Publicamos trechos do prefácio do livro "O que temos de mais caro (1988-1989)", sexto volume da série “L’Equipe” que reúne palestras e diálogos de Dom Luigi Giussani com os responsáveis dos universitários de CL
“O imperador se dirigiu aos cristãos dizendo: ‘Estranhos homens... dizei-me cristãos, abandonados pela maioria de vossos irmãos e chefes: o que tendes de mais caro no cristianismo?’” (Soloviev. O relato do Anticristo).
Escutar essa pergunta dirigida a nós nos balança agora da mesma maneira como tantos de nós foram balançados quando a ouvimos pela primeira vez pronunciada por Dom Giussani. Ainda mais, na medida em que cresceu em nós a consciência do seu alcance. Ela nos coloca nus diante de nós mesmos. É talvez a única pergunta que verdadeiramente nos coloca nus. Provavelmente porque cada um de nós sabe que, diante dela, não há como trapacear. E é inútil fingir: não é possível que nos escondamos atrás das coisas habituais que nos servem de álibi para não a olhar de frente.
No entanto, nada nos coloca mais contra a parede – desafiando a nossa ambiguidade, perturbando a nossa tranquilidade, os nossos compromissos – do que a resposta do staretz João, no relato de Soloviev, escolhido por Dom Giussani como Cartaz de Páscoa em 1988: “Então, o staretz João ficou de pé e respondeu com doçura: ‘Grande soberano! O que temos de mais caro no cristianismo é o próprio Cristo. Cristo e tudo aquilo que vem d’Ele, porque sabemos que n’Ele habita corporalmente a plenitude da Divindade’”. Não são os valores, não é a ética, não são as obras, mas é o próprio Cristo.
1) No entanto, é preciso prestar atenção: não basta estar de acordo com o staretz para encerrar a partida, porque é possível estar de acordo sem ser provocado, como nos disse Dom Giussani: “Quando vocês leram as palavras do staretz ..., vocês estavam de acordo ..., porém aquilo que vocês leram não necessariamente os provocou. Para alguns, foi como ler um livro policial ou um romance. Para muitos, não foi uma provocação; foi como uma coisa óbvia, teoricamente óbvia, e não uma provocação” (p. 137).
A razão desta reação é identificada bem por Dom Giussani: “Este ‘estar de acordo sem ser provocado’ é uma característica comum entre nós, devida à presença devastadora da cultura no poder (é um exemplo, mas um exemplo não apenas pertinente, mas determinante). A presença devastadora do poder é aquilo pelo que, enquanto que o problema do dinheiro e da carreira tem um efeito imediato, sensivelmente emotivo, assim como o problema da saúde ou do prazer da mulher ou do homem, aquilo que vocês leram de Soloviev, normalmente – perdoem-me o a priori – não teve um efeito emocionante: vocês estavam todos de acordo, mas sem serem provocados” (pp. 137-138).
E nem mesmo aquelas que pareceriam as expressões mais evidentes do nosso “estar de acordo” com o staretz João, ou seja, as nossas iniciativas, são imunes de ambiguidade. Tanto é verdade que “o Cartaz espoliou todas as iniciativas da comunidade do senso de suficiência e riqueza...” Mas contra a tentação de fugir do real, Giussani afirma: “Atenção, a conclusão não é: ‘Então façamos menos atividades’, mas nem um pouco; a conclusão é exatamente o contrário. Quem diz: ‘Façamos menos atividades para rezar mais’ não reza e nem faz atividades... Quem não consegue fazer nascer a atividade de ‘alguém’, não poderá chegar a esse ‘alguém’ depois” (p. 143).
Podemos ver com clareza os efeitos do poder devastador que nos circunda sobre a personalidade. Dom Giussani ressalta, sobretudo, dois.
a) O primeiro é uma dificuldade de compreensão devido a uma razão frágil: “Nessa manhã foi usada uma frase muito bonita quando foi dito que ‘somos protagonistas de uma razão frágil’. Não digo que fomos impostores ou falsos, que distribuímos o Cartaz sem ter aderido; nós aderimos, mas não o compreendemos, não nos provocou, não entendemos. Uma razão frágil! Se tivessem nos perguntado, teríamos dito: ‘Sim, sim, eu acredito, eu também falo assim!’, mas abstratamente. Uma razão frágil” (pp. 154-155).
b) O segundo efeito é a “divisão entre o reconhecimento e a afetividade, entre o reconhecimento e o ser apegados ao reconhecimento. O eu permanece dividido entre o reconhecimento que permanece abstrato e a afetividade que flutua...
Isso nos faz experimentar na pele que definir como “emergência humana” a dramática situação na qual se encontrava, e se encontra, o eu de cada um, não é um exagero. Dom Giussani está tão certo disso que a descreve como uma espécie de “anorexia do humano” (p. 35).
Nessa situação, como a resposta do staretz João pode se tornar realmente minha, nossa? Somente se há uma presença na história capaz de inquietar, provocar a presença devastadora do poder...
2) A pretensão do cristianismo é ser uma presença inquietante para o poder, como disse Dom Giussani: “O que caracteriza o fato cristão? [...] Cristo é uma dramática presença. Por que dramática? Exatamente porque é uma presença inquietante para o presente – eis o drama –, ou seja, provocante para o presente. Está nesta provocação do presente – que transforma o presente, age sobre o presente – a dramaticidade”. E insiste: “Cristo é uma presença dramática. Cristo: n’Ele habita corporalmente a divindade. Vocês falaram da ‘fisicidade’ de Cristo. E é exatamente isso que a mentalidade dominante extermina, desculpem-me, tenta exterminar, diante de nossos olhos” (p. 144).
