanto passa! / Morre tão jovem ante os deuses / quanto Morre! Tudo é tão pouco!”) que o aproxima do poeta italiano Eugenio Montale que escreveu Forse un mattino (Talvez uma manhã). É o tema, decisivo, do sentir as coisas, de uma forma de conhecimento que ganha consistência em imergir na realidade e não em pensá-la: “O essencial é saber ver, / saber ver sem estar a pensar, / saber ver quando se vê, / nem ver quando se pensa (…) / Isso exige um estudo profundo, / uma aprendizagem de desaprender”. Uma escolha, em suma. Uma decisão. E esta escolha, de vez em quando, torna-se uma atitude perante a vida, como se vê nestes versos assinados por Ricardo Reis: “Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada / é livre; quem não tem e não deseja, / homem, é igual aos deuses”.
Eis que em determinado momento Pessoa decide que a realidade é árida, que a vida não vale a pena ser vivida. Pode – deve – ser atravessada, mas não vivida. Escreve longas páginas dedicadas à “estética da abdicação”; versos como os das Odes de Ricardo Reis (“Não vale a pena / fazer um gesto (…) Girassóis sempre / fitando o Sol, / da vida iremos / tranquilos, tendo / nem o remorso de ter vivido”) ou os do poema Tabacaria (“Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”). O problema é que os “sonhos” – as perguntas – perseguem-nos, empurram-nos, pedem. Ao passo que ele escolheu não avançar. “Grandes são os desertos, minha alma! /Grandes são os desertos. / Não tirei bilhete para a vida / (…) Acendo o cigarro para adiar a viagem, / para adiar todas as viagens, / para adiar o universo inteiro. / Volta amanhã, realidade! / Basta por hoje, gente! /Adia-te, presente absoluto! / Mais vale não ser que ser assim”.
“Detesto o começo e o fim”. Negação prática e evasão estética. Fernando Pessoa é o poeta do não-fato, da recusa. Como se quisesse manter-se à distância do Oceano, como se se contentasse em cruzar para trás e para frente o mar da palha, o estuário do Tejo em frente à Baixa: suficientemente largo para dar a ilusão da navegação, muito pequeno no que diz respeito à exigência de infinito. E aqui, outra marca que o distingue: a incapacidade de amar. Na vida, dele conhecemos uma única relação, breve (com Ophélia Queiroz, funcionária) e logo interrompida. Mas pensando bem, é outra característica do homem moderno: uma não-afetividade, uma fraqueza afetiva, porque é o relacionamento com a realidade – o conhecimento – que está enfraquecido. Já não é um relacionamento; é um eu hipertrófico, inchado pelas suas perguntas e pela sua inteligência que recusa os laços, recua. E implode. As razões e os afetos estão descolados, como nestes versos de Caeiro: “O Mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos) / mas para olharmos para ele e estarmos de acordo (…) / Amar é a eterna inocência, / e a única inocência não pensar”. O caminho da razão é uma complicação inútil. E é uma escolha, precisa. Porque “há metafísica bastante em não pensar em nada”.
Pessoa ora se joga, se deleita por dentro, ora suspende a respiração quando se surpreende numa lucidez feroz, nítida. “Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho”, escreve numa nota de 1910: “Todo o meu caráter consiste no ódio, no horror e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou (…). Detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos definidos”. A irresolução das coisas, absoluta. Mas, se formos sinceros, também é o espelho de uma fraqueza que tantas vezes sentimos como nossa, no mais íntimo do nosso ser.
Deserdado pela verdade. O que é bonito, porém, é que é precisamente nesta decisão pela inexistência que se abrem caminhos contínuos. Porque a realidade reaparece sempre, teimosa. Basta folhear o Livro do Desassossego para descobrir em toda parte um olhar sedento do além, literalmente. Sedento por perfurar a superfície para chegar ao fundo das coisas, para “poder conhecer na varina [vendedora de peixe] a sua realidade humana” ou para “ver o policial como Deus o vê”. Tal como, por exemplo, basta folhear as poesias do heterônimo mais anti-religioso (Caeiro) para ver como a beleza é uma ferida aberta nesta suposta e reclamada ataraxia. “Uma flor acaso tem beleza? / Tem beleza acaso um fruto? / Não: têm cor e forma / e existência apenas. / A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe, / que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão. / Não significa nada. / Então por que digo eu das coisas: são belas?” De fato, é inextirpável, como o desejo proclamado poucos versos à frente, ainda que de forma negativa: “Que triste não saber florir!”.
