As lutas diárias, a política, e uma experiência “que é a única maneira de viver”. Às margens do rio Paraná, começamos uma série dedicada às comunidades da América Latina. Para ver de perto o que significa “entrar na história”
Há um tango que diz: “Contra o destino, ninguém pode”. A grande fachada do Banco da Cidade de Buenos Aires está coberta por um rosto expressivo e ancião, que está ali para lembrar o contrário. Uma fotografia gigante em branco e preto, um retrato de Ernesto Sabato, colocado por ocasião do centenário de nascimento e poucos meses depois da morte nas dezesseis travessas da Avenida 9 de Julho, a maior via do mundo, que atravessa a cidade do bairro de San Telmo até o Retiro. Sabato foi um monumento para a Argentina. Entre os maiores intelectuais do país, liderou a Comissão Nacional pelos Desaparecidos da Ditadura Militar. Diziam que era ateu e cético. Mas ele não acreditava no destino como diz o tango. Na fatalidad. Escrevia: “Para a vida renascer basta o espaço de uma fresta”. E é isso que veremos nesses dias. Nos encontros com a comunidade do Movimento na Argentina, vislumbraremos muitas vezes aquilo que ele esperava: “Tenho saudade, quase a ansiedade por um infinito, mas humano, na nossa medida”.
Uma abertura na vida pela qual se passa por tudo. “A inundação de um milagre qualquer”, como Sabato chama aquela fresta em outro texto. Nancy não a chama assim, mas faz vibrar a mesinha de mármore de um Café perto da Plaza de Mayo. Um soco fortíssimo: “Aí está você!”. Foi o que disse impulsivamente a Deus quando ouviu o diagnóstico de seu filho Patrizio: autismo.
“Era preciso ter coragem para visitar-me naquele período.” Não é difícil entender o que ela diz. Nancy é visceral, conta com força sobre os anos em que viveu a negação total de Deus, a paixão pelo teatro, depois, aquele canto que ouviu numa tarde em uma igreja de Buenos Aires: Eram quatro pessoas cantando, mas ela foi invadida pela beleza e nasceu nela um pensamento impossível: “Quero ser como eles”. Assim, desde o nascimento de Patrizio e a chegada de uma dor que “abriu um espaço dentro de nós que não tínhamos”. Tem uma gratidão tão grande, que parece vermos aquela “alma” que foi arrebatada e alargada.
Ela e o marido Jorge começaram a se deixar acompanhar pelos amigos, e a acompanhá-los, “não dá mais para ver a diferença entre essas duas coisas”. Ouvindo-os falar, há algo de invencível naquilo que vivem. “Nosso filho é o mistério presente o tempo todo”, diz Jorge. “Aprendi que a resposta da vida não é o trabalho, nada, nem mesmo aquele filho, abraçá-lo de noite”; ou a cascata de consequências, incluindo a Associação Nacional para as Famílias Autistas fundada por eles. “A resposta é somente Cristo que me chama continuamente, a realidade que me doa e me faz ser mais verdadeiro.” Porque “o problema é meu, não de meu filho”, continua Nancy. De férias com a comunidade, depois de um dia terrível com Patrizio, olhava um pouco de longe as outras famílias durante a missa ao ar livre: “Abaixei os olhos, ele estava ali, finalmente em paz, e comecei a chorar. Mas lembrei-me dos doentes de padre Aldo que oferecem tudo. Então, disse a Deus e às montanhas: se eles podem, eu também posso. Isso me mudou imediatamente”. Sentiu a “alma plena”.
Para muitos da comunidade, essa plenitude é uma experiência sempre mais consciente. Hoje, o Movimento argentino é uma realidade de mil pessoas, espalhadas por vinte e cinco cidades. Dos adultos aos ginasiais, falam sobre a mudança que os investe: uma amizade, sem idade, sem esquemas, entre eles, e com os amigos do Brasil, do Paraguai e do Chile. Laços que se tornaram caminho, ou o reacenderam, e que “cresceram junto com o trabalho de Escola de Comunidade”, como diz Alessandro, diretor dos estudos da escola Nuestra Señora de Luján: “Os amigos e o percurso que fazemos estão me mudando completamente, porque a fé é dar-me conta daquilo que acontece, enquanto antes eu aplicava uma teoria àquilo que acontecia”. A beleza do Movimento também tinha se tornado um freio que o afastava da realidade. Ele deu-se conta disso numa noite.
