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Passos N.108, Setembro 2009

ARTE - FRANCIS BACON

A aparência e o mistério

por Giuseppe Frangi

A paixão pela “fisicidade”. O apego ao corpo. E um ideia fixa que sempre manteve ao alcance dos olhos em seu estúdio, porque “não encontrei outro sujeito que abrace todos os campos do humano: o crucifixo”. No centenário de seu nascimento, vamos descobrir o lado menos explorado desse grande (e controvertido) artista

Em seu caótico estúdio londrino, Francis Bacon mantinha a reprodução do grande Crucifixo de Cimabue (pintor italiano do século XIII), que foi danificado pela inundação de 1966. Ele o mantinha de cabeça para baixo, como um ponto de referência, para ele insubstituível: não para ser copiado – por isso de cabeça para baixo – mas do qual sempre tirava inspiração: quase como um ponto fixo, que contemplava antes de trabalhar no cavalete. Quando David Sylvester, seu grande amigo e crítico de arte, lhe perguntou por que ele, tão distante da Igreja e tão crítico do código moral do catolicismo, mantinha aquela imagem em seu estúdio, a resposta de Bacon foi muito simples: “Até agora não encontrei um sujeito que fosse tão válido por abraçar todos os campos do sentimento e do comportamento humano”. Depois, apertado pelo crítico, esclareceu qual era a diferença de significado, para ele, entre a Crucificação de Jesus e todos os outros sujeitos: “Percebo que trabalhamos com os próprios sentimentos e as próprias sensações. Diante da Crucificação, entram em ação todos os tipos de sentimentos pessoais sobre o comportamento e sobre a vida”.
Francis Bacon é, certamente, um dos grandes artistas do século XX. Este ano ocorre o centenário de seu nascimento, que foi lembrado por uma exposição na Tate Gallery de Londres e, depois, no famoso Museu do Prado de Madri, cidade onde ele morreu em 1992.
Além de ser um dos grandes artistas do século, Bacon foi também um dos mais escandalosos. Por várias razões. Entre as mais “óbvias”: a sua homossexualidade, ou a sua visão corrosiva de todas as instituições sociais tradicionais. Mas também aquelas bem menos “óbvias”: seu implacável e obsessivo apego a uma arte figurativa, uma arte que tinha como epicentro constante o corpo humano; e também o profundo, dramático, senso do mistério, que perpassa toda a sua obra.
Bacon pode ser visto com um olhar aborrecido ou com um olhar moralista. Aborrecido é o olhar do burguês que julga repugnante sua pintura, tão física e tão violenta. Moralista é o olhar do crente que, diante do potencial escandalizante das imagens, censura a priori as questões que elas levantam.

SEM TRAPAÇA. Reagir instintivamente às obras de Francis Bacon equivale a liquidá-lo, mesmo que retoricamente seja considerado um dos grandes. Ao invés, o exercício mais sério (mas também mais apaixonante) a ser feito por ocasião desse centenário seria ler o livro que recolhe as suas entrevistas a David Sylvester. Livro extraordinário pela sua intensidade humana; é um dos documentos mais impressionantes sobre a condição do homem e sobre o sentido da cultura em nosso tempo. Impressiona o fato de Bacon, nesses diálogos, chegar sempre ao coração das questões. O caminho é próprio dele, mas desprovido de hesitação, sem ambiguidades. Explica que o sentido de se fazer arte está ligado ao desejo profundo do homem de captar uma ordem, “embora no interior dessa ordem possam existir elementos fortemente instintivos e acidentais”.
Por isso, a arte não pode se contentar em ilustrar a realidade. “O que queremos não é que uma coisa se aproxime o mais possível do dado real e, ao mesmo tempo, seja profundamente capaz de sugestões e de abrir áreas do sentir, ao invés de se limitar a uma mera ilustração do objeto que pretendemos representar? Não é esse, no fundo, o sentido da arte?”.
Mas ao fazer arte, o espaço do mistério se torna grandioso. A gente pinta, mas em certo sentido também a gente “é levado a fazer”. Temos uma ideia, mas a realização dessa ideia é algo que supera o planejado. Fazer arte comporta sair de si mesmo, entregar-se ao que, materialisticamente e sem trapaça, Bacon chama de “acaso”. Diz ele: “Para mim, o mistério do ato de pintar hoje é o modo de se apreender a aparência. Sei que ela pode ser ilustrada, sei que pode ser fotografada. Mas como fazer para capturar o seu mistério, dentro do mistério da sua realização?”. Ou seja, como fazer para que o mistério que perpassa as formas, no plano da realidade, seja capturado dentro do mistério que as faz existir na tela? Só assim o pintor realiza a sua função, vai além da simples réplica inerte das coisas. Existem regras estabelecidas sobre o que é ou deveria ser a aparência, mas não há dúvida de que são muitos os modos de se capturar a aparência. De uma despretensiosa pincelada pode surgir de repente uma vivacidade que não se conseguiria com nenhum dos modos codificados”.