Mas é no Pessoa com o nome real, nas poesias assinadas por ele mesmo, que tantas vezes este florir desponta, inesperado. Vejam a Mensagem. É um poema curto, escrito em 1934 para participar num concurso literário (que não ganhou, claro). Retoma a história de Portugal e das grandes descobertas, dando eco a Camões. Épica pura, no início do século XX: decididamente insólito. Mas é sinal de que nem o eu mais solitário pode prescindir da relação: com o outro (uma tradição, um povo); e com o além. “E esta febre de Além, que me consome, / e este querer-grandeza são Seu nome / dentro em mim a vibrar (…) / Cheio de Deus, não temo o que virá, / pois venha o que vier, nunca será / maior do que a minha alma”. E assim, a mensagem desta poesia é vibrante, e acaba por contradizer aquilo que Pessoa escreveu muitas vezes. É um balanço em quatro versos da aventura dos navegadores, do sangue derramado, de uma grandeza encontrada e perdida: “Valeu a pena? Tudo vale a pena / se a alma não é pequena. (…) Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / mas nele é que espelhou o céu”.
Alma, Deus, céu. E aqui deparamo-nos com a outra ferida aberta no flanco de Pessoa: a religiosidade. Entre as suas extravagâncias, dedica-se com assiduidade ao esoterismo e ao oculto. Numa nota biográfica escrita em 1935, define-se como “cristão gnóstico e, portanto, inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma”. E em muitas obras zomba da Igreja, levanta o problema da Revelação recusando-a (“Não acredito em Deus porque nunca o vi. / Se ele quisesse que eu acreditasse nele, / sem dúvida que viria falar comigo”), renega o Natal. Porém, é o mesmo autor que pouco antes daquela nota dedica uma poesia à “saudade da Igreja materna”, que “cobriu como uma redoma / meus dias serenos (…) Cabalas, gnose, mistérios, maçonarias / tudo tive na mão / na busca ansiosa que enche minhas noites e dias / mas nunca o meu coração. (…) De que é que me deserdou a verdade?”. Ou que, em agosto de 1935, cinco meses antes da sua morte, compõe versos para a Virgem Maria: “Mãe de quem não tem mãe, no teu regaço / pousa a cabeça a dor universal / e dorme, ébria do fim do seu cansaço”. Não estamos dizendo que houve conversão, nem nenhum re-batismo póstumo (até porque, graças a Deus, o primeiro – e verdadeiro – é suficiente). Mas os críticos que estão se aventurando em decifrar este Pessoa farão descobertas interessantes. Porque o pedido de um relacionamento com o Mistério que se faz carne é inegável. Não o pedido da existência do Mistério, mas precisamente de um relacionamento, de alguma coisa para abraçar, de um “sim” que refloresce na alma e que procura espaço.
Pessoa morreu no dia 30 de novembro de 1935, devido a complicações hepáticas. A última frase escrita, em inglês, é do dia anterior: “Não sei o que o amanhã trará”. As últimas palavras dizem tudo: “Dá-me meus óculos”. Ainda faltava alguma coisa para ver, e para viver.
SETENTA VEZES “ELE PRÓPRIO”
Fernando Pessoa nasceu em Lisboa no dia 13 de junho de 1888. Órfão de pai, passou a juventude em Durban, na África do Sul, para onde a mãe se mudou depois de se casar com um diplomata. Regressou a Portugal em 1905. Ganhava a vida traduzindo cartas comerciais do e para o inglês. Ao mesmo tempo, escrevia (de tudo: poesias, artigos, diários) embora tenha publicado pouco. Participou do nascimento das correntes de vanguarda literária em Portugal e, sobretudo, deu vida a uma série incrível de heterônimos: verdadeiros “alter ego”, cada um com uma produção e uma poética próprias. Entre os maiores (Ricardo Reis, Bernardo Soares, Alberto Caeiro...) e aqueles apenas esboçados, contam-se 72. Morreu com uma crise hepática aos 47 anos.
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