Os pais da classe VII, a de sua filha Guadalupe, organizaram uma festa para os formados. Péssima. “Comparada com as ‘nossas’, não valia a pena ficar nem vinte minutos.” Ficou por cinco horas. “Todas as minhas críticas foram por água abaixo quando comecei a olhar. Eu estava ali com a minha pobre humanidade, com o desejo grande e cheio de limites de acompanhar o crescimento de Guadalupe. E vi trinta jovens e seus pais, avós, irmãos, com a mesma esperança de felicidade. Naquela realidade de pais e mães, reconheci a Sua Presença: Ele não estava no meu preconceito.”
Hoje, as novecentas crianças da Nuestra Señora de Luján estão em casa e há silêncio no pátio dessa escola fundada com a proposta educativa do Movimento, que fica no bairro de Parque Patricios, a sudeste de Buenos Aires, uma região muito feia. “Quando cheguei, a única coisa bonita do bairro eram os rostos das pessoas da escola”, diz Vanessa que, antes de dar aulas de Religião, ficava parada diante dos portões com as outras mães. Entre elas, também estava Mabel. Que hoje, escreve uma carta aos novos amigos para dizer que a partir deste ano, todo dia 3 de julho, festejará seu nascimento. Tem cinquenta anos. Mas quando ouviu padre Mario Peretti falar nos Exercícios Espirituais Argentinos “nasceu de novo: é por isso que eu esperava, na escuridão”.
A viagem noturna de Buenos Aires a Santa Fé, é feita em um dos muitos ônibus que ligam as cidades que cresceram com a ferrovia ao longo do rio Paraná, que faz parte do DNA desta nação nascida como um espacio vacío, um espaço vazio que se encheu de imigrantes. Sessenta por cento dos argentinos desceu de um navio ou tem suas raízes na Europa. A história de sucessivas revoluções sociais é o outro fator constitutivo. “Aqui, a política é como a umidade: está em toda parte”, nos disse pela manhã Jorge Castro, analista internacional, em seu escritório no centro de Buenos Aires: “A única arma de incidência da Igreja é a conquista dos corações. Não é uma lógica irracional, mas de uma razão mais profunda”.
“Aquilo que você procura existe”. Pensamos novamente nisso quando, de seu apartamento de frente para o Rio Salado, Anibal Fornari, filósofo e responsável pelo Movimento Argentino, nos falou sobre a sua revolução atual. Nos anos da ditadura, aderiu ao cotê cultural da revolução, um grupo de intelectuais católico-peronistas, críticos do fochismo, a luta da guerrilha, e fascinados pela figura de João Paulo II. Em 1984, foi reinserido na universidade federal, onde fora caçado em 1978. Naquele mesmo ano encontrou o Movimento. Dom Giussani foi a Montevidéu, no Uruguai, para um encontro e dali, nasceria a comunidade argentina, a segunda – depois do Brasil e junto com o Paraguai – da América Latina. Os primeiros a viver o fascínio da proposta de Giussani foi um grupo de amigos e homens de cultura, entre eles Alberto Methol Ferré, que já no ano anterior “ao voltar do Meeting de Rímini me disse: aquilo que você procura existe”, lembra Anibal: “Por isso, fomos a Montevidéu. Até aquele momento, tudo na minha vida permanecia truncado: meus filhos não seguiam minha proposta moral e ritual, e com meus alunos, o relacionamento se resumia a uma simpatia intelectual”.
Foi exatamente o caráter intelectual que marcou a história do Movimento aqui. Com todo o risco de vivê-lo como “um sujeito cultural que teve seu momento”, explica Anibal. “Dizíamos: estes jovens chegam, nós os educamos... Mas era uma esperança utópica colocada no carisma. Embora com o ornamento perfeito: deixamos cada coisa nas mãos de Deus.” O que estava por trás, na realidade, era sempre uma incredulidade sobre a incidência daquilo que vivíamos: “Entre nós, falávamos de política partindo de uma debilidade a ser superada, como se Cristo não tivesse o poder de entrar na história. Em suma, pensávamos: somos quatro gatos... E eu via que não tinha uma forma persuasiva, nem para mim nem para eles”.