DUAS FACES. Esse é o risco que o artista deve correr: o realismo precisa ser continuamente reinventado, como escreveu Van Gogh em uma de suas cartas. “Esse é o único modo com que o pintor pode reproduzir a intensidade do real que está tentando capturar. Van Gogh é um dos meus grandes heróis porque penso que ele conseguiu recuperar, através do modo como pintava, uma maravilhosa visão da realidade”.
A propósito de visão da realidade, qual é a razão pela qual suas imagens são tão dramaticamente distorcidas? Por que chegar a formas que parecem, às vezes, até repugnantes? Bacon explica: “A gente só distorce aquilo que ama”. E reforça: “É uma ideia muito discutível se as distorções constituem um dano, pois na minha opinião elas, às vezes, projetam com mais força uma imagem. Não creio que se trate de um dano. A gente comunica a sensação e o sentimento da vida através do único modo que consegue. Não digo que exista um modo bom, mas a gente se comunica do modo mais agudo possível”.
De qualquer modo, insiste Bacon, a arte não pode censurar a dimensão da morte, que é parte constitutiva de todas as formas e de todos os corpos. “Eu tenho sempre essa sensação de ser mortal. A gente deve ser tão consciente disso quanto da vida, já que essas são como que duas faces da mesma moeda, que oscila entre a vida e a morte. Essa ideia eu a tenho muito presente a respeito das pessoas e também de mim próprio. Sempre me surpreendo ao despertar cada manhã”.

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“NA IMINÊNCIA FÍSICA DE CRISTO”

Esta página foi tirada de “Conversazioni con Testori”, livro-entrevista de Luca Doninelli com Giovanni Testori (Guanda, 1993).

Você disse também que a arte mantém uma relação privilegiada com Deus. O que isso significa?
Testori: Não quero dizer que o artista moderno se lembre sempre de Deus. Há os que se esqueceram dele e os que não se esqueceram dele; os que se dizem ateus e os crentes. O que quero dizer é que o artista moderno não conseguiu escapar dos pés de Jesus Cristo. É diferente. Penso que a inevitabilidade de Cristo seja, ao mesmo tempo, mais familiar e mais fragorosa do que a de Deus. No momento presente, a totalidade de Deus que não se pode negar é Cristo, e não vice-versa. Cristo é o Tudo de Deus. É o Deus perceptível e que percebe a gente, que nos toca e é tocável. Para usar uma imagem, não é mais o pantocreator dos bizantinos, mas o Cristo que deixa que se coloque o dedo em suas chagas, como o quadro de São Tomé de Caravaggio.

No que se refere às crucificações na arte contemporânea, o que você acha daquelas de Bacon?
Testori: Bacon disse que a sua imagem do Cristo era invertida, e em parte é verdade, porque as suas crucificações parecem o interior de um açougue. Mas, invertendo a imagem de Cristo, ele capturou a iminência física, concreta, bem melhor do que os artistas que a mantiveram em pé.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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