Exatamente na medida em que compreendermos a natureza da luta que está em curso, poderemos responder de forma consciente à pergunta do imperador: “‘O que tendes de mais caro?’ [...] ‘Aquilo que temos de mais caro, grande soberano, é Cristo e tudo aquilo que d’Ele deriva’”. E “o que deriva d’Ele? Tudo”. De fato, nada, nem os valores cristãos, nem a ética, nem as iniciativas, poderia resistir, sem a Sua pessoa. Desvinculados d’Ele, têm os dias contados, como vemos em nós e nos outros. Pelo contrário, n’Ele tudo adquire uma consistência desconhecida...
Mas, como se torna presente aquele Fato, como nos alcança do passado, a ponto de ser uma presença provocante para cada um de nós, hoje, que não se reduz às nossas pretensões e interpretações? “Ou Cristo incide, coincide, determina o tempo e o espaço, ou seja, a realidade de uma companhia que se torna sinal d’Ele (determina a realidade da nossa companhia, a realidade de uma companhia)”, nos diz Dom Giussani, “ou então, não existe, é um pensamento” (pp. 458-459).
3) Por isto, Dom Giussani sublinha que a Sua Presença “emerge corporalmente numa companhia; ‘corporalmente’ é analógico, mas a analogia estabelece e identifica uma verdade real, uma realidade. O Fato, o grande Fato, a dramática presença de Cristo é tal exatamente porque emerge numa companhia. Uma companhia é o lugar daquela Presença, uma companhia que participa por isso da dramaticidade daquela Presença. E se não é dramática, esta companhia é como uma realidade morta” (p. 148).
Dom Giussani... nos coloca diante da verdadeira alternativa com a qual prestar contas: seguir ou interpretar. De fato, “ou se segue, então a companhia é verdadeiramente a fraternidade, a fraternidade ‘como lugar próprio, lugar próprio para o eu’, onde o próprio eu reconhece o seu sentido e reconhece os sentidos do seu caminhar, ou se interpreta”. Esta é precisamente “a diferença entre catolicismo e todas as outras religiões cristãs. Ou se segue, ou se interpreta. Ou se segue e se está em companhia profunda, em unidade com o passado e com o futuro e com todos os fatores do presente, ou se interpreta e se está na solidão”...
4) Mas “esta companhia... é para a pessoa. Nela se experimenta a presença e a presença é para a pessoa. A presença de Cristo é para a pessoa. A pessoa se constitui na resposta que dá para a comunidade e a companhia que a provoca, na qual Cristo a provoca. A companhia é o lugar onde Cristo lhe provoca com a sua presença, na qual habita corporalmente a Divindade. Sua resposta a esta provocação, que está na companhia, constitui a sua personalidade. De fato, a personalidade se constitui como relacionamento com um tu”.
Como nos provoca? “‘A companhia não nos deixa ficar tranquilos, pois ela está toda voltada para que a vida se submeta àquilo que nos torna verdadeiros’. Ou seja, é uma companhia que liberta, pois aquilo que nos torna verdadeiros é a experiência da liberdade e a liberdade é o nexo com o significado” (pp. 150-151).
... De nossa parte é preciso apenas uma coisa: a implicação de cada um de nós. “Tudo isto, rapazes, não acontece por acaso, é um trabalho, é o resultado de um trabalho, assim como a imponência da sabedoria e o caráter sugestivo da afeição madura são o resultado de um trabalho, de um desenvolvimento. Não de um desenvolvimento mecânico, porque um desenvolvimento mecânico entristece” (p. 214).
Somente uma companhia assim pode desafiar o mundo, como sempre nos lembra Dom Giussani: “A companhia nos faz enfrentar o mundo, e o mundo são as circunstâncias nas quais vocês entram, depois do início do dia: todas, do café da manhã com o pai e a mãe, que já começam a lhe irritar, aos livros que devem carregar, ao tédio no metrô. Também as circunstâncias que os incomodam tão logo vocês entram na universidade e veem que o professor está ali, e têm que ir para a aula que não gostam, ou então começam a não ver os seus amigos e a ver apenas pessoas hostis, ou então, mesmo os seus amigos não os cumprimentam mais e o professor diz certas coisas para as quais vocês não encontram resposta [...]. O ataque ao mundo. A companhia é ataque ao mundo” (p. 303).
A caridade de Dom Giussani por nós chega ao ponto de nos colocar em alerta diante do perigo: “Andrea Emo, reconhecido por La Repubblica como um dos maiores pensadores da nossa época que ficaram desconhecidos, diz em um de seus escritos: ‘Por séculos a Igreja foi a protagonista da história; assumiu, depois, o lado não menos glorioso de antagonista da história; hoje, é apenas cortesã da história’”. E nos indica o caminho para não terminar assim: “Nós não queremos uma Igreja assim! Para não querê-la, porém, temos que ser protagonistas, porque somos nós que fazemos a Igreja! O relacionamento com o que não pertence ao deserto é o único fator constitutivo de uma personalidade que seja protagonista e não cortesã daquilo que a circunda. É necessário, então, um trabalho, colocar-se nesse trabalho para ser protagonistas de uma história” (pp. 432-433).
Esse trabalho – o único verdadeiramente digno de um homem que não queira se tornar “cortesão da história” – é o caminho que Dom Giussani nos deu, tendo-o percorrido antes de nós, para poder desafiar o mundo (que está dentro e fora de nós) com a força daquilo que temos de mais caro. E para fazer a verificação de que a fé é um fluxo contínuo de novidade que torna a vida mais plena, maior e mais feliz. Assim, podemos finalmente dizer como própria a frase do staretz João.
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