A mudança que começou a acontecer nos últimos anos está, ao contrário, no espaço deixado para uma amizade. Aquela que se dilatou a partir do encontro com Julián de la Morena, responsável pelo Movimento da América Latina, e os amigos brasileiros e paraguaios. “Nas últimas férias em Bariloche, aconteceu a reunião de uma vida nova, atraída por uma Presença”, diz Anibal. Um terremoto, mesmo para o nervo exposto da incidência histórica. Este ano, dois momentos deixaram evidente para ele o que está acontecendo. A ironia terna e grande de Julián Carrón em uma Escola de Comunidade: “Por que Jesus não criou um partido político?”. E, ainda, o editorial de Passos de junho sobre as eleições políticas: “Foi um acontecimento, como acontece quando as palavras não são mais palavras. Entendi o que tinha a ver comigo aquele padre do Pime do qual Dom Giussani falava”. Na Amazônia, entrava com botas no pântano para alcançar um só homem, um índio. “Eu sempre ficava fascinado, e dizia: isto é o cristianismo. Mas como um fato grandioso e distante. Agora, não espero nenhum ‘momento’, peço para que Jesus aconteça para mim, e para quem Ele me faz encontrar. Somente um
homem para quem Cristo é tudo, pode gerar uma mudança.”
O nó na alma. A vida de Fede, de Pepe ou Santiago também pode ser explicada da mesma maneira. São “jovens trabalhadores” argentinos para quem a vida adquiriu intensidade por meio de uma amizade. Fede não se esquece do dia em que aconteceu: 16 de outubro de 2009. Trabalha com previsões na American Express, tem 27 anos e treze de Movimento. “Sempre participei de todos os gestos e convites. Seguia por seguir. E era triste.” Até que viu a mesma dor nos olhos de Pepe. Começaram a compartilhar também com Alessandro, um amigo mais velho que certa noite os convidou para tomar uma cerveja. Foram sem vontade. Lá, conheceram Julián de la Morena, que nunca tinham visto. “Falei sobre mim desinteressadamente”, diz Fede. “Mas aquele homem continuava a me olhar. Tinha me levado mais a sério do que eu mesmo: começou a me fazer perguntas. Falávamos sobre a minha vida com uma intensidade tão grande que eu preferiria morrer do que não estar ali naquela noite: Cristo tinha se introduzido. Através de alguém que não tinha vindo para me dizer alguma coisa, mas para fazer o seu caminho”. Apaixonou-se por um homem livre.
Aconteceu do mesmo modo para Pepe, que trabalha em Neuquén, norte da Patagônia. No laço com eles e com outros amigos do Brasil e do Paraguai, o seu “nó na alma” não se desfez, mas uma coisa é clara para ele: “Meu coração não vibra assim por Julián, por Fede, por ninguém... É Cristo, quero que seja cada vez mais carnal”. A mesma razão pela qual Santiago se inscreveu na Fraternidade dois meses atrás. Ele, que não queria nada de “sistemático”. Trinta anos e oito mudanças pelo mundo: quando, em 2002, a Argentina ruía, demitiu-se da agência de comunicação onde trabalhava porque “tinha dinheiro, férias, mulheres, a casa para o final de semana, as partidas de futebol e uma amargura no coração: não me bastava”.
Acabou em Maiorca, Londres, Lugano, Genebra. Limpou escritórios, regou campos de tênis, montou móveis... “Aqueles anos, distante treze mil quilômetros da minha família, para mim, que cresci em uma sociedade em que a família é tudo, foram dolorosos, mas nunca me faltou um sinal da Providência: quando estava com água até o pescoço sempre ‘chegou’ algo, o telefonema imprevisto de um amigo, um encontro com Pablo, a possibilidade de me confessar, o afeto verdadeiro de uma menina. Agora, preciso de uma amizade que me lembre que minha história é ‘Ele que fez tudo comigo’”.
Graciela D’Antoni diz a mesma coisa: “Embora o negasse, Ele sempre me acompanhou”. Uma elegante senhora, decana da super laica Faculdade de Ciências Exatas da Universidade de La Plata, nos recebe no ateneu que durante os anos da ditadura teve o maior número de desaparecidos. Desde os 17 anos Graciela negou ser cristã. Hoje, existem professores e alunos que vêm nesta sala para confessar-lhe que o são. Ou para enchê-la de perguntas.
Quando encontrou CL, sua vida mudou tanto que decidiu convidar Cleuza Ramos à Universidade para dar um testemunho sobre os Trabalhadores Sem Terra de São Paulo. Em razão do contexto, pediu a ela que não falasse de Cristo. “Ela o citou pelo menos cem vezes”. Mas exatamente aquele encontro marcou a todos: “Nas eleições seguintes, fui eleita sub-reitora”. Agora o desafio de “dizer quem sou” é grande, sobretudo quando o Conselho da faculdade precisa assumir uma posição sobre temas como o aborto ou o casamento gay. Mas há mais: “Sem Cristo não faria meu trabalho de maneira diferente, realmente não poderia fazê-lo. A exigência é grande, às vezes me parece impossível, mas não tenho medo. O cristianismo é a única maneira que tenho para viver”.
A zamba de Francisco. O Rio Salado divide Santa Fé da comunidade de San Tomé. São cinco pessoas e são espetaculares. “Se você não me convidasse para vir aqui esta amanhã, ainda estaria na cama. E o Mistério passaria ao meu lado”, diz Gabi, antes de ir embora, explicando a inexplicável beleza de uma hora de conversa. Carolina e Esteban conheceram seus vizinhos, Gerardo e Valeria, há um ano, mas parecem amigos desde sempre. Passando a cuia de mate quente, descrevem o que ficou claro na organização da mostra Da Terra aos Povos em sua cidade: tudo nasceu de uma pergunta feita por Esteban (“Por que o Natal é no dia 25 de dezembro?”), e terminou com o prefeito jantando com eles (“Nunca fiz a experiência de Igreja que vocês fazem”). Mas tudo continua, vemos isso pelos olhos cheios de lágrimas de Carolina: “Não sabíamos como fazer, pois éramos cinco para fazer todo aquele trabalho, mas pensamos em Cleuza e Marcos, que se tivessem feito somente aquilo que podiam, não existiria tudo aquilo que vemos hoje em São Paulo. E eu, agora, me movo no meu dia porque tenho certeza de que Ele se manifesta”.
À noite, em Santa Fé, acontece um encontro com uma dezena de estudantes universitários. De Córdoba, Rosário e Buenos Aires. Alguns frequentam universidades particulares e outros, públicas, como Ezequiel, que durante a ocupação do movimento estudantil no departamento de Ciências Políticas, percebeu que não tinha amigos na faculdade. “Com meus companheiros, compartilhava apenas o café. Mas, se não tivesse encontrado amigos de verdad como vocês, não teria me dado conta de que estava sozinho. Vocês são um antídoto para minha ideologia. Comecei a ficar atento.” Percebeu, por exemplo, que Sebastian tinha o mesmo desejo que o seu, e acabaram fazendo um panfleto juntos: “Eu, de CL, ele, ateu marxista”.
Já Francisco, estuda Filosofia, e não tem nenhuma vergonha em dizer que era “cético aos 20 anos”. A música folclórica argentina sempre foi a paixão dos seus pais. Um amor forte que sentiu quando era criança, mas que se perdeu: “Eu não entendia o laço entre mim e a música, e por isso parei de escutá-la”. Até que um amigo, Patricio, não percebeu aquela paixão sepultada e “a partir daí, tudo renasceu”. Nasceu até um grupo: Remolinos.
E Francisco comoveu-se porque finalmente entendeu: “O foco daquelas canções era sempre o mesmo, uma ferida aberta, uma urgência humana verdadeira que fazia eco no meu eu”. A Zamba de Vargas, anônima, a mais antiga canção conhecida, fala de um general que no momento decisivo da batalha, pede que a banda toque para apoiar os soldados: “No meio da confusão, as notas levaram coragem à alma. E foi o que aconteceu comigo. A música encontrou novamente eco em mim. E me despertou”. Depois, o fato de uma coisa sua ter explodido em um gesto público, um concerto de Remolinos pelos desabrigados das enchentes de Petrópolis e do terremoto do Japão, “isto foi um presente e uma promessa: aquilo que eu sou é para o mundo”.
É por isso que Sabato podia responder assim ao destino do qual fala o tango: “A vida exige apenas o espaço de um compasso, a através dele pode filtrar a plenitude de um encontro”. Um infinito ao nosso alcance.
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